terça-feira, 18 de outubro de 2016

Textos Apócrifos



As cinzas caíam lentamente sobre as Agulhas de Arak. Cairiam por dias. Talvez semanas.
Reshad decidiu não se importar. Fumaça e cinzas eram suportáveis — genocídio, não.
A floresta carbonizada, repleta de árvores partidas e dos corpos enegrecidos de outros arakkoas proscritos, o rodeava. Acima, pairavam os pináculos escarpados de Beira-céu, lar dos arakkoas superiores que se empenharam na erradicação do povo de Reshad. As torres de rocha bruta rasgavam o céu como garras. No topo da mais alta repousava um imenso cristal dourado, a arma dos arakkoas superiores que precipitara morte e destruição sobre os proscritos e a floresta onde moravam.

Ao fechar os olhos, Reshad podia reviver tudo novamente: a coluna coruscante de fogo contendo o poder do sol, projetando-se do cristal para incendiar seu mundo. Era possível ouvir os estalos da madeira se partindo, os gritos dos proscritos que queimavam vivos.
Mas tudo estava acabado agora, lembrou-se.
A ordem que governara os altos arakkoas com irredutível fanatismo — os Seguidores de Rukhmar — estava arruinada. Sua arma fora destruída. Das cinzas que deixaram para trás, algo novo emergia, lenta mas decididamente.
Reshad o via diante de seus olhos. A Ordem dos Despertos, uma nova sociedade de arakkoas empenhada em abandonar o ódio e as rivalidades que subjugaram seu povo por gerações. Na floresta arrasada pelo fogo, antigos inimigos caminhavam juntos como irmãos. De um lado, proscritos desprovidos de asas, distorcidos pela Maldição de Sethe. Do outro, seus primos alados, os elegantes e poderosos arakkoas superiores, que outrora viam todas as coisas que rastejavam abaixo de seus pináculos como inferiores.
Já era hora, pensou Reshad. Meus ossos velhos estão cada vez mais cansados...
Um cacarejo familiar chamou a atenção de Reshad. No alto, um borrão de penas vermelhas volteava. Percy, seu kaliri, voava baixo, trazendo entre as garras negras uma sacola repleta de pergaminhos.
— Ah, você os encontrou! — Reshad juntou as mãos rugosas. Ele enviara Percy a um de seus esconderijos de pergaminhos. Ao longo dos anos, o ardiloso erudito ocultara diversos pelas florestas. — Traga-os aqui...
Percy atirou a sacola ao lado de Reshad, espalhando os pergaminhos sobre o chão coberto de fuligem. — Raak! — grasniu o ancião proscrito. — Cuidado, Percival! Você sabe que eles são frágeis!
O kaliri empoleirou-se no cepo irregular de uma árvore e respondeu com um guincho.
— Sim, sim... — suspirou Reshad, enfiando a mão no bolso das vestes violeta com adornos dourados. Ao emergir, a mão deixou cair um rastro de sementes e castanhas. — Não esqueci a sua recompensa...
Ele espalhou o conteúdo do bolso aos seus pés e limpou as mãos na vestimenta. Percy saltou do tronco e atirou-se num frenesi de bico e garras.
— Tenha dignidade. Há estranhos por aí — censurou Reshad, examinando os pergaminhos pelo chão. Ele os recolhia zelosamente, como se fossem ovos de kaliri. Tratava-se de antigas histórias a respeito da sociedade arakkoana anterior à cisão entre alados e proscritos. Textos apócrifos, conhecimento abolido pelos Seguidores de Rukhmar numa tentativa de manipular seu próprio povo.
Reshad depositou os pergaminhos na sacola com todo o cuidado, examinando cada um em busca de sinais de dano causado pelo fogo. Um sobre Terokk, o antigo rei que governara os arakkoas, intitulado Antes da Queda, chamou sua atenção. Reshad se deteve com o pergaminho nas mãos.
Algo tão pequeno, pensou ele. Somente tinta e papel. E, ainda assim, poder suficiente para afrontar o sol falso imposto pelos arakkoas superiores.
— Reshad! — Um proscrito manquejou adiante, as penas manchadas pelas cinzas da cor de um céu tempestuoso. Portando uma túnica de couro azul-escuro, ao seu lado marchava um arakkoa superior.
— Não conseguimos encontrar Iskar — prosseguiu o proscrito. — Um grupo de batedores saiu em busca dele, mas não vai voltar tão cedo.
— Que assim seja — respondeu Reshad, tomado de frieza. O umbrassábio Iskar era o líder dos proscritos. Sua ausência era desconcertante. Nos dias anteriores ele andava distante e nervoso, o que levou Reshad a ponderar acerca de suas intenções. Iskar sempre fora um tanto obcecado por poder, algo que advinha de sua história pessoal.
Mas o que ele pode querer? A nova sociedade arakkoa não lhe basta?
— Devemos nos preocupar? — indagou o arakkoa superior.
— Teremos que esperar para ver — respondeu Reshad. — Sentem-se. Vocês dois. Descansem.
O arakkoa superior assentiu e foi empoleirar-se no topo de uma árvore caída. O proscrito acomodou-se num pequeno tronco por ali, limpando as cinzas do rosto.
Reshad desenrolou o pergaminho em sua mão. Como ele, a folha era frágil e envelhecida, mas cheia de segredos. Reunir este conhecimento tornara-se o trabalho de sua vida, ensiná-lo a uma nova geração do seu povo. Arakkoas guiados por sabedoria, em vez do preconceito e do fanatismo desmiolado do passado.
Agora, pensou, é a melhor hora para recomeçar.
— O que você sabe sobre Iskar? — indagou ele, voltando-se para o arakkoa superior.
— Só que ele lidera os proscritos.
— E o que você sabe sobre a alta sábia Viryx, líder dos Seguidores? — perguntou Reshad ao proscrito.
A finada alta sábia, felizmente, pensou ele. Por ordem dela, os arakkoas superiores lançaram mão de sua arma, esperando exterminar os proscritos.
— Ela é a culpada de tudo isso... Hrrrrk! — Com a voz áspera, o proscrito fitava a floresta devastada.
— Sim — prosseguiu Reshad. — Na superfície, eles parecem bem diferentes, assim como vocês dois. Mas houve um tempo em que eram iguais…
***
A seguidora Viryx meneou o cetro de madeira sobre o ninho de larvas de assolador. O cristal dourado na ponta da haste pulsava com calor e energia, brilhando como um sol em miniatura. Uma vez mais, Viryx ficou hipnotizada pelo poder contido numa coisa tão pequena.
Ela mesma havia criado o dispositivo, usando artefatos de uma cultura arakkoa perdida altamente avançada: os apexis. Sinais de sua presença apinhavam o terreno ao redor de Beira-céu. A maioria do povo de Viryx considerava os artefatos apexis nada além de curiosidades. Ela estava entre os poucos que acreditavam que havia algo a se ganhar com o estudo dos apexis.
Um dia, pensou, eles vão ver as coisas como eu.
O brilho do cristal intensificou-se até que um feixe de fogo dourado explodiu da pedra, projetando-se sobre as larvas. Os pequenos vermes se revolviam, sua pele derretendo e borbulhando na presença do calor.
— Acabe de uma vez com o sofrimento deles — ordenou o seguidor Iskar.
O arakkoa de plumas roxas passava por ali, adornado com braceletes dourados, capuz azul-escuro e a indumentária que o identificava como sábio do sol. Ele era um arakkoa estranho em vários sentidos. Corcunda e pequeno para a idade. Nem o mais inteligente nem o mais promissor dos sábios, mas, a despeito de tudo isso, era amigo de Viryx. Seu irmão de ninho. A aparência peculiar e as idiossincrasias de Iskar a cativavam.
— Você não está ficando sentimental, está? — questionou Viryx.
— Claro que não, mas vamos nos atrasar — retorquiu Iskar. — Os anciões ordenaram que retornássemos ao anoitecer.
— E também ordenaram que acabássemos com as pragas. Todas elas.
— Mas nós vamos nos atrasar. Foi assim que nos metemos nessa confusão.
Viryx se arrepiou aborrecida, mas também sentiu uma pontada de arrependimento. Não era culpa de Iskar eles estarem lá, lembrou-se. Ela se atrasara para o ritual da alvorada na véspera. A punição pela transgressão não terminou com ela. Anos antes, os anciões juntaram Viryx e Iskar, como faziam com todos os jovens Seguidores. Com isso, os membros inexperientes da ordem podiam vigiar uns aos outros e garantir que todos seguissem os decretos de Rukhmar, o deus sol. Se um alcançasse um grande feito, ambos seriam cobertos de louros.
E, da mesma forma, se um transgredisse, ambos seriam punidos.
Por isso eles estavam ali, na imundície embaixo de Beira-céu, exterminando assoladores irritantes. Os insetos descerebrados muitas vezes rastejavam para dentro do território arakkoano, construindo seus ninhos fétidos entre as rochas dos pináculos.
