segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Tyrande e Malfurion: Sementes de Fé


Tyrande e Malfurion:
Sementes de Fé

Valerie Watrous


Ela poderia estar dormindo. As feições da elfa noturna estavam perfeitamente plácidas, exceto pela boca, que se crispava de leve, como se os sonhos não fossem aprazíveis. Seu corpo estava intacto e em grande medida ileso, diferente de muitos dos outros encontrados nos últimos dias.

Tyrande Murmuréolo se ajoelhou ao lado do cadáver para vê-lo melhor. Havia algas ensanguentadas nos cabelos da mulher, que cheirava a mar e lenta putrefação. Morta fazia dias.


Havia sido provavelmente uma das primeiras vítimas do Cataclismo, levada pelas águas.

Nenhuma sacerdotisa de Eluna poderia trazê-la de volta.

– Tyrande! – A alta-sacerdotisa ergueu a cabeça ao ouvir Merende, uma de suas confidentes mais próximas. Procurando ao longo das praias da Vila de Rut’theran, Tyrande encontrou Merende a confortar uma sacerdotisa mais jovem, que chorava soluçando nas próprias vestes brancas. Aproximando-se, Tyrande começou a entender o porquê. O corpo contorcido de uma jovem elfa noturna jazia à frente delas.

É a irmã dela, disse Merende, apenas movendo os lábios, indicando a sacerdotisa que chorava.

Tyrande anuiu e fez sinal para que as duas se afastassem. Com a área livre, ela voltou o olhar ao cadáver e soube imediatamente que não havia esperança. Os membros estavam retorcidos em ângulos atrozes e não restava mais sangue para escorrer dos ferimentos... mas os elfos noturnos não abandonavam seus mortos. O corpo seria limpo; os ferimentos, ocultados; as articulações partidas, endireitadas antes que a elfa fosse devolvida à terra.

Tyrande se agachou e limpou a lama do rosto da menina, sussurrando suaves preces para que a deusa da lua guiasse o espírito dela e confortasse a irmã. Os detritos se foram, revelando uma pele violeta claro e ondas de cabelos azul-escuro. Os olhos amendoados ainda estavam abertos, fixos no céu nublado. Era um rosto muito parecido com outro que Tyrande vira muitos milhares de anos antes, e ela fechou os olhos para conter as lágrimas.

Shandris... Só queria ter notícias suas...

* * * * *

– Quão longe você conseguiu chegar, Morthis? – perguntou Malfurion Tempesfúria, oferecendo ao batedor uma caneca de sidra fumegante. O elfo noturno bebeu em grandes goles, grato, e conteve um arrepio. Estava encharcado até os ossos após voltar da patrulha, mas o conforto podia esperar até que ele relatasse o que descobrira. Os dois druidas se abrigaram na câmara mais alta do Enclave Cenariano.
– O vento estava terrível. Só consegui chegar ai Entreposto de Maestra, mas eles haviam recebido notícias de Astranaar e Feralas. – O batedor se sentou em um dos bancos de madeira do aposento, observando nervosamente o balançar dos galhos das árvores de Darnassus.

– Astranaar resistiu? – A voz de Malfurion se encheu de alívio. Fazia dias que ele coordenava patrulhas de reconhecimento, mas metade dos druidas não conseguia sequer chegar ao continente, mesmo em seus melhores esforços. Estavam todos desesperados por notícias, e muitos temiam o pior.

– Sim. Ela foi poupada, assim como o Posto do Nijel, mas os povoados da costa tiveram menos sorte.

– Como assim?

– É impossível chegar à Costa Negra. Nenhum dos druidas enviados para lá voltou... – A voz do batedor estava embargada com o pesar. Alguns de seus amigos estavam entre os desaparecidos. – Tive que contornar a região para não ser pego pelos vendavais.

– E o Domínio de Plumaluna? – perguntou Malfurion. Nesse instante, a esguia silhueta de Tyrande apareceu à porta.

– Plumaluna? – Morthis olhou para o arquidruida como se não soubesse se deveria continuar. – Os batedores não conseguiram contato com ninguém de lá. De longe eles avistaram o mar revolto e... nagas. – A voz se tornara um sussurro ao notar que Tyrande se aproximava. – ...

Centenas de nagas. – As criaturas monstruosas e serpentiformes haviam lançado ataques ao Domínio de Plumaluna no passado, mas um assalto em larga escala era algo sem precedentes.

– Eles viram alguém na ilha? Algum sobrevivente? – perguntou secamente a alta-sacerdotisa.

O batedor fez que não com a cabeça. – Ninguém. – A expressão de Tyrande era desoladora, e ele não apenas deduziu, mas sentiu a dor no coração dela. – Porém, o céu estava encoberto e a chuva era torrencial. Duvido que a general esteja... – e parou, repensando as palavras. – Digo, as Sentinelas do Domínio de Plumaluna são extremamente capazes, Alta-sacerdotisa.

