sábado, 1 de outubro de 2016

Varian Wrynn: O Sangue de Nossos Pais


Varian Wrynn:
O Sangue de Nossos Pais

E. Daniel Arey


Algo havia acordado o rei Varian Wrynn de um sono profundo. Enquanto ele permanecia imóvel na escuridão, o débil ruído de um gotejar distante ecoava nas muralhas da Bastilha Ventobravo.

Um sentimento ruim se apoderou do nobre rei, pois tratava-se de um som já conhecido.


Varian se moveu pé ante pé até a porta e encostou a cabeça no carvalho perfeitamente polido, tentando ouvir. "Nada. Nenhum movimento. Nem passos". Então, ao longe, escutou o abafado murmúrio de uma multidão em festa, vindo de algum lugar fora do castelo. "Será que dormi demais e perdi a cerimônia?"

Mais uma vez o estranho gotejar se fez ouvir claramente, agora ecoando no chão gelado. Varian abriu a porta devagar e se inclinou para observar o corredor. Tudo escuro e silencioso. Mesmo as tochas pareciam tremeluzir com uma luz fria que se extinguia logo que acesa. Para um homem que se permitia poucas emoções, Varian sentiu com muita intensidade algo se contorcer dentro de si – algo velho, ou novo, talvez há muito esquecido. Era como um sentimento infantil...

"medo?"

Varian afastou a ideia imediatamente. Ele era Lo'Gosh, o Lobo Fantasma. O gladiador guerreiro que enchia de medo igualmente corações inimigos e aliados. E mesmo assim ele não conseguia afastar o sentimento primevo de inquietação e perigo que agora tomava-lhe o corpo.

Andando até o corredor, Varian percebeu que seus guardas não estavam em posição. "Estarão todos ocupados demais com o Dia da Lembrança? Ou há algo mais sinistro no ar?"

Esgueirou-se cuidadosamente pelo corredor mal iluminado, adentrando a enorme e familiar sala do trono da Bastilha Ventobravo, cujas paredes vultosas agora pareciam diferentes, maiores, mais sombrias e vazias. Do distante teto de pedra, lonas se dependuravam como teias extravagantes, estampadas com o leão dourado, o emblema do orgulho e da força da grande nação de Ventobravo.

Varian ouviu um grito abafado na escuridão e, em seguida, um súbito arrastar de pés. Seus olhos logo se voltaram para o chão, onde uma trilha de sangue se dirigia claramente para o centro da sala. Nas trevas, ele mal pôde distinguir senão uma luta agitada entre duas silhuetas. Quando seus olhos se acostumaram ao pretume viu um homem de joelhos, ensanguentado e ferido, e ao lado uma figura feminina hostil, espreitando das sombras.

Varian conhecia bem aquela silhueta distorcida que denunciava a natureza do corpo e da alma.

Era Garona Meiorken, parte draenaia, parte orquisa – a assassina criada pela mente obscura de Gul'dan.

Varian quedou-se aturdido e incrédulo enquanto o sangue fresco escorria pelo fio da lâmina na mão da meio-orquisa, chegando à ponta afiada e gotejando... caindo... até se transformar numa pétala de rosa carmesim no chão de mármore. Memórias inundaram a mente de Varian numa onda de percepção. A armadura. As vestes reais. O homem no chão era seu pai, o rei Llane!

Garona olhou para Varian com um medonho sorriso coberto de lágrimas e, num movimento rápido, cravou a lâmina fundo no peito do rei ajoelhado, com o brilho do aço rasgando a escuridão.

– Não! – Varian urrou se atirando para a frente, se arrastando pelo chão ensanguentado para alcançar o pai. Agarrou o corpo inerte do rei e o abraçou, enquanto o rosto da meio-orquisa lentamente esvanecia-se na escuridão.

– Pai! – Varian implorou, ninando o corpo do pai.

Os lábios de Llane se contorceram de dor e se abriram, deixando escorrer um delicado fio de sangue vermelho-vivo. E com um suspiro pútrido, o velho rei formou algumas palavras quebradiças: – É assim... que sempre termina... para os reis Wrynn.