Expurgar assoladores era uma tarefa menor, especialmente para sábios do sol como Viryx e Iskar. Eles treinaram a vida inteira para controlar o poder flamejante de Rukhmar como se fosse seu, para usar sua luz como arma contra os inimigos.
Ainda assim, uma parte de Viryx se deliciava com a tarefa. Ela estava fora de Beira-céu, longe dos olhos inquisidores dos anciões. Ela estava livre e queria saborear o sentimento pelo máximo de tempo possível.
— Eles compreenderão — disse Viryx. Ela observou as colinas verdejantes que subiam e desciam feito ondas ao redor das agulhas rochosas. Os cadáveres carbonizados dos assoladores jaziam de barriga para cima, as pernas longas e delgadas voltadas para o céu. — Fizemos um bom trabalho. Não seremos punidos por isso.
— Você não será punida... — soltou Iskar.
Viryx abriu o bico para responder quando algo veloz remexeu um emaranhado de espinheiros próximo. Outro assolador. O inseto cinzento enorme e mosqueado correu pelo chão, desaparecendo dentro da densa floresta à sua frente.
— Deixe... — pediu Iskar.
Mas Viryx já o perseguia: — Temos ordens, irmão de ninho. Todas elas.
***
Vamos ganhar chibatadas por isso, pensava Iskar enquanto cambaleava atrás de Viryx. Correção: eu vou.
Sempre foi assim. Os anciões sempre o puniam com mais rigor que sua irmã de ninho, fosse de quem fosse a culpa. Ele sabia o porquê. Viryx era brilhante. Tudo — dos estudos sobre como controlar os poderes de Rukhmar à compreensão das ciências — vinha com facilidade para ela. Até mesmo sua aparência, o vermelho suave dos olhos e a plumagem rosa, era considerada bela por seu povo. Ela era um modelo de Seguidor a caminho de grandes e gloriosos feitos.
Mas Viryx tinha seus defeitos: era desobediente, geniosa e irrequieta. Sempre que possível, ela adorava quebrar regras, provavelmente porque não haveria preço nenhum a pagar. Graças aos seus dons, pensava Iskar, os anciões amenizavam o rigor das punições impostas a ela.
Apesar de tentar incansavelmente agradar os anciões, Iskar sempre cometia algum erro tolo, afinal não era perfeito como Viryx. Ele devia invejá-la e odiá-la por seus dons, mas não. Quando outros o escarneciam, ela sempre ficava do seu lado. Sempre o protegia. Iskar desejava apenas que ela um dia compreendesse as consequências de suas pequenas aventuras e atos de rebelião.
Hoje não seria o dia.
Iskar estremeceu com o frio que se acercava dele. O denso dossel da floresta encobria os últimos raios do poente. Ele pisava com cuidado entre raízes imensas, seus pés afundando na lama úmida.
Estranhos talismãs de madeira e pedra balouçavam em cordas amarradas aos galhos acima. Efígies mal-acabadas de arakkoas. Incensos queimavam nas garras cerradas das figuras, soltando fios de fumaça na floresta. O cheiro acre marejou os olhos de Iskar.
Eles tinham ido longe demais. Esta terra pertencia aos outros: os arakkoas que caíram na desgraça de Rukhmar. Os amaldiçoados, criaturas sem asas que viviam na imundície sob as agulhas.
Os proscritos.
Iskar rogou uma prece silenciosa a Rukhmar. Em seguida, puxou o apanhador de sonhos de dentro das pesadas vestes. Suas mãos agarravam firmemente o talismã circular de madeira, adornado com tiras de couro que se entrecruzavam no centro.
Iskar ergueu o apanhador de sonhos diante de si, como os anciões lhe ensinaram. Como uma rede, ele capturaria a maldição que afligia os proscritos e o protegeria de seus efeitos fulminantes.
Em sua mente, Iskar já planejava maneiras de pendurar o apanhador de sonhos fora de sua alcândora quando retornasse a Beira-céu. Ao meio-dia de amanhã, a luz de Rukhmar purificaria o berloque conspurcado de qualquer vestígio da maldição contida.
— Somos proibidos de vir aqui sem os anciões — disse Iskar quando alcançou Viryx. — Por favor, desista.
— Calado. Veja. — Viryx apontou para a frente.
Iskar observou a floresta à frente. Tudo o que via eram árvores e sombras. — Não estou vendo aquele assolador.
— Esqueça o assolador. Encontrei algo mais interessante. Lá na frente.
Foi então que Iskar viu. Uma silhueta. Um arakkoa.
Ele se escondia entre as árvores retorcidas. Penas vermelhas e brilhantes espreitavam sob o manto maltrapilho da figura. Iskar avaliou que se tratava de um macho, dado seu porte e seu tamanho. O misterioso arakkoa também caminhava ereto, o que significava que não era um proscrito. Pertencia ao povo de Iskar.
— Ele não devia estar aqui sozinho com a cerimônia prestes a começar — disse Viryx.  — Sim... a cerimônia onde nós deveríamos estar — respondeu Iskar.
Hoje marcava o início da Graça de Rukhmar, uma época do ano em que o sol atingia o ápice, deixando os dias mais longos. Todos os Seguidores deviam comparecer à cerimônia e tomar parte nos ritos, um fato que Viryx conseguia ignorar com facilidade, a despeito dos alertas de Iskar.
— Você não quer nem um pouco saber o que ele está fazendo? — indagou Viryx.
— Na verdade, não. Quanto mais tempo ficarmos aqui, pior será nosso castigo.
Viryx não disse nada. Ela saltou adiante e bateu as asas, alçando-se até a copa das árvores.
Teimosa, pensou Iskar enquanto a seguia. Tola.
A dupla perseguiu o estranho arakkoa floresta adentro, voando de galho em galho. Iskar sabia que aquela era a área que os proscritos chamavam de Véu Akraz. Cabanas toscas, tapadas com tecido violeta coberto de runas, espalhavam-se pela floresta. A única fonte de luz — se é que era possível chamar assim — eram orbes roxos distribuídos irregularmente pela floresta.
— Por favor... — Iskar agarrou Viryx pelo ombro ao pousar ao seu lado num galho espesso.
— Parece que ele está parando.
O misterioso arakkoa embrenhou-se num grande aglomerado de cabanas de proscritos — uma aldeia, por assim dizer — e desapareceu. Iskar sentiu o pavor gélido assomar em si, atiçando seu medo. Com a respiração curta, entrecortada, ele esperava não inalar a maldição que empesteava o ar ali.
— Pense no que está fazendo. — Ele mantinha a voz baixa. — A maldição…
— Não estamos aqui para fazer nada suspeito. Rukhmar nos protegerá. Só... me espere aqui.
***
Um misto eufórico de medo e animação inundava Viryx, que se movia silenciosamente por trás das choupanas dos proscritos. Ela falara a sério. Aquelas coisas não lhe davam medo. Mesmo naquele fim de mundo, a luz e o calor de Rukhmar a protegeriam da maldição.
O arakkoa encapuzado parou diante de uma grande cabana de madeira carcomida. Pequenos pergaminhos dependuravam-se em cordas desgastadas na entrada. Ele olhou para a esquerda, para a direita, então entrou. Viryx pousou num galho desfolhado e retorcido que se estendia sobre a habitação.
Grandes retalhos de tecido violeta e azul-escuro foram costurados juntos e atirados sobre a cabana, formando um telhado. Por um espaço entre duas tiras de pano puído, Viryx pôde ver o arakkoa.
Ela inclinou a cabeça, ouvindo.
— As sombras se aglomeram... — disse o arakkoa disfarçado.
Uma nuvem de fumaça surgiu no ar, rodopiando e volteando até se transformar num proscrito de carne e osso.
Intrigante. Viryx lera contos acerca dos poderes sombrios usados pelos proscritos.
O que se materializara era um macho com penas vermelhas sem brilho. Seus dedos eram da cor de cinzas, retorcidos e desgastados feito a pele de algo já morto. Um pequeno kaliri vermelho, aparentemente recém-saído do ovo, agarrava-se ao xale roxo e dourado que adornava seus ombros.
... quando o corvo engole o dia — respondeu asperamente o proscrito. — Posso sugerir um disfarce melhor?
— O tempo é essencial, Reshad. Onde está o pergaminho?
— Só um instante, só um instante... — Aquele que se chamava Reshad baixou a voz.
Viryx esgueirou-se junto da cabana para ouvir o que estava sendo dito. Um pouco mais. Um pouco...
O galho estalou sob seu peso. O arakkoa disfarçado levantou a cabeça.
Por um breve e inquietante momento, seus olhos e os de Viryx se cruzaram.
Então ele desapareceu; irrompeu da cabana, atirou longe o manto e voou rumo ao dossel da floresta.