Tyrande suspirou e pôs a mão no ombro dele. – Sua coragem e obstinação nos trouxeram essas notícias, Morthis. E somos gratos por isso. São as primeiras que recebemos do continente desde que esta tragédia se abateu sobre nós. Não lhe pediremos mais nada por enquanto. Descanse, por favor.

O batedor anuiu com a cabeça e saiu a passos lentos e exaustos.

Malfurion se virou para a esposa. Sua face bela, quase eterna, estava tomada de preocupação, medo e alguns vestígios da determinação inamovível que ele aprendera a reconhecer ao longo de seu relacionamento milenar.

– Houve cinco vítimas em Rut’theran – disse Tyrande. – Fui incapaz de salvá-las.

– Tyrande... – Malfurion tomou-lhe as mãos nas dele, confortando-a.

– Preciso ir até ela, Mal. Shandris é como uma filha para mim... Talvez seja a única filha que terei.

As palavras dela o açoitaram. Houvera um tempo em que o futuro era ilimitado para os elfos noturnos, mas o sacrifício das bênçãos de Nordrassil, a Árvore do Mundo, significara também o fim daquele sonho. As consequências da nova mortalidade dos elfos noturnos ainda eram incertas, mas muitos sentiam um temor silencioso lhes pesar sobre os ombros. Os filhos das estrelas já não eram mais tão eternos quanto seu nome sugeria.

– Eu entendo, mas por que justo agora? Como você sabe que o destino do domínio já não foi decidido? – perguntou ele, o cenho franzido de preocupação.

– Tenho pensado em Shandris desde que tudo isso começou. Não sei dizer como eu sei, mas tenho certeza.

– Você teve uma visão? – Malfurion sabia que Eluna, deusa da lua, já concedera tais vislumbres a Tyrande no passado.

– Não. Dessa vez, não. Eluna tem se ocultado ultimamente. O que sinto vem de dentro... Uma mãe sabe quando a filha está em perigo. – Ela se interrompeu ante o olhar cético dele. – Nem todos os laços são de sangue, Mal.

– Mas temos dito a nosso povo para permanecer em Teldrassil desde a tragédia... para não procurarem os parentes no continente, sob pena de não encontrarem mais que a própria morte.

– Você acredita que eu vou para a morte, então? – Os olhos dela brilharam, gélidos.

– Não – admitiu ele. Não havia como negar que a alta-sacerdotisa era uma das favoritas de Eluna, além de uma guerreira formidável por si só. – Mas eu não deixaria Darnassus em um momento tão terrível. Sei que estive ausente com muita frequência... e isso me perturba. Queria ter estado lá na formação de Teldrassil, e quando meu irmão morreu em Terralém... – Ele suspirou. – Contudo, não posso mudar o passado. Posso apenas estar aqui agora. E gostaria de tê-la ao meu lado, ele teria acrescentado, mas a expressão dela o silenciou.

– O destino de Illidan foi infeliz, Mal. Nenhum de nós pôde fazer nada quanto àquilo. A loucura dele o consumiu até que não restasse mais nada. – Ela ainda conseguia se lembrar de quão estranho ele parecera, quase alienígena, quando Sargeras lhe queimara os olhos milhares de anos atrás. – Devemos concentrar nossos esforços nos que têm salvação... ou lamentaremos nossas escolhas de novo e de novo.

Ela se virou e saiu, as vestes alvas tremulando como uma tempestade iminente.

A general Shandris Plumaluna se equilibrou sobre as vigas do telhado, escorregadias por causa da chuva. Uma dúzia de Sentinelas se empoleirava em torno dela, todas exaustas e feridas, mas sequer perto de se renderem. Ela ergueu a mão em um sinal conhecido.

– Salva! – As arqueiras lançaram as flechas contra o exército de nagas que se avultava abaixo.

Elas estavam cansadas; só metade das flechas matou os alvos, entre as quais a de Shandris, que perfurou o olho de uma sirena. Esta se debateu violentamente por alguns segundos antes que sua forma serpentina desaparecesse nas ondas, mas outras dezenas emergiram para substituí-la. A água era o território das nagas, e os reforços delas chegavam mais rapidamente do que Shandris e as Sentinelas eram capazes de matá-las.

– Segurem-se! – instruiu Shandris enquanto uma muralha de água se erguia do mar revolto. A onda quebrou na fachada cada vez mais frágil da estalagem, encharcando a general e suas forças. A sentinela à esquerda, Nelara, recebeu em cheio o impacto e escorregou metade do telhado a baixo antes que Shandris acorresse e lhe segurasse o braço. Com esforço, a general a puxou de volta e a reergueu. Num relance, Shandris viu que o nível mais baixo da estalagem estava inundando rapidamente.