Então os olhos de Llane rolaram para trás e a mandíbula se abriu numa expressão hedionda. Do fundo da garganta do rei emergiu uma vibração. Varian quis arrancar os olhos, mas percebeu que não conseguiria. Na sombra da boca entreaberta do pai algo se moveu, cintilando na luz mortiça.

Subitamente, vermes irromperam da boca do rei morto. Milhares e milhares de insetos se contorciam, obliterando a face acinzentada de Llane. Varian tentou se afastar, mas os vermes o cobriram, agitando-se e consumindo-lhe o corpo enquanto ele emitia um último grito de agonia.

***

Varian se endireitou na cadeira com o grito horrendo ainda ecoando nos ouvidos. Viu-se sentado à mesa com um mapa à frente, numa das câmaras privativas no alto da Bastilha Ventobravo.
Raios mornos de sol invadiam a sala acompanhados do bramido de uma multidão ruidosa. "As celebrações do Dia da Lembrança já começaram."

De suas mãos pendia um medalhão prateado e mal polido, fechado firmemente. Varian instintivamente tentou abri-lo, como havia feito incontáveis vezes, mas ele continuava trancado como sempre.

A porta se abriu abruptamente, e o alto-comandante da Guarda de Ventobravo entrou como um raio. O rosto do general Marcos Jonas era puro sobressalto: – Algo errado, Alteza? Ouvimos um grito.

Varian rapidamente guardou o medalhão e se levantou. – Está tudo bem, Marcos. O rei tentou endireitar a armadura e ajeitar um insistente tufo de cabelo que caía sobre os olhos cansados.

Seus dedos sentiram no rosto as marcas de preocupação e falta de sono que o acometeram há algum tempo. Os últimos meses eram apenas um borrão de imagens das emergências que resultaram do inesperado ataque do dragão Asa da Morte contra a cidade e o mundo.

Ele e o general Jonas estavam garbosamente trajados para a celebração, e o último, com sua constituição robusta e seu rosto severo, vestia o uniforme como poucos.

– A Cerimônia de Honra será em três horas, Alteza – avisou Jonas. – Seu discurso está pronto?

Varian olhou para o pergaminho em branco sobre a mesa do mapa: – Ainda estou trabalhando nele, Jonas. "E não consigo pensar em nada", completou em pensamento.

O alto-comandante olhou para Varian, inquisitivo, e o rei rapidamente desviou o assunto: – Meu filho já chegou?

O general Jonas meneou a cabeça: – Ninguém viu o príncipe Anduin ainda, Alteza.

Varian tentou esconder o desapontamento olhando pelas janelas da bastilha para o pátio abaixo.

Havia um mar de pessoas, com bandeiras e serpentinas ondulando no ar, crianças vestidas como seus heróis favoritos, comida e hidromel circulando entre gargalhadas. O Dia da Lembrança era parte memorial, parte celebração, mas Varian nunca conseguiu ver qualquer alegria no evento.

Enquanto ele observava, a multidão se moveu lentamente para o Vale dos Heróis, rumando para as estátuas dos grandes heróis da humanidade que se alinhavam na entrada de Ventobravo. O palco para a Cerimônia de Honra já estava montado à sombra dos impassíveis líderes, e hoje eles seriam relembrados com respeito e gratidão por seus grandes feitos.

Jonas prosseguiu: – Quando estiver pronto, Majestade, o arcebispo o estará esperando para informá-lo dos reparos feitos na cidade e dos cuidados prestados aos feridos.

– Sim. Num instante. – Varian o dispensou com um aceno. Jonas curvou a cabeça e silenciosamente saiu da sala e fechou a porta atrás dele.

Varian afastou os pensamentos ruins e tomou o delicado medalhão nas mãos outra vez, encarando o próprio reflexo amarrotado na superfície espelhada. "O mundo mudou, mas eu devo permanecer firme."

Varian observou o retrato do rei Llane pendurado sobre a lareira. Hoje, mais do que em qualquer dia, o líder da humanidade, o rei de Ventobravo, a rocha da Aliança, deve estar em sua melhor forma. O pai não esperaria menos que isso.