Viryx soltou um palavrão. Despojando-se de toda a sutileza, ela saltou no ar e sobrevoou a aldeia. Espessos emaranhados de galhos arranhavam suas costas e suas asas enquanto ela o caçava.
A floresta densa pouco contribuía para a visibilidade. Saltando de galho em galho, ela se chocava contra as folhas, os olhos quase fechados para se proteger dos detritos. Viryx remeteu contra um aglomerado de galhos e, sem querer, abalroou o outro arakkoa pelas costas.
O macho era veloz. Logo ele estava de pé, uma das mãos erguidas para o céu. Fogos-fátuos enrolaram-se feito serpentes das nuvens em suas garras quando ele começou a evocar o poder de Rukhmar.
Por Rukhmar, pensou Viryx. Ela o reconhecera. É Ikiss. Um Seguidor!
— Mandaram você atrás de mim? — O macho estalou o bico, eriçando as penas da crista para deixar sua figura mais imponente.
— Eu... — Viryx tropeçava nas palavras. — Quem?
O outro arakkoa estreitou os olhos. — Por que você está aqui?
— Eu poderia fazer a mesma pergunta. — Viryx deslizou a mão na direção da pequena adaga de osso presa ao cinto. Seus olhos mantinham-se fixos no outro arakkoa. Ela pesou as opções. Ele era inimigo de Beira-céu? Ou fora mandando ali para tratar de assuntos oficiais em nome dos Seguidores? Era uma possibilidade, ainda que remota. Afinal de contas, ele era um Seguidor.
Ao longe, ela ouviu vozes e o bater de asas. Galhos estalavam e farfalhavam.
— Não... — Ikiss girava, perscrutando a abóbada verde que cobria a floresta. — Eles sabem. Eles sabem.
O arakkoa correu, agarrando Viryx pelas vestes de sábia do sol antes que ela sacasse a adaga. — Terokk. O antigo rei. Mentiras... Tudo mentira. O que ele era. O que fez. A maldição.
Quatro garragumes, guerreiros de elite dos Seguidores, irromperam através do dossel. Traziam em cada mão uma laminasa, arma em forma de crescente adornada com filigranas de ouro.
— Tudo mentira! Tudo... hraaaaaak! — As palavras de Ikiss desembocaram num guincho estridente quando um dos guerreiros acertou sua cabeça com o cabo da laminasa. Ikiss caiu de joelhos, arquejando.
Um segundo garragume cobriu a cabeça de Ikiss com um capuz de couro negro, tapando seus olhos, enquanto outro prendia o bico do prisioneiro com um anel de metal gravado com runas, prendendo-o. O último amarrou os braços de Ikiss com uma tira de um espesso cordão carmesim.
— Viryx! — Iskar pousou ao lado dela. — Eles me encontraram quando você entrou na aldeia. Parece que estavam atrás dele há algum tempo.
— E vocês quase estragaram nossa caçada. — Um dos garragumes aproximou-se de Viryx, avantajando-se sobre ela. — Vocês não deviam estar aqui.
Viryx teve que recuar para não se cortar nas bordas irregulares da armadura cor de cobre que cobria o peito do garragume, elevando-se acima de seus ombros. — Estávamos caçando assoladores... — disse com a voz embargada. Pela primeira vez, ela sentiu medo.
— Não vejo assolador nenhum. — O guerreiro girou a cabeça como se olhasse em volta. Ele se virou para os outros garragumes e apontou para Viryx — Vamos levar os dois. Eles estiveram com os amaldiçoados.
***
O estalo da Cauda de Rukhmar ribombou na cabeça de Iskar. O chicote rasgou suas costas como garras de fogo, chamuscando carne e penas. Uma dor abrasadora explodiu por trás de seus olhos.
Ele gritou de agonia, mesmo tendo se convencido de que permaneceria em silêncio e enfrentaria o castigo com dignidade. A mesma promessa que fizera e quebrara na véspera. E no dia anterior.
— Terminei. — Uma voz suave mas severa ecoou na escuridão.
A dor cegante refluiu. A visão de Iskar retornou lentamente, absorvendo a luz fraca que iluminava a sala. Um único orbe solar, ardendo como uma miniatura em vidro do sol, dependurava-se acima da câmara sem janelas. Era um dos muitos recônditos da Grande Torre de Beira-céu, onde ficavam as academias, câmaras ritualísticas e salas de disciplina dos Seguidores de Rukhmar.
Iskar conhecia muito bem as últimas.
Dois garragumes viraram Iskar de frente para o seu algoz: o alto sábio Zelkyr. O governante de Beira-céu, um arakkoa cuja voz podia mudar a lei, conceder vida ou trazer a morte, fitava o sábio do sol. Iskar tremia na presença do arakkoa, a voz viva de Rukhmar.
Zelkyr trajava uma veste laranja ornamentada sobre as penas turquesa de pontas amarelas. O tecido brilhava sob a luz do orbe solar, um encantamento sutil imbuído nas tramas que fazia Iskar pensar no céu da alvorada. Na mão direita, o alto sábio empunhava a Cauda de Rukhmar. Uma intrincada filigrana dourada espiralava-se ao redor do cetro. Penduradas na ponta, havia três longas tiras de fogo crepitante.
— Você me decepcionou, seguidor Iskar — disse Zelkyr.
Não foi culpa minha!, Iskar quis gritar. Eu tentei... Tentei impedi-la…
Mas ele não podia argumentar com a voz de Rukhmar.
— Não vai acontecer de novo — respondeu Iskar. — Eu prometo.
— Quantas vezes ouvi você dizer isso? — Zelkyr suspirou.
— Eu vou tentar... vou me empenhar. — Iskar se curvou até o bico tocar o chão. — Pela graça de Rukhmar, eu vou tentar.
— Veremos — retrucou o alto sábio. — Tenho uma tarefa pra você. Uma tarefa importante.
— Qualquer coisa.
— Você deve vigiar Viryx. Observar suas atividades: onde ela vai, com quem fala, o que faz. Venha diretamente a mim se notar algo estranho.
— Estranho?
— Ela esteve entre os proscritos. Um sacerdote solar conduziu ritos de purificação nela, por isso a maldição não nos oferece nenhum perigo. Mas é possível que haja efeitos residuais na mente dela.
Algo inquietava Iskar. Será que o herege — Ikiss — fizera algo a Viryx? Iskar não sabia onde a tola tinha se metido. Mas também não lhe cabia questionar. Se o alto sábio considerasse a informação relevante para Iskar, ele já teria lhe contado.
— S-sim... — concordou Iskar. — Eu sou seu, Alto Sábio. Sou seu para cumprir a vontade de Rukhmar.
Mais tarde, Iskar vagou até um dos muitos terraços abertos da Grande Torre. O corpo inteiro estremecia quando seus pés tocavam a plataforma de pedra, cada passo enviando um raio de dor rumo às suas costas.
Ninguém deu a menor atenção a ele e seu claudicar. Alguns Seguidores perambulavam por outras partes do terraço, quase todos discutindo notícias da captura de Ikiss.
Iskar ignorou as discussões e caminhou até o imenso relógio de sol de bronze que dominava o centro do plataforma. Entalhes ao redor do dispositivo marcavam diferentes horas do dia. Sempre que a sombra do relógio cobria um deles, os Seguidores faziam uma pausa para dizer preces a Rukhmar, agradecer por ela compartilhar com os arakkoas sua luz.
Iskar repetiu as invocações para si mesmo, compensando as que tinha perdido enquanto recebia o castigo na sala de disciplina. Quando terminou as orações, ele caminhou até a beirada do terraço e apoiou-se na grade dourada.
Uma brisa forte varreu a plataforma, desalinhando seu capuz e agitando freneticamente os estandartes bordados pendurados no terraço superior.
Um kaliri carmesim pousou na grade com um grasnido. Iskar afagou as penas do pássaro e respirou fundo, tentando relaxar, buscando encontrar algum sentido nos últimos dias.
Abaixo, o mar verde, vermelho e amarelo da floresta se expandia em todas as direções, interrompido apenas pelas garras rochosas de Beira-céu. Arakkoas pairavam acima e abaixo de onde Iskar estava. Entre eles, duplas de jovens Seguidores.
Iskar se perguntava se algum deles recebera a mesma tarefa que ele. Cuidar de um irmão ou irmã de ninho — isso fazia parte da vida de um Seguidor. Era para isso que os seguidores de Rukhmar eram arranjados em duplas. Eram treinados para detectar os sintomas da maldição: letargia, morosidade, questionamentos às ordens dos anciãos. Esses eram os primeiros sinais de que a moléstia estava presente, ideias inculcadas em todos os arakkoas desde que saíam do ovo.
Mas espionar ativamente cada ato de sua irmã de ninho... relatar cada passo seu... isso era outra coisa.
Fazendo isso, ele estaria traindo Viryx? Ou protegendo-a?
***
Mentiras... Tudo mentira...