– Precisamos evacuar os sobreviventes e seguir para um lugar mais alto – afirmou Shandris. – Este prédio pode desabar a qualquer momento. Nelara, leve-os para a torre! Todos à minha direita, sigam-na! – Ela sinalizou para metade das Sentinelas. – Teremos mais chance lá. – Nelara anuiu, deslizou até o fim do telhado e desceu para a varanda abaixo. As demais a seguiram, e Shandris se crispou ao ver o cansaço lhes transparecer nos movimentos.

– E o restante de vocês: vamos causar um tumulto tão grande que nossos inimigos sequer notarão as outras partindo. Ash karath!–, bradou a general, erguendo o arco e atirando suas flechas furiosamente. Ela sabia que suas forças estavam por um fio. Qualquer deslize significava a morte dos demais.

Para seu alívio, os elfos entraram em ação. Flechas choveram na água, fazendo com que as nagas se espalhassem sibilando sua frustração. A invasão lenteou e pareceu que os invasores estavam, na verdade, batendo em retirada. Momentos depois nenhuma naga era visível – apenas sombras sob as ondas. Shandris olhou rapidamente para a parte de trás da estalagem. A maior parte da ilha estava inundada, mas as Sentinelas e os civis percorriam rapidamente o caminho até a torre. Ao olhar para o mar de novo, ela percebeu que as nagas haviam sumido.

Os guerreiros invasores haviam encontrado uma concha imensa, capaz de abrigar mais de dez deles de uma só vez, e a utilizavam como escudo contra as flechas conforme retomavam o avanço. Shandris sinalizou para que as Sentinelas cessassem fogo. – Vão ao encontro dos outros. Eu cuidarei disso. – Os outros elfos noturnos trocaram olhares desconfiados e começaram a se mover hesitantes. – Para Nelara. Agora! – ela emendou.

Sem demora Shandris saltou do telhado para a água. As nagas se viraram, avançando em sua direção com vigor renovado. Ela não conseguia parar de pensar no distante e perverso passado das criaturas. Os aristocráticos elfos Altaneiros, guiados pela Rainha Azshara, haviam evocado a Legião Ardente por pura idiotice, e permitido que os demônios semeassem o caos até serem derrotados por um exército composto de elfos noturnos e outras raças. No fim, os Altaneiros sobreviventes foram sugados para o fundo do mar, onde foram transformados em versões horrendas do que haviam sido antes... nagas.

Apesar de ser jovem na época, a própria Shandris tinha lutado essa guerra ao lado de Tyrande.

As nagas falharam em recuperar a glória de seus ancestrais, mas ainda assim ela as odiava com uma ferocidade que a fazia morder os lábios. Ela esperou imóvel até que as criaturas estivessem na posição certa e, de olhos fechados, sussurrou uma antiga prece a Eluna, cada palavra fortalecida pela fé e pela reverência, como Tyrande havia ensinado muito tempo atrás, durante o treinamento de sacerdotisa da deusa da lua. As serpentes rodearam a general noctiélfica e ela ouviu mais de uma risada grotesca surgir na turba horrível enquanto terminava de pronunciar as últimas palavras sagradas.

A resposta de Eluna veio logo. Correntes de energia abateram todas as nagas que estavam ao seu redor enquanto elas abriam suas bocas horríveis em descrença. Depois que o último grito de morte silenciou, Shandris observou os corpos com uma satisfação mórbida.

“Sua fé sempre foi fraca, lixo Altaneiro.”

Foi uma estratégia arriscada, mas funcionou. Ainda que Shandris jamais tivesse sido poderosa como sua mentora, Tyrande, ela tinha boas lembranças de seus dias no templo. O treinamento havia lhe concedido poderes muito superiores aos das outras Sentinelas, além de uma excelente alternativa quando arcos, flechas e glaives não eram suficientes. Mas a prece custava caro: ela não podia ser utilizada senão a um enorme custo.

Lutando contra as ondas, Shandris nadou na direção da praia até que seus pés tocaram o solo firme e a arrastaram na direção dos refugiados civis e das Sentinelas. Algo estava errado; eles não haviam avançado muito desde a última vez que ela havia os visto. Ao se aproximar, ela encontrou Nelara e suas companheiras encarando um grupo muito maior de mirmidões. Os habitantes de Plumaluna corriam em volta deles, em pânico e desesperados para encontrar abrigo – cada um deles familiar e precioso para ela como um pedaço de seu próprio coração.