***

O arcebispo Benedictus trajava as melhores vestes e joias, representando o orgulho da cultura de Ventobravo pelo grande dia. Próximo dele, um homem pequeno e encardido homem carregava vários pergaminhos amassados.
Benedictus olhou para cima ansioso quando Varian emergiu dos aposentos reais. "Que a Luz o abençoe, rei Varian", pensou, e sorriu quando Varian começou a descer as escadas.

– E você, Sacerdote – disse Varian – você parece vestido para conhecer o criador!

Benedictus moveu o cajado num gesto solene e bem ensaiado, antes de retrucar: – Em tempos como estes nós devemos estar prontos para nos unirmos à Luz a qualquer instante.

Ao lado do arcebispo, o indivíduo desgrenhado e de aparência nervosa inquietou-se com os papéis e diagramas que o soterravam. Varian repentinamente percebeu que tratava-se de Baros Aleixo, o arquiteto da cidade. Estava quase impossível reconhecê-lo com a lama cobrindo-lhe o rosto e as roupas.

Varian acenou para que o arcebispo e o arquiteto acompanhassem-no ao descer as escadas: – Como vão os reparos na cidade, Baros?

– Tão bem quanto possível, Alteza. – Baros fez que sim, tentando não derrubar os pergaminhos.

Benedictus os alcançou e cutucou amistosamente as costas do arquiteto: – Ele está sendo desmedidamente modesto, Majestade. O nosso companheiro Baros conseguiu fazer milagres e reerguer grande parte de Ventobravo, além de ter implementado melhorias notáveis na cidade.

Varian sentiu alívio. Era ótimo ver o otimismo retornando aos conselheiros: – Então, quais são nossos maiores problemas?

O arquiteto assentiu de cabeça e imediatamente começou a desenrolar nervosamente um de seus muitos pergaminhos e caminhar na direção do rei, o que fez com que outros três escorregassem de suas mãos.

– Perdão, Majestade... Sim, sim, aqui está. – Baros apontou para um ponto no mapa, e seus dedos sujos de terra deixaram marcas onde tocaram. – Nós investigamos o dano causado às duas torres principais e à entrada da cidade. – Baros meneou a cabeça e respirou fundo, exalando o ar com força: – Aquele dragão negro deve ser ainda mais pesado do que indica aquele tamanho monstruoso, o que provavelmente tem a ver com a armadura de elemêntio negro que ele usava. Nós cavamos fundo e vimos que os danos causados às fundações da torre são bastante severos.

Baros procurava por mais diagramas e falava ao mesmo tempo: – Isso também aconteceu na ala leste da bastilha aqui... e aqui, e em algumas das maiores construções logo acima do porto, incluindo o que sobrou... – o arquiteto parou, demonstrando que era muito doloroso completar a lista.

Benedictus se adiantou: – E, claro, o que sobrou da Antiga Guarnição, e a terrível cratera onde o Parque ficava. Que a Luz abençoe suas almas.

O rosto de Baros se entristeceu por trás da camada de lama: – Infelizmente, enormes reparos serão necessários, e isso não será barato.

Os olhos de Varian se incendiaram, pois dores enterradas havia muito saltaram para a superfície.

"Ele está falando de dinheiro? Numa hora dessas?" Nem Benedictus nem Baros perceberam a reação do rei, e Varian acelerou o passo para dominar o nó de raiva que se acumulava em seu estômago.

No patamar seguinte, o rei parou para observar parte dos danos ao castelo. Destroços cobriam os degraus em frente a um buraco que havia sido aberto na muralha, e que se abria para o céu e para a cidade mais abaixo. Enquanto Varian examinava os entulhos, Baros rapidamente checou seus papéis.

– Nós já solicitamos junto à pedreira o material para consertar isso, Alteza. – O arquiteto olhou para cima e reconheceu que o rei ficava cada vez mais irritado. Ele tentou aliviar um pouco a tensão do momento: – Nós consertaremos isso num piscar de olhos. Castelos já são frios com todas as paredes de pé, imagina assim, não é mesmo?

Varian o ignorou, perdido em pensamentos, enquanto passava as mãos cobertas por luvas ao longo das pedras, arrancadas da torre como se uma enorme mordida as tivesse engolido, o que no fim das contas não estava tão longe da verdade.