A voz perturbara os pensamentos de Viryx pelos últimos três dias. Ela passara esse tempo isolada em sua alcândora — o castigo imposto a ela pelo alto sábio. Todos os dias um sacerdote solar vinha realizar rituais de purificação a fim de expurgar quaisquer resquícios da maldição que ela carregasse.
Em meio a tudo isso, os pensamentos de Viryx mantinham-se fixos em Ikiss. Ela não nutria nenhuma simpatia pelo herege. De acordo com o sacerdote solar, Ikiss andara conspirando com os proscritos contra os Seguidores. Ele seria exilado em alguns dias. Suas asas seriam cortadas e ele seria rechaçado. Era o que ele merecia — isso e muito mais.
Mas o que havia levado alguém como Ikiss, tão talentoso e respeitado entre a ordem, a jogar a vida fora? E o que era o pergaminho que ele buscava? Como algo assim podia ser tão perigoso?
O mistério a consumia, assombrava-a. Ela não descansaria até saber a resposta.
Então, no dia em que foi liberada do isolamento, ela se viu atraída para os recônditos mais profundos do Grande Arquivo de Beira-céu, cercada de tomos velhos e poeirentos.
Viryx esfregou os olhos, espreguiçando-se diante da pilha de livros sobre a mesa na baia de leitura que ocupava. Uma das muitas escavadas nas paredes rochosas do arquivo. Do lado de fora, centenas de ninhos em forma de lágrima, repletos de tomos e pergaminhos, pendiam das paredes, espiralando-se câmara acima. Kaliris voavam entre os ninhos, entregando livros aos visitantes e recolocando no lugar os que foram deixados nas alcovas de leitura.
Ela observou os pássaros altamente treinados por um instante, pensando sobre tudo o que lera. Alguma coisa estava acontecendo, ela tinha certeza. Algo muito estranho.
Viryx inclinou-se para a frente e releu uma passagem sobre Terokk que encontrara em Histórias de Antigos Reis. O livro contava a história do lendário rei arakkoano Terokk, outrora governante de Beira-céu. Seus muitos crimes e atos depravados eram descritos em detalhes. Sob seu jugo, Beira-céu era pintada sob uma luz de sofrimento e tirania. Só quando os bravos Seguidores de Rukhmar ergueram-se para desafiar Terokk a era trágica teve fim. O rei foi destronado, expulso de Beira-céu e todos os arakkoas foram libertados da opressão. Rukhmar então deu as costas a Terokk. Por fim, ele tornou-se um proscrito, débil e enlouquecido pela maldição.
Nada disso era novidade para Viryx. Ela ouvira incontáveis vezes a história. Estranho era todos os relatos históricos acerca do evento serem escritos exatamente com as mesmas palavras. Histórias, Tirania de Terokk, Libertação de Rukhmar — eram documentos supostamente escritos com uma diferença de décadas, séculos.
Os capítulos sobre Terokk, contudo, eram idênticos.
Viryx imaginou Ikiss sentado no arquivo, lendo e relendo os mesmo livros e pergaminhos que ela. Primeiro, o que o levara até ali? Mais importante ainda, qual fora seu passo seguinte?
As histórias serem idênticas era inusitado, mas isso não lhe dava nenhuma informação nova. Ela precisava procurar respostas em outro lugar. O Grande Arquivo era público, aberto a todos os arakkoas. Porém havia outros repositórios de conhecimento, esconderijos com tomos raros acessíveis somente aos Seguidores de Rukhmar.
Viryx tamborilava as garras na mesa, pensando. Penetrar nos arquivos dos Seguidores seria muito mais difícil do que vir aqui. Os escribas solares que vigiavam tais lugares questionariam seu interesse súbito por Terokk. Isso poderia despertar suspeitas nos anciões.
Isso sim seria um desafio, pensou ela, sentindo uma onda de animação.
Viryx enfiou os pergaminhos e tomos num pequeno cesto pendurado fora da alcova de leitura. O kaliri viria mais tarde para guardar os escritos em seus devidos lugares.
Quando saltou da alcova e alçou voo rumo à entrada do Grande Arquivo, seus pensamentos se voltaram para Iskar. Ela estivera tão imersa naquele mistério que não o procurara.
O sacerdote solar lhe contara do destino de Iskar. Três dias de isolamento e chibatadas da Cauda de Rukhmar. Era culpa dela, e tinha consciência de que seu castigo não fora nada perto daquilo. Viryx prometeu a si mesma não envolver o irmão de ninho na nova investigação.
Ela o procuraria mais tarde, decidiu. Agora, tinha perguntas que demandavam respostas.
***
Das sombras de sua alcova de leitura, Iskar viu Viryx adejar e partir. Ele a seguia desde que ela fora liberada do isolamento. O alto sábio não o proibira de falar com ela; Iskar escolheu sozinho não fazê-lo. Ele não acreditava ser capaz de manter sua missão em segredo.
Vendo-lhe partir, uma vozinha em sua cabeça quis convencê-lo a contar a Viryx tudo sobre a incumbência que o alto sábio lhe dera. Outra, contudo, muito mais potente, ordenava que ele obedecesse.
Foi o que ele fez.
Quando se certificou de que Viryx deixara o Grande Arquivo, Iskar emergiu da alcova e, desenhando um círculo pela biblioteca, voou em direção ao nível mais baixo, rumo à câmara onde Viryx passara longas horas.
Quase todos os outros espaços de leitura estavam vagos. Por que Viryx escolhera um bem no fundo? Por que tanto isolamento?
Um kaliri chegou à alcova um instante antes de Iskar e começou a remexer com o bico no cesto pendurado do lado de fora. Ele enxotou o pássaro e colheu os pergaminhos e volumes. Lendo título por título, Iskar enfileirava os textos sobre a mesa.
Estranho. Eram todos histórias sobre o tempo que os Seguidores ascenderam ao poder em Beira-céu. O problema era que Viryx não gostava de história, a menos que fosse relacionada à cultura perdida apexis. Esse tipo de livro era especialidade de Iskar. Os estudos acadêmicos eram uma das poucas coisas em que ele se sobressaía.
Um gorjeio baixo, irrequieto, ressoou na garganta de Iskar. Ele apanhou o maior dos tomos, Histórias de Antigos Reis. Em seguida, ergueu o livro fechado, examinando-o de todos os lados. Pela dobra na lombada, conseguiria descobrir que página Viryx passara mais tempo lendo. Um truque ensinado por um Seguidor mais velho, uma maneira de os anciões verificarem se os filhotes estavam estudando os capítulos e seções ordenadas durante a escolarização.
Iskar pulou para a seção que Viryx estava lendo. Um nome saltou diante dele.
Terokk.
***
Nos dois dias seguintes, Iskar tornou-se a sombra de Viryx. Ele seguiu seu rastro de perto, observando todas as suas ações. Ela não voltou mais ao Grande Arquivo. Muitas de suas horas, porém, foram despendidas em sua alcândora, sozinha. Temendo parecer suspeito, Iskar não tentou espioná-la ali. Mas tinha um palpite do que ela andara fazendo. Pelo pouco que sabia da sua pesquisa, Viryx estivera investigando o antigo rei Terokk e a história do seu exílio.
Isso, por si só, não era motivo de desconfiança. Desde a primeira infância os arakkoas aprendiam sobre Terokk. Mas o modo como ela conduzia sua pesquisa, todo o sigilo, a reserva... havia algo estranho. Viryx parecia evitar contato com outros arakkoas sempre que possível, emergindo só tarde da noite.
Não seriam sinais da maldição? Iskar queria crer que não. Rukhmar adorava Viryx. Ela era abençoada. A deusa do sol não protegeria alguém tão especial quanto Viryx da maldição?
A pergunta pesava em Iskar enquanto ele ascendia até os níveis superiores da Grande Torre para ter com o alto sábio. Havia passado a noite em claro, pensando no que diria a Zelkyr.
O que poderia dizer, além da verdade?
Iskar avistou o alto sábio no terraço mais alto da torre, uma plataforma decorada com vidro colorido disposto na forma de uma imensa pluma. Acima, estandartes ornados e pedras solares reluzentes pendiam de longas hastes de madeira presas à superfície rochosa da agulha.
A decoração era esplendorosa, mas não tocava Iskar. Sua atenção estava inteiramente voltada para uma coisa: uma gaiola de ferro coberta por um tecido negro, pendurada num poste de madeira acima do terraço.
Ikiss estava lá dentro desde a sua captura. E lá permaneceria, imerso apenas em escuridão, até o dia do seu exílio. Um sábio do sol ancião encantou a fazenda negra usada para cobrir a gaiola de modo que repelisse todo o calor e toda a luz. Era parte de sua penitência: estar tão alto, tão perto do abraço de Rukhmar, mas não poder senti-lo.
Iskar estremeceu diante da ideia de ser tolhido do sol daquela maneira. Ele ouvira que arakkoas enlouqueciam em gaiolas. Arrancavam as próprias penas.