O pesquisador Quintis Jonespyre se adiantou, arriscando-se numa abertura entre as Sentinelas e o segundo grupo de mirmidões ao procurar abrigo. Shandris se lembrou das longas conversas que tivera com Quintis sobre Fandral Guenelmo. Ambos haviam esperado futilmente que Tyrande reprimisse Guenelmo formalmente por suas estranhas atividades, mas a alta-sacerdotisa apenas os lembrou de que o Círculo Cenariano operava além de sua autoridade.

Além disso, Quintis havia sido perspicaz o suficiente para ver a escuridão se apoderar de Guenelmo antes dos outros, e mais ainda para saber que estaria a salvo do arquidruida enquanto estivesse sob a vigilância de Shandris no Domínio de Plumaluna.

Mas a inteligência de Quintis não o salvaria agora. O líder dos mirmidões viu o elfo noturno em disparada e ergueu sua arma. Shandris gritou para alertar Quintis, mas ele se virou apenas para ver o tridente da naga ser enterrado em suas costas. Ainda houve tempo para lançar um último olhar cheio de incerteza para Shandris antes de cair, seu sangue enrubescendo a água e rumando para o mar.

* * * * *

A luz da aurora estava encoberta pelos céus tempestuosos, mas os cidadãos de Darnassus ainda assim se recolheram aos seus aposentos na hora habitual. Talvez para alguns fosse um conforto manter uma rotina familiar mesmo em tempos turbulentos. Para outros, apenas desculpa para algum tempo de luto solitário. Para Tyrande, era uma chance de fugir.
A alta-sacerdotisa olhou rapidamente à sua volta e saiu furtivamente do templo, seguindo uma trilha tranquila que corria por trás das proeminentes estruturas de Darnassus. Era uma rota mais longa e difícil, mas Tyrande fazia questão de não ser vista naquela noite. Ao fazer uma curva, ela alcançou as humildes acomodações que compartilhava com seu marido.

Quando Tyrande abriu a porta, um raio de luz preguiçoso se estendeu pelas tábuas escuras do assoalho. O lugar estava deserto. Ela supôs que Malfurion ainda estivesse no enclave, e começou a preparar seus pertences para a perigosa jornada que estava à frente. Rapidamente trocou suas vestes cerimoniais pela armadura de placas, que se parecia com a das Sentinelas, e manteve apenas o simplório diadema em forma de lua crescente como símbolo de seu posto.

Remexendo um grande baú, Tyrande tirou seu arco e sua aljava e, por fim, ergueu sua belíssima glaive. A luz tênue ondulou pelas três lâminas enquanto ela removia as coberturas, e foi possível sentir que todas a bênçãos que haviam sido concedidas à arma estavam tão fortes quanto sempre estiveram. Se os relatórios de Morthis estivessem corretos, ela precisaria de todas as vantagens possíveis para obter sucesso.

Tyrande estava se virando para partir quando um objeto familiar chamou sua atenção. Uma enorme planta repousava num vaso à sua frente, suas folhas em forma de coração se enrolando em seus graciosos galhos. Ela era conhecido como alor’el, a “folha dos amantes”, e mesmo tendo sido comum milhares de anos antes, estava sumindo aos poucos de toda Kalimdor.

De alguma maneira Shandris havia conseguido uma e dado a Tyrande e Malfurion no dia de seu casamento. Sorrindo maliciosamente, a filha adotiva de Tyrande contou alegremente aos convidados que, segundo uma antiga e completamente infundada lenda kaldorei, a alor’el só floresceria nas mãos de um casal que compartilhasse de um amor perfeito. Naturalmente, ela confiava que Malfurion e sua esposa seriam os candidatos ideias para testar a veracidade da lenda. Os outros convidados brindaram e celebraram proclamando sua boa-fé, mas a planta ainda não havia concedido mais que um botão.

Ainda assim era o tipo de presente que apenas Shandris poderia dar. E Tyrande confiou que não seria o último.

– Eu não permitirei que você morra aqui hoje. Eu juro. – Shandris apertou o pulso de Véstia Lançaluna, mas a sacerdotisa só chorou mais.

– Latro ficou para trás! Oh, Eluna, cuide dele. Ele se foi, ele se foi... – Seus soluços aumentaram, e Shandris percebeu que os poucos refugiados restantes sussurravam nervosamente. Cada um deles lutou contra a mesma onda de emoção conforme se esforçavam para abandonar a ilha despedaçada pela guerra.

– Seu marido gostaria que você prosseguisse, Véstia. Você deve fazer isso por ele. Por todos que deram suas vidas aqui hoje. Por favor. – Shandris olhou implorante para a elfa noturna relutante. Era possível sentir a árvore se envergar sob seus pés com o enfraquecimento de suas raízes. Não havia muito tempo.

Para seu alívio, Véstia conteve os soluços e permitiu que Shandris a guiasse até o hipogrifo. A plumagem de um azul profundo da criatura estava quase negra devido à chuva, mas seus olhos permaneciam brilhantes e em alerta.