A luva do rei prendeu-se em algo pontiagudo. Varian esticou o braço e puxou um fragmento de obsidiana em forma de adaga da parede destruída. Era um pedaço da armadura de elemêntio do dragão – uma lasca negra como a noite, com quase dois palmos de comprimento e afiada como uma navalha. O estilhaço de armadura estava enterrado profundamente na pedra, mas com algum esforço Varian conseguiu soltá-lo.

Ele o segurou alto para que todos o vissem: – Esta criatura hedionda... Asa da Morte...

certamente não é a primeira ameaça às muralhas de Ventobravo. – Seu olhar trespassava o arquiteto: – Nós nos reconstruiremos e permaneceremos firmes, como sempre. Qualquer que seja o custo. E faremos com que a besta negra pague por isso setenta vezes sete!

O rei olhou pela enorme fissura na muralha para a cidade parcialmente destruída. A luva de malha rangia enquanto ele apertava com a mão a armadura do Asa da Morte, cheio de raiva.

Abaixo dele, o grande porto de Ventobravo era uma floresta de mastros de navios. Havia cascos de todas as cores, formas e tamanhos. O Dia da Lembrança sempre trouxera multidões de peregrinos com o propósito de honrar e celebrar os heróis da humanidade, mas esta vez era diferente de tudo que ele já havia visto.

Enquanto Varian observava, outro navio chegou ao porto e lançou âncora. Era uma enorme nau kaldorei, cintilando em roxo e filigranas prateadas, com velas perfumadas. O rei guardou o pedaço da armadura do Asa da Morte no cinto e se virou para os conselheiros: – Eles vieram este ano em honra ao passado ou com medo do futuro?

Benedictus lançou um olhar para a massa de navios abaixo: – Certamente muitos buscam proteção contra a ameaça da serpe negra, Majestade. Alguns dizem que este é, enfim, o fim dos tempos.

Varian zombou: – Eu economizaria saliva, Sacerdote, e certamente economizaria sono no que diz respeito a maluquices ditas por meia dúzia de cultistas do Martelo do Crepúsculo. A menos, é claro, que considere os disparates deles úteis para seus sermões na catedral. – Varian sorriu secamente para o arcebispo.

– Qualquer coisa para as pessoas voltarem a acreditar... e a fazer. – Benedictus sorriu de volta: – Sem dúvida. As pessoas de Ventobravo precisam de esperança, mas elas precisam ainda mais de um plano. Confio que nosso rei nos dará algo em que acreditar em sua fala de hoje, na Cerimônia de Honra.

Varian pensou em seu discurso do Dia da Lembrança: o que ele poderia dizer para abrandar as feridas profundas que esse mundo havia sofrido?

O general Jonas apareceu e se curvou respeitosamente diante do arcebispo, e então se virou para o rei: – Perdão, Alteza, mas foi-me solicitado lembrá-lo de que a Delegação de Honra aguarda sua presença na sala do trono. – Jonas tentou sorrir para suavizar a notícia.

Varian estremeceu. Ele odiava as obrigações da realeza, especialmente a pompa e a tagarelice das datas comemorativas. Preferiria estar fazendo o que guerreiros fazem de melhor – incursionando com um raide no covil de um dragão, ou partindo demônios do mar ao meio, em vez de lidar com uma delegação de diplomatas insuportáveis. "Esses são, de longe, muito mais perigosos à saúde."

Varian deixou escapar um suspiro, resignando-se a seu destino: – Pois bem, general. Vamos acabar logo com isso.

***

Jaina Proudmore estava de pé na sala do trono observando a eclética reunião de nobres, políticos e outras delegações.
O grande salão da Bastilha Ventobravo era, de fato, enorme, mas o perfume exalado pelos dignatários no salão era sufocante. O arco-íris de luminárias se estendia pela grande arcada e além.

Como líder da Ilha Theramore, Jaina fazia parte da Delegação de Honra escolhida para acompanhar o rei enquanto ele fazia o pronunciamento cerimonial. Com a Aliança sob pressão em frentes cada vez mais perigosas, muitos estavam presentes para ver o que o grande líder de Ventobravo planejara para lidar com a recente crise mundial.