Por um instante, ele imaginou Viryx na gaiola, presa por ter demonstrado sinais da maldição. O coração de Iskar tornou-se pesado com a terrível sensação de solidão.
— Seguidor Iskar — disse o alto sábio Zelkyr.
Iskar fez força para desviar os olhos da gaiola. Ele ajoelhou-se, curvando a cabeça.
— Levante-se. — O alto sábio gesticulou para que ele se aproximasse. — O que você descobriu?
— Eu a vigiei — respondeu Iskar.
— E?
— Ela mudou.
O alto sábio não exibiu nenhum sinal de surpresa. Ele permanecia estoico como sempre. — Como?
— Ela está... — Iskar hesitou. — Ela mudou. Está mais responsável e obediente que nunca.
A mentira simplesmente irrompera, como se alguém tivesse tomado controle de seu corpo e sua mente, alguém que ele não conhecia. Enquanto falava, mesmo vacilante com o choque e a apreensão, Iskar não parou. — Ela tem passado muito tempo rogando preces a Rukhmar. Eu vi com meus próprios olhos.
— Você tem certeza? — inquiriu Zelkyr, fixando os olhos em Iskar.
Em qualquer outro momento, aquele olhar teria massacrado Iskar, obrigando-o a implorar por perdão.
Mas algo desconhecido, revigorante, emergiu por entre a aversão e a vergonha que governavam seus pensamentos. Pela primeira vez na vida, ele sentiu-se forte. O alto sábio, o arakkoa mais poderoso de todo o mundo, acreditara nele. Iskar, que fora objeto do escárnio dos seus iguais, tantas vezes ignorado pelos anciões, tinha poder sobre a voz de Rukhmar.
— Tenho certeza. — As palavras de Iskar soavam firmes e verdadeiras.
O alto sábio virou-se de costas, dispensando-o como faria a um kaliri. — Continue a vigiá-la.
Depois de sair do terraço, a força de Iskar desvaneceu. Uma onda de pânico tomou conta dele.
O que foi que eu fiz? Rukhmar que me perdoe...
Ele pousou numa pequena plataforma na parte baixa da Grande Torre para recuperar o fôlego. Seu estômago estava revirado. Por um instante, achou que verteria o café da manhã.
Foi por um motivo justo, dizia a si mesmo.
Não era mais possível desfazer a mentira. No entanto, ele angariara uma segunda chance para Viryx. Se pudesse tirá-la do caminho temerário por onde se embrenhava, se pudesse salvá-la, então tudo valeria a pena.
***
A canção suave dos mensageiros do vento flutuava por Beira-céu. Viryx ouviu-a de dentro da sua alcândora. Ela sabia o que significava: o herege seria exilado amanhã, ao nascer do sol.
Viryx estava surpresa por já estar acontecendo. Ela perdera noção do tempo, e obtivera pouco progresso. Sua investigação não rendera nada de substancial. Percorreu os arquivos dos Seguidores tão minuciosamente quanto pôde, mas não encontrou nada além de referências a textos perdidos sobre Terokk. Escritos considerados apócrifos pelos Seguidores. Viryx não sabia nem mesmo se eles existiam em algum ponto de Beira-céu.
Ela caminhava de um lado para o outro em sua pequena alcândora, pensando no que fazer em seguida. O lugar estava um caos. Lençóis dependuravam-se da beirada do ninho em forma de casulo preso ao teto. Tomos abertos e fragmentos de pergaminho estavam amontoados no chão. A mesa de leitura estava apinhada de artefatos apexis quebrados, ferramentas, penas e tigelas com comida semiapodrecida.
Mas, a bem da verdade, ela simplesmente não se importava. Chegar a um beco sem saída daquela maneira a deixava furiosa. Só aumentava o poder do mistério sobre ela. Nada — absolutamente nada — mais importava.
— Viryx! — chamou uma voz da entrada da sua alcândora.
Pelas janelas de vidro leitoso que ladeavam a entrada, ela pôde ver Iskar sentado na alcova do lado de fora. Viryx permitiu que ele entrasse, sentindo-se culpada pelos dias em que evitara qualquer contato com o irmão de ninho.
— Iskar. — Ela pensou em algumas desculpas, pequenas mentiras para explicar a distância que mantivera por tanto tempo. — Desculpe por não ter procurado você. O sacerdote solar...
— Kraaaak. Nada de mentiras! — interrompeu Iskar, irrompendo no ninho em seguida. — Eu sei o que você tem feito.
Viryx permaneceu um instante em silêncio. Ela não sabia exatamente o que dizer. Por fim, perguntou: — Como?
— Como? Porque o alto sábio ordenou que eu descobrisse. Que vigiasse você. Ele acha...
— Me vigiasse? — As palavras de Viryx estavam encharcadas de veneno. — E você não me contou?
— Você quer ouvir? — Iskar aproximou-se, baixando o tom de voz. — Ele temia que você estivesse amaldiçoada.
— Amaldiçoada? — Viryx deixou uma gargalhada escapar. — Você não pode estar falando sério.
— Eu não acreditei nele. Foi por isso que mantive sua investigação sobre Terokk em segredo. — Iskar deu as costas a Viryx. O arakkoa soltou um suspiro longo e cansado. — Eu menti para o alto sábio.
Isso pegou Viryx de surpresa. Ela jamais imaginara que Iskar teria coragem de fazer algo tão arriscado.
— Não é uma coisa boa — disse Iskar, como se lesse seus pensamentos. — Apenas me diga por que está pesquisando sobre Terokk.
Viryx pensou por um instante e decidiu que Iskar merecia saber a verdade. Ela explicou o que acontecera com Ikiss no Véu Akraz, seu encontro com o proscrito e as palavras enigmáticas que ele proferiu antes de ser capturado. Então revelou suas descobertas acerca das semelhanças entre todos os relatos da queda de Terokk.
— Não é estranho que sejam todas iguais? — questionou Viryx ao terminar.
— Talvez. — Iskar circulou a mesa de leitura. O arakkoa cheirou as tigelas de comida e estremeceu, nauseado. — Mas, se for um evento conhecido, faz sentido as histórias o relatarem com precisão.
— Existe uma diferença entre precisão e... — Viryx calou-se, sem saber como dizer o que pensava.
— E o quê?
— E invenção.
Iskar sacudiu a cabeça. — É evidência de um registro eficiente. O que exatamente você está procurando?
— Eu não sei — respondeu Viryx. — Talvez o pergaminho que Ikiss queria... Talvez as respostas estejam lá.
Iskar deslizou as garras entre as penas de sua cabeça. — Por que você acreditaria no herege, em primeiro lugar? Ele queria manipular você, semear a dúvida nos seus pensamentos. — Ele abriu os braços, indicando aposento austero. — Você está obcecada. Louca. Limpe sua mente e prepare-se para o exílio amanhã.
— Hyyeek… Não preciso de você para cuidar de mim. — Viryx deixou a irritação vencer por um instante, fazendo com que as palavras saíssem muito mais amargas do que pretendia. No entanto, a conversa a cansava. Ela estava perdendo tempo — tempo que poderia ser investido em sua investigação.
Os olhos de Iskar se arregalaram, incrédulos. — Seria bom se você, pelo menos dessa vez, pensasse nas consequências dos seus atos. Se pensasse em como eles afetam os outros.
A raiva se assomou em Viryx, e sua voz se tornou um guincho estridente: — Eu não pedi para você mentir.
— Eu... — Iskar a encarava, e ela pôde ver a dor em seus olhos.
Sem dizer nenhuma palavra, ele se virou e partiu.
— Iskar — clamou Viryx, mas ele se fora.
Ela caminhou até a janela e observou-o voar por entre uma dezena de kaliris que desenhavam círculos no ar. Viryx sabia que deveria estar agradecida. Ela estava. Ele correra um grande risco por ela.
Mas agora ela não podia parar. Não quando ainda havia a possibilidade de encontrar respostas, mesmo que fossem insuficientes.
***
Antes da alvorada, praticamente todos os Seguidores de Rukhmar se reuniram na câmara cerimonial da Grande Torre para testemunhar o glorioso exílio. Como ditava a tradição, os anciões assumiram suas posições na beirada da plataforma de rocha e cristal da câmara, onde seria realizado o ritual. Em filas perfeitamente ordenadas, eles observavam a dupla de garragumes que segurava o herege pelas correntes presas aos seus pulsos. Dois imensos arakkoas de pedra, estátuas portando cetros em forma de crescente adornados com orbes solares, encaravam o condenado.
O restante dos Seguidores empoleirava-se nos rebordos acima da plataforma. Eles se organizavam por vocação. Iskar juntou-se a um grupo de sábios do sol no lado leste do pavimento ritualístico. À direita estavam os escribas solares; à esquerda, os guerreiros garragumes.