– Leve-a até a terra firme. Cuidado com os ventos. – Shandris alertou, sentindo-se grata pela considerável inteligência do hipogrifo. Nenhum pássaro comum poderia voar num clima tão turbulento, mas a nobre criatura diante dela tinha uma chance.

Véstia e o hipogrifo desapareceram entre as nuvens quando Nelara subiu correndo a rampa: – General! Precisam de você lá embaixo! As nagas estão tentando derrubar a torre!

– Leve os outros sobreviventes para a terra firme, Nelara. Há hipogrifos suficientes para você e a maioria das Sentinelas. Peça ajuda a Thalanaar o mais rápido possível.

Nelara se virou, surpresa:

– Eu não vou sair daqui. Nem mesmo você pode derrotar todas as nagas sem aju– – Você cumpriu seu dever, Sentinela. – Shandris respondeu asperamente. – Suas ordens são de bater em retirada.

– Você não vai reconsiderar, vai...? – Nelara baixou a cabeça, e Shandris pensou ter visto uma lágrima em meio à água da chuva que escorria pelo lado do rosto da Sentinela.

– Uma pessoa salvou minha vida quando eu pensava que estava tudo perdido. – a general disse vagarosamente. – Seria minha maior honra dar o mesmo presente a outra pessoa. – Ela começou a descer a rampa na direção dos sons da batalha: – Ande’thoras-ethil, Nelara.

– Eu mandarei um hipogrifo para buscar você assim que chegarmos! – Nelara chorava: – Espere no topo da torre!

Era difícil para Shandris não dizer à jovem Sentinela que seu plano estava fadado ao fracasso, mas depois de algum tempo ela ouviu Nelara convocar os hipogrifos restantes e decidiu deixá-la.

Com suas ordens finais sendo executadas, Shandris mergulhou na batalha que tomava a base da torre. A construção estreita era um gargalo natural, e até então apenas umas poucas Sentinelas haviam bastado para defender com sucesso a estrutura, construindo barricadas por dentro e atirando flechas nas nagas.

Shandris sacou seu arco e começou a atirar num ritmo constante e experiente. – Vocês estão liberadas, Sentinelas. Rumem para a câmara mais alta; há hipogrifos aguardando vocês lá.

Os outros elfos noturnos estavam muito cansados e feridos para questionar suas ordens. Doeu em Shandris ver que alguns dos seus haviam sucumbido e seus corpos permaneciam atirados ao chão. Um a um os elfos sobreviventes se retiraram, deixando trilhas de sangue entre suas pegadas. Ver cada um deles partir encheu Shandris com uma nova força. Suas flechas agora compravam vidas: cada naga morta significava mais alguns segundos de paz para os fugitivos do Domínio de Plumaluna.

Mas ela sabia que as defesas da torre não durariam. Os ataques das nagas arruinavam as barricadas num ritmo voraz, e uma luz se acendeu quando uma sirena lançou um feitiço na direção de Shandris. A general proferiu um juramento kaldorei e protegeu o rosto enquanto a barreira se despedaçava, lançando farpas e madeira partida por toda a sala. Quando baixou a mão, Shandris percebeu que a sirena estava diante dela, flanqueada por dois imponentes mirmidões. Seus ótimos paramentos, um símbolo militar, brilharam na luz baixa. Mais e mais nagas se enfileiravam atrás deles.

– Você deve ser a general. Eu sirvo à dama Szenastra – ela entoou. – É um prazer.

Shandris agarrou seu arco com força:

– Veremos.

A comandante naga examinou a elfa maliciosamente. Refletidos em toda a escama e espinhas, os maneirismos da sirena eram uma imitação perfeita da condescendência Altaneira, o que fez o sangue da general gelar.

– Isto não precisa continuar, sabe? Minha dama me autorizou a oferecer termos de paz a você.

– Quão extraordinariamente generoso. O que ela quer?

– Dê-nos a cabeça de sua dama, a falsa rainha Tyrande.

Shandris atirou uma flecha no sorriso bajulador da naga. A criatura convulsionou e agarrou a garganta, mas seus gritos emergiam como jatos de sangue. Engasgando, ela sucumbiu.

Shandris olhou os guardas friamente:

– Levem isso para sua senhora.

Um segundo depois, eles estavam sobre ela. Shandris atacou com sua glaive, despachando os dois primeiros mirmidões com facilidade, mas um tridente atingiu seu braço e atirou sua arma para longe. Outra lâmina penetrou seu flanco, arrancando seu fôlego enquanto ela se afastava.

As nagas estavam por toda parte, atacando furiosamente, e havia apenas uma última opção de defesa.