Genn Greymane permanecia próximo, seus olhos esquadrinhando a multidão com a mesma intensidade pungente que Jaina. Os olhos dela cruzaram o salão, esperançosos de encontrar o rosto de Anduin na turba, mas o príncipe não estava em lugar nenhum. Ela se perguntou se Varian e o jovem príncipe haviam resolvido a última contenda entre eles, um desacordo que havia afastado Anduin do pai e o levado a buscar a sabedoria do Profeta Velen dos draeneis.

Mas Jaina sabia da rigidez de Varian. Não; com a ausência ostensiva do príncipe, era claro que o abismo ainda estava lá.

Greymane suspirou, impaciente, ao lado dela. A multidão já estava esperando há algum tempo, todos disputando a melhor visão do centro de poder de Ventobravo e do famoso Trono do Leão, o assento adornado dos reis Wrynn.

Jaina observou os grandes felinos que adornavam o dossel, em alerta e ferozes como se guardassem toda Azeroth. Ela pensou sobre quão profundamente aquele ideal havia sido incutido em Varian desde a mais tenra infância, e sobre quanto desta pressão havia realmente afetado seu modo de ver as coisas. "Crescer à sombra de heróis deve ter sido difícil. Pensar que algum homem poderia suportar tal fardo é uma grande insensatez". Ela mesma havia, certa vez, amado um homem cujo fardo impossível o havia destruído.

Jaina observou a multidão agitada e logo compreendeu o que via. A nobre possuía o invejável dom de ler as pessoas com inacreditável acuidade, mas aquela ocasião não demandava muito talento para ser percebida, pois o medo e a frustração no ar eram palpáveis. Chamou-lhe a atenção uma fonte de descontentamento em meio às pessoas, que emanava de um grupo de nobres e delegados ao redor de um homem grande como um urso, cujo rosto era desditoso e consideravelmente vermelho. O lorde Aldous Lescovar, filho do traidor Gregor Lescovar, era claramente a origem do tumulto e estava infectando outros presentes.

Os nobres já haviam bebido o suficiente para soltar as línguas, e Jaina ouviu o nome do rei Wrynn ser dito várias vezes, muitas delas cuspido como veneno amargo.

Jaina sabia que parte do que esses homens diziam era verdade. Varian era um homem difícil às vezes, e sua intensidade era igual para amigos e inimigos. Mas ela também conhecia o rei bem o suficiente para conhecer seu coração. Ele daria a vida para salvar seu povo e era movido por princípios anacrônicos que poucos compreendiam hoje, um código de conduta que demandava algo mais dos líderes. Este conflito havia lentamente afastado o rei do povo, até de seu filho, e os inimigos o utilizavam para seus próprios propósitos desonestos.

Jaina sempre fora aliada do rei, talvez a maior. "Mas, como sabe a Luz, não é fácil ser aliado de Varian, muito menos conselheiro ou amigo próximo." Ao lidar com o Lobo Fantasma, Jaina sabia que era melhor falar ao coração do rei e evitar que ele mostrasse as garras.

Ela mesma havia vindo hoje para tentar mais uma vez dissuadir o rei da posição rígida contra a Horda, mas os delegados bêbados ao redor do barão de cabeça quente poderiam facilmente atrapalhar seus planos. Forçando um sorriso, ela se aproximou do barão Lescovar e de seu séquito.

– Boa lembrança – cumprimentou Jaina à maneira tradicional da celebração, fazendo uma mesura.

– Boa lembrança, Jaina Proudmore. – O barão trocou olhares desconfiados com os aliados e a encarou, incapaz de dizer se a aproximação da feiticeira era um sinal de apoio ou uma ameaça.

Jaina sentiu os olhos do homem passearem por seu corpo de uma maneira que apenas um jovem o faria. Ele tinha feições brutas e, embora ostentasse sedas e peles caras, os olhos hostis traíam qualquer elegância que o traje tentasse criar.

O barão estava desconfiado, a mente agitada tanto quanto o corpo: – O que a traz aqui tão longe enquanto sua própria terra está devastada?

Jaina percebeu que o barão estava ainda mais bêbado do que ela havia imaginado, e ignorou o comentário mordaz. – Como você, estou aqui em homenagem aos heróis do passado e em busca de um plano para enfrentar os perigos que atormentam a Aliança hoje.