Penetras apareceram, esperando que ninguém notaria. Alguém haveria de perceber. Era sempre assim. Eles sentiriam o toque ardente da Cauda de Rukhmar depois que o ritual de exílio terminasse.
Iskar procurou na multidão algum sinal de Viryx, mas não encontrou nada. Ele ainda estava com raiva, ainda estava furioso com o egoísmo dela... mas também estava preocupado. Ela seria tola a ponto de perder o exílio? Ele não achava que sua obsessão era tão extremada. Na verdade, ele começava a se arrepender de não a ter procurado.
Um silêncio abateu-se sobre os Seguidores quando o alto sábio Zelkyr chegou. Portando trajes cerimoniais reluzentes, tiras prateadas da armadura curvavam-se sobre seus ombros. Na cabeça, uma coroa de metal irregular na forma de longas garras.
Zelkyr marchou adiante, a Garra de Rukhmar firmemente segura em sua mão direita. Uma faixa de ouro espiralava-se pela haste do longo cajado, ornado também com gemas azuis feito o céu em dia limpo. Na ponta, uma lâmina curva de pedra. Era uma relíquia sagrada de tempos imemoriais; diziam que fora feita das garras e penas de Rukhmar.
O alto sábio parou diante do herege. Ikiss, ainda com a cabeça coberta pelo capuz, parecia muito mais magro do que da última vez que Iskar o vira. Faltavam penas em partes do seu corpo, como se ele as tivesse arrancado. A plumagem, outrora vermelha e vívida, reduzira-se a um bordô lamacento.
— Contemplem! — O alto sábio ergueu os braços.
Lá fora, o sol começava a despontar. A luz penetrava pela redoma de cristal amarelo construída no topo da Grande Torre. Raios dourados reluziam nas superfícies polidas de cobre e bronze da câmara. Em pouco tempo, tudo à vista parecia brilhar com a luz de Rukhmar.
— A alvorada chegou — prosseguiu o alto sábio. — Rukhmar regressou para mais um dia, como prometeu. Sua luz agraciará os céus e nos guardará da escuridão. Tudo o que ela pede em troca, tudo o que jamais pediu, é que abracemos sua vontade. Porém, eis aqui um dos que deram as costas a ela. Um dia, ele foi amigo de alguns de vocês. Professor. Membro da nossa ordem. Seu nome é Ikiss, e ele carrega a maldição dos proscritos.
Um chilreado baixo formou-se entre os outros Seguidores. Os olhos de Iskar percorreram novamente a multidão em busca de Viryx.
Onde está você?
O alto sábio ergueu a voz para silenciar os Seguidores: — Que isso seja uma lembrança de que devemos permanecer vigilantes, pois a maldição pode enterrar suas garras mesmo nos maiores entre nós. Ikiss, que tanto prometia, conspirou com os proscritos para arrancar as dádivas de Rukhmar de nós e deixar em seu rastro nada além de sombra e desespero. Eu me pergunto, então... de que servem suas asas se ele fechou os olhos para a luz de Rukhmar? Que serventia têm suas asas se ele prefere rastejar na lama com seus aliados terrestres a alçar-se à gloria dos céus?
O alto sábio se aproximou do herege e gesticulou para os garragumes próximos. Eles deram um passo atrás, puxando violentamente as correntes presas a Ikiss, forçando-o a estender as mãos com as palmas viradas para cima. As asas rubras de Ikiss estiraram-se sob seus braços, as penas quase tocando o solo.
— Ele não precisa das asas, pois não é mais filho da nossa mais preciosa e benevolente deusa. — O alto sábio Zelkyr ergueu a Garra de Rukhmar. A lâmina curva da arma aproximou-se da axila do herege. Zelkyr deslizou a Garra de Rukhmar lentamente por baixo do braço de Ikiss, parando no limite da asa.
De um só golpe, a lâmina varou o braço de Ikiss. A Garra rasgou penas, pele e ossos. O sangue se espalhava pelo chão, acumulando-se entre os intrincados desenhos entalhados em cristal e rocha. A asa do herege foi ao chão.
Mesmo com o anel de metal prendendo o bico do herege, Iskar pôde ouvir gritos abafados.
Os olhos do alto sábio fitaram os Seguidores e, por um instante, detiveram-se em Iskar.
— Este é o destino reservado àqueles que dão as costas a Rukhmar — disse Zelkyr.
Em seguida, começou a trabalhar na asa que sobrou.
***
Véu Akraz.
Viryx esgueirava-se pela floresta ao redor da aldeia. O grosso manto cinza que portava fora trazido de Beira-céu. Uma precaução necessária, convencera-se ela. Ninguém a seguira — pelo que sabia, ao menos. Mas ela não estava disposta a arriscar.
Foi por isso que ela decidiu ir até o Véu Akraz durante a cerimônia de exílio. Naquele exato instante, o alto sábio estava decepando as asas de Ikiss. Logo os garragumes o carregariam para fora de Beira-céu e o atirariam ao chão, onde ele poderia viver entre os proscritos. Os Seguidores continuariam na Grande Torre, celebrando a grandeza de Rukhmar noite adentro.
Viryx seguia pela floresta de cabeça baixa. Ela ia de sombra em sombra, evitando os grupos de proscritos que perambulavam pela área. Havia mais deles do que da primeira vez em que estivera na aldeia. Naquele dia, sua única preocupação era seguir Ikiss. Quase não deu atenção ao que havia ao seu redor.
Dessa vez, ela prestava atenção a tudo. Um cheiro de mofo e podridão sufocava o ar da aldeia. Proscritos coxeavam por todos os lados, corpos desfigurados pela maldição. Tudo que lhes dizia respeito era perverso, obsceno. Observando-os em seus afazeres, Viryx sentiu-se mal.
Ela encontrou a cabana aonde Ikiss a levara, com os pergaminhos pendurados na entrada. Lá, procurou qualquer sinal de proscritos. Ao certificar-se de não haver nenhum, esgueirou-se para dentro da habitação dilapidada.
Não havia ninguém lá. Cestos trançados em forma de lágrima, repletos de tomos e pergaminhos mofados, balançavam das vigas de madeira.
— Alguém aí? — disse Viryx.
Nada.
Quais foram as palavras que Ikiss dissera? As sombras se aproximam... As sombras se assomam...
— As sombras se aglomeram... — proferiu ela suavemente na cabana vazia.
Uma fumaça densa encheu o ar à sua frente, coalescendo para formar a silhueta de um proscrito. Cada vez mais nítida, a forma sombria por fim tornou-se tangível. Diante de seus olhos, Reshad materializou-se, o minúsculo kaliri vermelho pousado em seu ombro.
— ...quando o corvo engole o dia — disse Reshad. — A quem devo a honra?
— Um do meu povo veio aqui em busca de um pergaminho. Estou aqui no lugar dele. — Viryx aproximou-se do desprezado arakkoa, puxando o capuz do manto e eriçando as penas da cabeça para intimidá-lo. — Onde está?
— Ah, era você que o seguia — respondeu Reshad. O tom casual, quase debochado, irritou Viryx. — Por que você acha que eu vou dar o pergaminho a você?
Num piscar de olhos, Viryx sacou a adaga de osso do cinto e enterrou a lâmina no pescoço do proscrito. — Posso ser muito persuasiva. E...
Sentindo algo pontiagudo forçar seu peito, ela parou de falar. Viryx olhou para baixo. Reshad pressionava uma pequena adaga negra, curvada feito uma garra de kaliri, contra ela.
— Posso ser um acadêmico, mas isso não quer dizer que eu seja tolo — disse Reshad.
— Talvez não. — Viryx esticou a mão livre lentamente na direção do pequeno kaliri e o agarrou. — Mas devo insistir que solte a adaga e me dê o que quero.
Viryx apertou o kaliri. O passarinho piou de dor, debatendo-se inutilmente na mão da arakkoa.
— Basta! Basta! — Reshad recolheu a adaga. — Eu estava apenas confirmando suas intenções. Se julgasse que você é inimiga, não teria aparecido. Você disse as palavras certas.
Viryx soltou o kaliri. Apesar de ter abaixado a adaga, ela continuava em sua mão. — O que elas querem dizer?
— São versos de uma canção, de um tempo anterior à... à cisão. — Reshad estirou os braços, fitando os arredores. — Antes da maldição, quando os arakkoas eram algo mais. Quando eram mais sábios. — Ele enfiou a mão nas vestes esfarrapadas e retirou um rolo de pergaminho antigo. Um invólucro de couro tingido de roxo cobria o papel. — Com isso, talvez esse tempo possa voltar.
Viryx tomou o pergaminho. Ela o virou, examinando as runas desbotadas gravadas no estojo.
— Duvido que você seja mesmo amiga do outro arakkoa que esteve aqui. Mas o fato de que está aqui, mesmo correndo o risco de ser exilada, para mim é suficiente. Você busca a verdade. Nos dias de hoje, isso é raro entre os habitantes das agulhas — disse Reshad. — Esse pergaminho pode mudar tudo. Una-nos novamente.