Shandris clamou por Eluna e usou suas últimas reservas de força na prece, mas esta tremeluziu e se apagou como uma vela em seus últimos instantes.

Fé é o começo de todas as coisas. Esta fora a primeira lição que aprendera e memorizara como Irmã de Eluna. Tyrande se lembrou da severidade da Alta-sacerdotisa Dejahna enquanto examinava as garotas, atenta para afastar quaisquer pupilas com coração dividido que haviam se juntado às Irmãs por não possuírem aptidões mágicas. Se suas habilidades arcanas forem aceitáveis, mas não fortes, você ainda poderá se tornar uma feiticeira. Se suas habilidade com agulha e linha forem aceitáveis, mas não fortes, você ainda poderá se tornar uma costureira.

Mas se sua fé for apenas aceitável, e não forte, você nunca será uma sacerdotisa.

Era estranho como as palavras voltavam com clareza enquanto ela lutava para permanecer sobre o hipogrifo. Os ventos sopravam contra eles, e a chuva colava seus cabelos cerúleos contra seus ombros, mas parte de sua mente ainda estava no antigo Templo de Eluna em Suramar, onde o olhar afiado de Dejahna havia se lançado cético sobre ela.

Por que escolheu este caminho, Tyrande Murmuréolo?

Porque, ela disse, eu quero proteger outros. Especialmente aqueles que amo. A alta-sacerdotisa a respeitara por um longo tempo depois disso, e Tyrande nunca soube o que exatamente Dejahna achava da conversa, mas ela suspeitava que de alguma maneira a semente de sua nomeação como sucessora havia sido plantada naquela breve e sincera resposta.

Houve muitos momentos em que ela questionou a decisão de sua predecessora de nomeá-la como alta-sacerdotisa. Quão diferente teria sido sua vida sem o fardo da liderança? Teria sido necessário que ela matasse os Vigilantes para assegurar a ajuda de Illidan contra a Legião Ardente? Ela teria sido forçada a aguardar milhares de anos para se casar com seu amado? Seu povo teria sofrido menos na Guerra dos Antigos se seu mestre tivesse sido alguém com mais experiência?

Dejahna estava certa: a fé tinha sido sua única guia. Agora era ela quem a guiava por uma impiedosa tempestade para salvar a general mais competente que elas jamais conhecera de um perigo que era vago e inevitável em sua mente. E ela estava sozinha. Nenhuma de suas palavras demovera Malfurion, ainda que ela tivesse certeza... A fé parecia ser realmente uma dádiva rara.

O hipogrifo grasnou, e Tyrande se apoiou nas galhadas à sua frente para ver. Feralas estava diante deles, e a Ilha de Sardor mal podia ser vista no meio do paredão de névoa. Em algum lugar lá embaixo Shandris aguardava. Tyrande tinha que acreditar que ela ainda estava viva.

Ela tocou o pescoço do hipogrifo, indicando que ele deveria pousar ao sul. Era mais fácil se comunicar por meio de toques em meio ao vento forte, e as criaturas sempre compreendiam. O hipogrifo se inclinou em resposta, e abriu as asas para tentar diminuir a turbulência. Mesmo com seus esforços, a ventania brincava com eles, quase atirando os dois contra o mar revolto abaixo.

Tyrande deslizou para a direita da sela, torcendo para que o deslocamento do peso ajudasse o hipogrifo a corrigir sua própria posição. Por um momento eles flutuaram como uma folha ao vento, e então a criatura pendeu para o lado e gentilmente descendeu até a praia.

Tyrande se agarrou com força a ele. – Bem, isto foi imprudente, mas eficaz. – O hipogrifo eriçou suas penas orgulhosamente enquanto pisava numa tira de terra seca do lado de fora do Domínio de Plumaluna. – Suponho que seja por isso que estamos juntos nisso. Fique por perto – ela disse ao desmontar, antes de se dirigir com cautela para o acampamento.

Morthis não mentira. Plumaluna estava em frangalhos, suas estruturas ruindo e alagadas. As nagas estavam por toda parte, vasculhando os escombros e patrulhando a costa como se esperassem reforços a qualquer instante. Graças ao vento e à chuva elas não haviam visto o hipogrifo se aproximando, ou talvez uma elfa noturna solitária não fosse motivo de preocupação para elas.

Tyrande pensou que Shandris poderia ter escapado da ilha antes da invasão, mas ela não ficaria contente até que tivesse completado uma busca meticulosa. Seu temor por Shandris a corroeu, voltando seus pensamentos para a garota morta na praia de Rut’theran. Tyrande fez força e se espremeu contra a construção mais próxima, mantendo um olho nas patrulhas conforme avançava. Ela não se importou com a possibilidade de combate, mas sua missão seria muito mais rápida sem encontros desnecessários.