– É, e essas novas ameaças afligem a todos nós – ricos e pobres, mercadores e gentalha. Como as coisas ficaram assim, maga? Quem nós devemos culpar? – retrucou o barão, apontando para os compatriotas com um gesto algo hesitante.

Jaina manteve-se impassível. Depois de uma cautelosa pausa, falou: – Os líderes da Aliança têm enfrentado muitos desafios ultimamente. Sim, erros de julgamento foram cometidos, mas muitas lições foram aprendidas. E grandes conquistas foram alcançadas.

Um nobre idoso e enérgico abriu caminho, balançando a cabeça grisalha para demonstrar a frustração: – Nós estamos cansados das guerras da Aliança sugando nosso ouro e nosso sangue. Aventurinhas imprudentes e vingancinhas pessoais só minam nossas chances de paz e prosperidade!

Jaina levantou a mão gentilmente, tentando acalmar os ânimos: – Muitos expressaram preocupações similares. Outro exemplo é a agressividade mal direcionada à Horda. Eu, por exemplo, creio que bons aliados são difíceis de conseguir hoje em dia, mesmo com nossos inimigos se multiplicando como ratos.

O barão pousou a mão pesada sobre o ombro de Jaina, o que fez com a pele da feiticeira se arrepiasse: – Parece que temos uma amante de orcs aqui, homens. – As gargalhadas que se seguiram cheiravam a hidromel azedo. O barão chegou perto – perto demais – e disse com o bafo cheio de álcool e sarcasmo: – Ou sera que o cheiro dos taurens está mais ao seu gosto?

Jaina se desvencilhou do barão graciosamente e fingiu simpatia pelas preocupações dele. A Aliança não poderia lidar com mais cisões internas na atual conjuntura. A própria Azeroth havia revelado recentemente as próprias fraturas ocultas, e elas haviam literalmente rasgado e separado o mundo.

Jaina tentou sorrir. O barão sorriu de volta, mas isso apenas destacou-lhe as feições suínas. Ele piscou para a feiticeira e disse: – Nós sabemos que você e o rei são íntimos. Precisamos que você fale com ele. Faça com que o rei Wrynn ouça seus nobres. Faça com que ele encontre a paz e garanta que aquele maldito dragão seja exterminado antes que não haja mais uma cidade com a qual possamos fazer comércio.

– Eu compreendo suas preocupações. Compartilho de muitas delas.

– Então faça seu serviço e use sua influência. Ninguém lucra com guerras insensatas. Os planos atuais do rei são...

– São o quê? – indagou uma voz profunda atrás do barão. Todos se viraram para ver o rei Wrynn parado na porta. O burburinho diminuiu com a entrada decidida de Varian no recinto.– Por favor, barão Lescovar, ilumine-nos. Diga a todos nós quais serão os resultados dos meus planos. – O olhar do rei era como um relâmpago que atingia em cheio o barão. Lescovar andou para trás, inconscientemente submisso.

– Meu perdão, Alteza – desculpou-se o barão, fazendo uma reverência. – Estávamos apenas debatendo com a estimada líder de Theramore.

Varian caminhou até o barão e só parou depois de ter invadido o espaço pessoal do nobre. Nariz a nariz, o rei falou em voz baixa, mas seu rosnado soou muito claro: – Quando você era apenas um filhote sujando fraldas no covil fétido da sua família, eu já liderava triunfos do exército de Ventobravo.– Os olhos de Varian perscrutaram a sala e se dirigiram a todos, desafiando os rostos pelo caminho a contestá-lo. – Eu nos guiei pelo mar, pelo frio de Nortúndria, pelas profundezas macabras da Cidade Baixa, por vitória após vitória. Ainda assim, muitos de vocês têm dúvidas.

Os dignatários se agitaram, desconfortáveis, mas ninguém ousou responder. Jaina ferveu de raiva. "Tarde demais... O rei vai mostrar as garras".

Varian olhava para todos os presentes: – Então por que vieram aqui hoje? Para desperdiçar meu tempo? Para exigir que eu ouça suas reclamações bufonas sobre meus esforços para proteger este mundo? Para proteger vocês?!

Silêncio.