"Una-nos novamente". O tolo estava mesmo pensando...
Um coro de guinchos estridentes do lado de fora interrompeu a linha de raciocínio de Viryx. Ela prendeu o pergaminho no cinto e saiu da cabana. Proscritos corriam em todas as direções. Acima, algo imenso irrompia do dossel carmesim e esmeralda da floresta.
Algo alado.
Viryx soltou um palavrão, livrando-se do disfarce para poder abrir as asas e, alçando voo, elevou-se acima das cabanas do Véu Akraz. Ela pousou graciosamente numa árvore logo depois da aldeia, dispersando uma revoada de kaliris que limpava suas penas entre os galhos.
Antes que Viryx pudesse voar novamente, alguém agarrou seu braço. Ela rodopiou, repelindo o agressor e, ao mesmo tempo, evocando uma bola de fogo de Rukhmar na palma da mão.
Foi então que ela o viu. Iskar.
O irmão de ninho olhava fixamente para ela, os braços estendidos, agarrando-se aos galhos para tentar se equilibrar. — Você não deveria estar aqui! — Sua atenção voltou-se para o pergaminho preso ao cinto de Viryx. — Foi por isso que você se arriscou tanto? O que é?
— E-eu... ainda não sei. — Enquanto falava, a onda de empolgação que Viryx sentia refluiu. Medo e desgosto tomaram seu lugar. Ela percebeu que parecia muito tola, que fora muito tola.
***
Só depois de retornarem a Beira-céu e à segurança da alcândora de Viryx eles ousaram abrir o pergaminho. Sob a luz do orbe solar, eles leram o pergaminho velho. Tratava-se de uma compilação de diversos documentos antigos. A maioria falava de Terokk e Lithic, sua filha.
Era uma versão dos eventos nitidamente distinta daquela que Iskar e seu povo aprendiam, retratada nos arquivos e em outros escritos oficiais. Para começar, nenhuma das histórias que ele conhecia mencionava que Terokk tinha uma filha. Aqui, ele não era um tirano, mas um glorioso rei. Um governante corajoso e gentil. Foi um tempo de muito respeito para os Seguidores de Rukhmar, mas eles foram consumidos pela ânsia por mais poder e mais prestígio.
Só uma coisa os atrapalhava: Terokk.
— Os Seguidores destronaram o rei para atingir seus objetivos. Eles o aprisionaram e, com ele, Lithic e os aliados reais mais próximos. Eles os atiraram do céu nos poços do Vale dos Sethekk... — leu Viryx em voz alta.
Vale dos Sethekk? Iskar conhecia esse lugar. Era proibido ir lá. Um atoleiro pantanoso a leste de Beira-céu que, de acordo com os Seguidores, estava mergulhado em sombras. As lendas diziam que Sethe, o deus maligno, inimigo de Rukhmar, morrera lá eras atrás, conspurcando a terra com seu sangue.
— Sem as asas para mantê-la no ar, Lithic não sobreviveu. A queda estilhaçou seus ossos. Terokk, contudo, sobreviveu — prosseguiu Viryx. — Ao tocar as águas amaldiçoadas do vale, ele contraiu a... Maldição de Sethe. As águas, a fonte da aflição.
— A fonte... — Todas as forças vacilaram no corpo de Iskar. Era mesmo verdade? Podia ser verdade? Os anciões lhe ensinaram que a maldição era resultado da perda da graça de Rukhmar, da desobediência, entre outras coisas. Era causada pela própria fraqueza, não por uma força externa. Mas aquele documento afirmava que a fonte eram as águas do Vale dos Sethekk. Isso significava que qualquer um, a despeito de suas virtudes, poderia ser vítima.
Significava que tudo o que Iskar sabia era mentira.
— A maldição corroeu a mente de Terokk, que começou a se esvair — disse Viryx. — O mesmo destino recaiu sobre seu séquito; muitos também acabaram expulsos de Beira-céu pelos Seguidores. Com o fim de Terokk, os Seguidores ganharam controle total sobre os arakkoas.
Viryx deitou o pergaminho na mesa de leitura.
— Todo esse tempo... — Uma raiva fria cresceu em Iskar. Ele vivera toda sua vida acreditando que, se mantivesse a fé, se seguisse todas as leis, estaria livre da maldição. Todos os castigos que sofrera a fim de provar sua devoção, todo o tormento e as agruras aos quais se submetera... De que servira tudo isso?
— Não sabemos se é verdade — disse Viryx. — Você disse a mesma coisa ontem. Como saber se os proscritos não inventaram isso para nos manipular?
— Não sabemos — respondeu Iskar.
Mas ele descobriria. Se aquele documento existisse, se fosse genuíno, haveria outros. Textos apócrifos escondidos no coração da Grande Torre. Pergaminhos e histórias perdidos no tempo, ocultos pelos anciões. Pistas. Segredos. Verdades.
— Mas, se for verdade — prosseguiu ele —, isso mudará Beira-céu para sempre.
***
Viryx caminhou até a janela. Dezenas de kaliris volteavam no céu noturno gorjeando e guinchando, pousando nas formações rochosas ao longo da torre. Ao longe, os terraços de Beira-céu brilhavam sob a luz dos orbes solares. Por um instante, Viryx perdeu-se em tanta beleza.
— Temos que destruí-lo — disse ela, virando-se para Iskar.
— Destruí-lo? — O irmão de ninho olhava incrédulo para ela. — Temos que escondê-lo em algum lugar.
— Ele pode estragar tudo. É muito perigoso ficar com ele — redarguiu Viryx enquanto caminhava na direção do pergaminho.
Iskar fez o mesmo, batendo na mesa e cobrindo o pergaminho com a mão: — Se isso for verdade, significa que vivemos uma mentira. Não faz diferença para você? Você passou por tudo isso para recuperá-lo, arriscou tudo e agora quer destruí-lo?
— O que eu fiz foi tolice. O mistério... ele me consumiu. — Viryx segurou um dos enroladores de madeira do pergaminho e puxou. Iskar segurou o papel. — Esqueça. Por favor.
— Esquecer? — A voz de Iskar estridulava. Com a mão livre, ele agarrou a outra ponta do enrolador de madeira. — Como eu poderia esquecer isso?
— Não faz diferença nenhuma — Viryx segurou com mais força. — Mesmo que fosse verdade, não faria diferença...
Ela se lembrou do Véu Akraz e dos proscritos. Toda a imundície, a decadência. Era tanta desesperança. Tentou imaginar um mundo em que seu povo e os arakkoas inferiores vivessem como iguais. As imagens conjuradas em sua mente a enojavam.
Beira-céu detinha poder e glória. Mudar isso, restabelecer os laços com os proscritos, destruiria tudo o que ela conhecia. Apesar das regras tediosas da vida de Seguidor, que ela detestava, de todo o estudo e os rituais sem sentido, não queria que sua vida mudasse.
O que mais no mundo se compararia àquilo?
— Você não caminhou entre os proscritos como eu caminhei. — Viryx puxou o pergaminho. Ela, que era mais forte que Iskar, podia ver que o irmão de ninho lutava para continuar segurando o pergaminho. — Se o tivesse feito, você não estaria alimentando esse pensamento. Se manter Beira-céu como é significa sustentar uma mentira, os fins justificam os meios.
Com um último puxão, Viryx rasgou o pergaminho das mãos de Iskar, que perdeu o equilíbrio e foi ao chão. Viryx evocou o fogo de Rukhmar na palma da mão e ateou fogo ao pergaminho. Línguas de fogo roçaram nas bordas da folha antiga, surrada.
— Hrreeek! Não! — Iskar saltou e agarrou Viryx. Ela bloqueou o ataque com o antebraço e golpeou Iskar atrás da cabeça e o derrubou no chão.
Enquanto o fogo consumia o pergaminho, brasas e cinzas choviam ao redor de Iskar. De joelhos, ele juntava as cinzas com as mãos. — Como você pôde fazer isso?
— É pelo bem dos arakkoas — disse Viryx, voltando à janela de sua alcândora. — Ele...
Ela prendeu a respiração. Havia vários kaliris empoleirados diante das duas janelas. Eles assistiam a tudo sentados, no mais absoluto silêncio, observando-a pelo vidro leitoso.
Estranho. Ela jamais os vira tão compenetrados. O estômago de Viryx revirou de apreensão.
Algo grande bateu na porta da alcândora. Uma vez... Duas vezes....
Na terceira vez, a porta foi arrancada das dobradiças e arrebentou-se no chão. Dois garragumes irromperam na sala, laminasas de prontidão, seguidos pelo alto sábio Zelkyr.
— Pelo bem dos arakkoas — disse a voz de Rukhmar. — Realmente.
Viryx deu um passo para trás, trépida. Depois, baixou a cabeça. — Alto... Alto sábio...