As tábuas do piso rangiam sob seus pés, e a água passava pelas rachaduras no telhado enquanto ela entrava na construção avariada. Esquadrinhando a área, Tyrande viu algo por trás de uma prateleira de livros – a ponta de uma orelha? Ela correu na esperança de que não fosse muito tarde. A prateleira estava encravada num canto, e foi preciso um chute bem dado para movê-la, mas a alta-sacerdotisa conseguiu afastá-la e alcançar o corpo soterrado. Enfiando a mão, ela ergueu o elfo noturno para fora da água lamacenta que enchia o edifício.

Ela rapidamente reconheceu a longa trança: Latrônicus Lunalança, um dos mais proeminentes guerreiros na batalha contra as nagas no Domínio de Plumaluna. Agora ele descansava nos braços de Eluna. Ela fechou seus olhos e murmurou a oração para os mortos. Aquelas palavras haviam se tornado muito familiares para seus lábios nos últimos dias.

O resto da sala continha apenas o corpo de outra Sentinela morta, certamente pelas nagas, e dúzias de suprimentos abandonados, arruinados pela inundação. Ao sair, um grupo de batedores naga a viu. A alta-sacerdotisa estendeu seus braços e proferiu algumas palavras, lançando raios de luz da lua contra seus inimigos antes que eles pudessem atacar. As nagas ainda sucumbiam diante de seu ataque quando ela correu até a estalagem, procurando por quaisquer pistas na água – pistas que a levassem até Shandris e outros sobreviventes – mas a enchente havia transformado a terra em lama.

Uma sombra passou sobre sua cabeça, fazendo com que Tyrande sacasse sua glaive alarmada.

Um enorme pássaro circulava sobre ela. Ela se deteve, observando a criatura sem acreditar. A criatura mergulhou numa trajetória íngreme, e Tyrande começou a reconhecer a plumagem escura e a fagulha que acendia os olhos do corvo da tempestade. A criatura pousou e, em segundos, se transmutou em seu amado.

– Desculpe por tê-la feito esperar. – Ele sorriu.

– Mal... – ela o abraçou. – Você veio.

– Agora lutaremos juntos. Nosso amigo Broll Mantursino tomou meu lugar na organização dos batedores druidas, e Merende assumiu suas responsabilidades em Darnassus.

– Obrigada, meu amor. O Domínio de Plumaluna necessita com urgência de nosso auxílio. Eu não fui capaz de encontrar sobreviventes, e é impossível rastreá-los nesta inundação.

Ele concordou:

– Talvez eu possa ajudar com isso. – O arquidruida fechou os olhos em meditação e esticou os braços à frente do corpo, abrindo as palmas sobre a terra devastada. Rajadas de vento se revolveram ao redor de Malfurion enquanto ele as reunia num enorme ciclone. As águas imundas começavam a ondular e retroceder quando o poderoso vórtice as empurrou de volta para o mar.

Apenas o horizonte partido da Ilha de Sardor permaneceu diante deles, revelando uma trilha de cadáveres que se dirigia para a gigantesca torre arbórea a nordeste.

Mas o feitiço também alertou as nagas. Elas vieram de todas as direções, impacientes para saber o que havia causado o recuo das águas. Ao ver os elfos noturnos, as criaturas serpentiformes gritaram, atraindo ainda mais tropas, preparando um ataque. Uma feiticeira naga, Lady Szenastra, apareceu no centro do crescente grupo. A julgar pela deferência que a naga exerceu sobre seus comandados, Tyrande soube que ela era líder deste exército.

– A Ilha de Sardor é nossa. Vocês vieram encontrar a morte, “Majestade” – Szenastra zombou.

– Eu não sou rainha – Tyrande vociferou – e morrerei antes de o ser. O que você fez com os kaldorei que estabeleceram seus lares aqui?

– Seu povo dorme o sono eterno agora. Você não o vê? – Szenastra apontou para os corpos indolentemente. – Você pode se juntar a eles agora, se quiser. Minha senhora Szallah certamente se aprazeria se você fizesse questão. Se não, eu terei que cuidar disso. – Ela fez um sinal e um esquadrão de mirmidões se arrastou para frente.

Tyrande e Malfurion se olharam.

– Quão facilmente esses cretinos se esquecem da derrota – a alta-sacerdotisa resmungou por entre dentes cerrados.

– Nós devemos dar a eles algo para lembrar, então. – disse Malfurion. Tyrande concordou com a cabeça. Trovões estalaram quando o arquidruida começou a lançar seu feitiço. As nuvens acima da ilha escureceram ainda mais, e as cabeças das nagas se levantaram alarmadas.

Szenastra sibilou uma ordem, e o exército naga avançou na direção dos elfos noturnos.