Uma chama ardia nos olhos do Lobo Fantasma, um brilho incandescente que queimava mesmo na mais escura das noites, afastando as sombras.

– Ou vieram ver Lo'Gosh com seus próprios olhos? Contemplar de perto aquele que promove guerras com o mesmo gosto por sangue que seus inimigos?

Muitos começaram a se retirar disfarçadamente, mas Varian não havia terminado.

– Há quem diga que não sou melhor que aqueles contra quem lutamos! Que eu sou um monstro!

Se é assim, eu sou o monstro de que vocês precisam! Eu sou o único feroz o suficiente para atacar o medo no ventre da escuridão! O único que tem coragem de fazer o que for necessário para proteger a humanidade do abismo!

Ao fim de sua diatribe, Varian olhou em volta e encarou o rosto familiar de Anduin o observando do fundo da sala do trono. O filho havia chegado em algum momento do extravagante discurso.

Pelo olhar horrorizado estampado na face do príncipe, era claro que nada havia mudado desde sua turbulenta partida.

Os olhos de Anduin estavam cheios de medo e perplexidade, o que fez o coração de Varian desabar. "Terei me tornado um estranho para meu próprio filho?". O rei tentou suavizar a expressão, mas ainda sentia o calor de sua raiva queimando-lhe a pele. Anduin se afastou lentamente, até se virar e abandonar a sala sem olhar para trás. Ao observar o filho partir, o ódio de Varian secou como uma barragem rompida, deixando apenas o vazio. O rei prostrou-se no trono e fez um sinal para que todos saíssem.

O público desnorteado lentamente debandou, repleto de medo do futuro e do líder da humanidade. Apenas Jaina e o arcebispo permaneceram, olhando Varian com cautela.

Inconscientemente o rei enfiou a mão no bolso e tocou o pedaço de metal, e aquela superfície metálica mitigou os impulsos febris que ainda lhe faziam ferver. Varian sabia que ninguém compreendia o que ele deveria fazer, o que ele deveria ser. Ninguém o compreendia, e ninguém jamais iria.

***

Varian andava de um lado para outro como um animal enjaulado enquanto Jaina e Benedictus observavam. O medalhão se revirava agitadamente em suas mãos, e a corrente brilhante sacudia com a mesma fúria que consumia o rei. Jaina e Benedictus permaneceram próximos, mas imóveis, tentando encontrar um porto seguro na tempestade.
– O príncipe um dia compreenderá, Alteza – apaziguou Benedictus – pois ele tem uma alma iluminada. – O arcebispo pediu o apoio de Jaina com um olhar, mas antes que ela pudesse oferecer algo, Varian escarneou:

– Eu jamais deveria ter permitido que ele partisse. A obrigação de Anduin é aqui, para com seu povo, não com os draeneis.

– Ele ainda é jovem – ponderou Jaina. – Anduin ainda está procurando por seu lugar no círculo.

Ele busca descobrir quem realmente é.

Varian parou de perambular e olhou para a maga: – Jaina, ele é o herdeiro do trono de Ventobravo, é isso que ele é, e está em vias de se tornar um homem! Na idade dele eu já havia dominado a espada e estava pronto para lidar com os inimigos da Aliança no campo de batalha!

– Um homem é medido por quão cedo ele mata, Varian? – Jaina recuou ante a explosão, mas tentou corresponder ao olhar feroz do rei. – Você não percebe que Anduin escolheu um caminho diferente?

O rei se pôs a pensar por um instante e respondeu: – Eu... fiz as pazes com as escolhas de Anduin, mas ainda temo que falte a ele a força necessária para governar. Estes são tempos perigosos, como você mesmo disse, arcebispo.

– É verdade que o mundo cambaleia à beira do abismo – o arcebispo falava cuidadosamente – mas a Luz mostra um caminho diferente para cada um de nós, mesmo que nós não saibamos qual é a finalidade disso.

– Chega de sermões, Benedictus! O mundo real não perdoa tanto quanto a sua igreja. Ser rei é um trabalho perigoso. Um passo errado e pessoas morrem!

Benedictus deu um passo à frente e tocou o ombro do rei: – No Dia da Lembrança, mais do que em qualquer outro, eu sei que você se responsabiliza por muitas coisas, especialmente pelo que perdemos... – o arcebispo prosseguiu cautelosamente – Pelo que você perdeu.