— Sempre curiosa, não? — disse Zelkyr. Em seguida, ele caminhou na direção de Iskar. — Amarrem-no.
Um dos garragumes saltou à frente. Depois de cobrir a cabeça de Iskar com um capuz negro, ele prendeu seu bico com um anel de metal. Iskar não emitiu nenhum som, nem tentou lutar.
Viryx reuniu coragem para falar: — Não é culpa dele. Ele...
— Eu sei o que ele fez. E sei o que você fez. — Zelkyr escancarou a janela de Viryx e estendeu a mão na direção do grupo de kaliris do lado de fora. Quando o alto sábio acariciou suas penas, um dos passarinhos arrulhou suavemente.
— Eu estive observando — prosseguiu Zelkyr. — Enxergar pelos olhos dos kaliris é uma habilidade rara, mas eu a considero deveras útil de tempos em tempos. Você se surpreenderia com o que alguns dos nossos dizem e fazem quando julgam estar sozinhos.
— E você nos deixou continuar? — questionou Viryx, a fagulha de raiva queimando seu medo.
— É natural tentar desvendar um mistério. A questão é o que você faz com o conhecimento que adquire. É isso que define você. Aqueles entre nós que ascendem entre os Seguidores recebem como fardo muitas verdades. Vários segredos. Só os sábios podem mantê-los ocultos pelo bem dos arakkoas.
Zelkyr afugentou os kaliris. Eles voaram e se fundiram ao céu noturno. — Acredito que você tenha a mesma sabedoria. Você tem potencial para se tornar importante dentro da ordem.
Viryx não sabia como se sentir. Ela deveria estar agradecida? Num momento como aquele?
— Mas há o problema da sua inquietude. Sua queda pela rebelião. — O alto sábio pousou a mão em seu ombro. — Felizmente existem... formas de corrigir tais falhas.
Outro garragume agarrou o braço de Viryx por trás e o torceu. Pontadas de dor penetraram sua pele, subindo pelo pescoço. Por instinto, ela tentou lutar, mas foi em vão.
— Eu sempre fui excessivamente leniente com você, e por isso, peço desculpas. Talvez se tivesse sido mais rígido, não teríamos chegado a esse ponto. Mas quero que saiba que tudo o que eu fizer será por pura admiração... será porque tenho fé naquilo que um dia você se tornará.
Viryx gritou quando o garragume cobriu seus olhos com o capuz.
A escuridão engoliu seu mundo.
***
Viryx não sabia quando tempo passara na escuridão. Dias... semanas... uma vida inteira.
A verdade era que não se importava. Ela só queria que acabasse.
Felizmente, acabou. Alguém puxou o capuz que cobria sua cabeça. Ela se viu face a face com o alto sábio. Viryx não disse nada quando ele gentilmente a ajudou a se levantar e a guiou por uma sinuosa catacumba em algum lugar sob a Grande Torre.
— Você sabe por que fiz de Iskar seu irmão de ninho? — indagou o alto sábio.
A temporada na escuridão embaciara os sentidos de Viryx. Ela levou um instante para compreender as palavras. Quando tentou responder, nada além de um gemido baixo saiu de seu bico.
— Eu sabia que ele não aprenderia nada com você — prosseguiu Zelkyr. — Pensei que cuidar dele ensinaria a você algo sobre responsabilidade. Talvez tenha, de alguma maneira. Sua decisão de queimar o pergaminho foi sábia. Responsável.
Ela seguiu o alto sábio até a câmara central da Grande Torre. Raios de luz inundavam o lugar através do cristal no teto. Viryx arqueou as costas e suspirou aliviada quando a luz a tocou, aquecendo seu corpo.
Mais que por comida e água, era por aquilo que ela ansiava. Luz.
Ela se viu tentando alcançar a luz, desejando nada além de tocá-la, abraçá-la. Não havia luz suficiente para satisfazê-la. Jamais haveria, em toda a sua vida.
— Mas agora eu vejo que não era responsabilidade que você precisava aprender — disse o alto sábio. — O que você realmente precisava era aprender o significado de consequência.
As palavras arrancaram Viryx de sua letargia eufórica. Ela notou que havia três arakkoas de pé no meio da câmara. Dois garragumes flanqueavam Iskar, segurando-o pelas correntes agrilhoadas aos seus pulsos. O aro metálico ainda prendia-lhe o bico, mas os guerreiros haviam removido o capuz, permitindo que Viryx o visse — e vice-versa.
O alto sábio passou a Garra de Rukhmar para Viryx e deu um passo atrás. Ela sentiu o peso do artefato sagrado nas mãos e olhou ao redor da sala.
Ninguém mais estava presente. Não era como as outras cerimônias de exílio. Era muito mais recôndito, secreto.
— Você viverá na luz ou nas sombras? — disse suavemente o alto sábio logo atrás dela.
Viryx deu um passo à frente, segurando o cajado. Iskar a encarava. Ele não se mexia. Não emitia nenhum som. Seus olhos não demonstravam nenhum medo. Nada além de raiva, frieza, sequidão.
Ela posicionou a lâmina sob o braço direito dele, que estava esticado.
E Viryx fez sua escolha.
***
Um breve silêncio se instaurou quando Reshad terminou de contar a história.
O outro proscrito levantou-se no tronco, esticando as costas o máximo que podia. — Nunca ouvi essa história sobre Iskar. Ele sempre pertenceu à classe mais baixa da sociedade.
— Imagino que não seja algo sobre o qual ele goste de falar. E, como você sabe, ele não vê problema em mentir — disse Reshad. Ele também se levantou, as juntas estalando pelo tempo passado na mesma posição.
Aqueles ossos velhos...
O arakkoa superior permaneceu sentado na árvore caída. Reshad deu algum tempo para que ele refletisse sobre as coisas — sobre a história do líder que outrora jurara servir até o fim de seus dias.
Reshad pensou no dia em que encontrou Viryx no Véu Akraz. Se então eu soubesse o que ela se tornaria. Com um só golpe de adaga eu poderia ter salvo muitas, muitas vidas…
Era tolice pensar isso, claro. Ele não sabia que Viryx se tornaria a alta sábia de Beira-céu. Não sabia que sua obsessão pela tecnologia apexis levaria os arakkoas superiores a construir armas como o sol falso acima da cidade. E não sabia que Viryx daria a ordem de apontá-la para os proscritos, incinerá-los da superfície da terra.
Viryx e seus seguidores mais próximos estava mortos agora, mas representaram tudo o que havia de errado com o mundo. Arakkoas superiores obcecados pela luz do sol, perdidos para o fanatismo.
Reshad teve que se lembrar de que, no entanto, os proscritos também tinham sua parcela de culpa. Eles encontraram refúgio em outros extremos. Tornaram-se obcecados pelas sombras, enterrados em vergonha e inferioridade.
As sombras se aglomeram quando o corvo engole o dia. O céu ardente é extinto quando as asas negras se dobram gentilmente sobre o firmamento. Descansem, meus filhos, descansem. Afinal, até o sol tem que dormir.
Os antigos arakkoas sabiam que luz e escuridão em igual medida é uma lei da natureza. Os proscritos e seus primos alados só conseguiriam triunfar se permanecessem juntos.
Finalmente o povo de Reshad estava começando a compreender isso.
A maioria, pelo menos. Ele não tinha certeza se alguns — como Iskar — haviam encontrado a razão.
A vida de Iskar, como a de Viryx, mudara após a descoberta da verdade sobre Terokk. Mesmo aleijado e exilado, ele ascendera entre os proscritos e tornara-se seu líder. Em anos recentes, Reshad sentira o crescimento de algo sombrio em Iskar. Um silencioso desejo de vingança e poder. Talvez ele tivesse nascido nos últimos dias em Beira-céu.
Será que Iskar despertara como os dois arakkoas na presença de Reshad? Será que ele deixara o passado para trás em prol de um novo futuro? Ou ainda estaria aprisionado nos velhos caminhos, cambaleando entre sombras?
— Reshad! — Um arakkoa superior pousou junto do contador de histórias com os olhos tomados de pânico. — Encontramos os batedores que mandamos atrás de Iskar. Eles estão mortos.
— Mortos? — indagou o ancião.
— Assassinados. Raaaak. Por Iskar. Outros deram seguimento à busca — replicou o mensageiro.
O contador de histórias sentou-se novamente no toco chamuscado. Sem pensar, ele abriu a bolsa de sementes e castanhas e espalhou seu conteúdo no chão.
Percy inclinou a cabeça, confuso. Ele observava Reshad como se esperasse um truque.

— Coma, coma. — Reshad apontou para a comida. Coisas gloriosas esperavam seu povo, ele sabia, mas ainda não era hora de comemorar. Havia trabalho a ser feito, arestas do passado por aparar. — Você precisará de força nos dias que virão. Todos nós precisaremos...

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