Malfurion assistiu impassível, esperando que as energias se acumulassem. Assim que a tempestade se formou completamente, ele lentamente virou sua cabeça para o céu, e os céus liberaram sua fúria sobre as nagas. Relâmpagos atingiram a terra – cada raio se dividindo e fritando dezenas de mirmidões desafortunados. Quando as tropas se dispersaram caoticamente, Tyrande começou a caminhar na direção da feiticeira.

Lady Szenastra tentava fugir, mas a alta-sacerdotisa lançou uma imensa coluna de fogo lunar sobre ela. A naga convulsionou por um momento, a energia a atravessando, e então tombou num baque, seus adornos sendo engolidos pela lama.

Tyrande partiu na direção da torre. A entrada estava bloqueada por escombros, mas havia sido selada por dentro. Destemida, ela abriu passagem com alguns golpes furiosos de sua glaive.

Dentro da sala, Shandris Plumaluna jazia sobre uma poça de sangue que reluzia sobre o assoalho.

Um soluçou ficou preso na garganta de Tyrande enquanto ela corria na direção da elfa ferida.

Ela caiu de joelhos e começou a orar, o pesar dificultando a formação das palavras: – Eluna, concede-me isto, isto e mais nada. Poupa-a, eu imploro... ela é minha filha. Ela acredita que eu a salvei, mas foi ela quem me salvou... várias vezes. Minha vida seria vazia sem ela. – Lágrimas escorriam por seu rosto, brilhando como as trilhas das estrelas.

Malfurion correu até ela, mas ela estava muito concentrada para perceber sua presença até ele tomar suas mãos nas dele. O simples gesto a convocou de volta e, além disso, ela sentiu o poder dele se somando ao dela na tentativa de curar Shandris.

Eles a observaram por um longo instante, mal respirando. Então os cílios de Shandris se agitaram e ela abriu os olhos pesadamente. Rolando sua cabeça para o lado, ela tentou focar nos vultos ao seu lado, formas de pessoas que ela conhecia: – Min’da? An’da? – Ela perguntou com os olhos apertados, a testa franzida denotando confusão.

Tyrande não possuía palavras. Suas lágrimas caíam no chão, escurecendo ainda mais a madeira manchada. Ela pousou a mão sobre o ombro de Shandris e respirou fundo: – Seus pais ainda descansam com Eluna, Shandris. Mas você não, graças à ajuda de Mal.

– Tyrande soube que você estava em perigo há muito. Ela não podia pensar em mais nada – completou Malfurion.

Shandris os ouviu. – Bem, talvez eu não estivesse muito longe ainda – e riu, depois estremeceu de dor. – P-parece... que Eluna respondeu às minhas preces, afinal.

Tyrande levantou os olhos para Malfurion:

– Acredito que ela tenha respondido a todas as nossas.

* * * * *

Shandris acordou ouvindo as notas de um antigo hino funeral. Sentando-se com cuidado, ela observou a janela que dava para a área central de Darnassus. Os cursos d’água estavam iluminados por velas, cada uma das esferas de luz flutuando sobre a superfície vítrea como fogos-fátuos na floresta. Malfurion e Tyrande permaneciam de pé solenemente no centro do evento enquanto as pessoas de Darnassus e os refugiados de Kalimdor se reuniam ao redor deles.
Muitos dos rostos dos elfos noturnos estavam inchados e corados de tanto chorar. Alguns pareciam não dormir há dias. Shandris conhecia muito bem o pesar que sentiam. Observando a multidão ela viu Véstia, sozinha e um pouco afastada do grupo. Eles haviam perdido muito.

Quase todos conheciam alguém que havia perecido nas últimas semanas tumultuadas.

As carroças com os esquifes funerais eram puxadas por sabres-da-noite, cujo evidente esforço era causado pelo peso dos corpos. Tyrande deu um passo à frente para abençoar os mortos uma vez mais antes da partida. Não havia som, exceto pela melodia fantasmagórica e desconsolada das sacerdotisas.

Era doloroso assistir, mas a cura não viria se a dor não fosse liberada. Shandris sabia que seu povo precisaria de tempo antes de lidar com os desafios à frente. Ela olhou outra vez para Malfurion e Tyrande, que encaravam juntos o tsunami de dor e perda. Muito acima deles, as nuvens começaram a se mover, um fio de luar iluminando seus rostos. “Eluna sabe dos seus”, Shandris pensou. “Nós não estamos sozinhos nesta luta”.

Se sentindo segura outra vez, ela se levantou e mancou pela sala para tomar uma dose das raízes medicinais calmantes que Malfurion havia deixado para ela. A grande planta alor’el, seu presente de casamento para o casal, havia crescido muito desde a última vez que ela a vira, e uma das gavinhas recaía por um dos lados da prateleira. Com uma exclamação de alegria, ela notou que havia vários botões florescendo.



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