O rei mexeu no medalhão prateado, perdido numa avalanche de pensamentos e preocupações, antes de continuar: – Se Anduin não estiver pronto, se for fraco de alguma maneira, isso levará a... – Varian parou subitamente e tentou afastar o pensamento.

– Anduin tem outra força para oferecer a este mundo, Varian. Ele escolheu o sacerdócio por uma razão. Ele é um curador, e está em sintonia com a Luz. – Jaina se esforçou para ajudá-lo a dispersar os maus pensamentos.

– O que você diz é verdade, Jaina. Anduin nunca foi como... eu – concordou Varian, e com um suspiro se sentou pesadamente no trono.

– Como você mesmo disse mais cedo, Majestade – começou Benedictus – os tempos mudaram, e está claro que devemos mudar com eles. A era em que corações como o de Lothar eram os únicos a sobreviver podem estar se aproximando do fim. O mundo parece urgir por algo diferente.

O rei o olhou para o arcebispo com mente inundada de incertezas. As fundações de Azeroth haviam sido chacoalhadas recentemente, e muitas de suas peças haviam sido deslocadas ou desaparecido para sempre. Agora, suas próprias outrora concretas crenças haviam sido abaladas. Benedictus e Jaina começaram a sair, mas o arcebispo ainda tinha algo a dizer.

– Falando em renovação, Alteza, eu tenho um presente para você neste Dia da Lembrança. Na verdade, um presente para ambos, você e o príncipe.

– Receio que terei que receber sua generosidade sozinho neste dia, Sacerdote. Meu filho obviamente não quer estar perto de mim – suspirou Varian.

– Não permita a confusão em seu coração. A Luz encontra uma forma de brilhar mesmo na noite mais escura. Encontre-me mais tarde. Creio que tenho um santo remédio para os seus males – disse Benedictus, sorrindo.

O rei não estava tão certo: – Quando e onde, arcebispo? Como você sabe, eu terei um dia bastante cheio.

O arcebispo se aproximou e sussurrou o local do encontro. O rosto de Varian primeiro endureceu mas, depois de um momento, concordou relutantemente.

Enquanto Jaina e Benedictus saíam, Varian tinha uma última pergunta para o arcebispo: – Diga-me, arcebispo, Anduin será um bom rei?

O arcebispo se virou e assentiu de cabeça com autoridade: – Certamente, meu senhor. Se ele sobreviver ao teste destes tempos. Dias desesperadores como os que vivemos tendem a queimar as impurezas, deixando apenas a espada mais forte. Os reis Wrynn sempre demonstraram impetuosidade, Alteza. – Benedictus fez uma mesura e deixou a sala com Jaina, deixando Varian sozinho na sala do trono com o fardo de governar que o rei conhecia muito bem.

***

Ao entrar no cemitério da cidade, Varian viu o sol iniciar a lenta descida em direção ao horizonte, lançando raios aveludados sobre as torres da catedral e as lápides silenciosas.
Uma solitária tristeza se abateu sobre Varian enquanto ele caminhava por entre as lápides que conhecia muito bem, numa trilha que ele havia percorrido em tantos Dias da Lembrança. O cheiro agridoce de lilases tocou seus sentidos e suscitou memórias do maravilhoso perfume de Tiffin, sua esposa, sua risada angelical, seu sorriso carinhoso.

Varian se aproximou dos leões de pedra que guardavam o sepulcro de sua companheira. A caminhada se tornava um transe enquanto memórias há muito perdidas preenchiam-lhe a mente.

Raios de luz dourada eram refletidos pela placa de bronze do memorial. O rei leu a última linha da inscrição, "Nosso mundo ficou frio com sua ausência", e sentiu uma onda de verdade amarga invadir seu coração. "Você e Anduin são as únicas coisas que já me aqueceram o coração, Tiffin".

O rei ouviu passos vindo de atrás e se virou, surpreso ao ver Benedictus e Anduin se aproximarem. O regozijo ao ver o filho foi rapidamente dissipado pelo olhar do príncipe, em choque e fixo no arcebispo.

Varian estava surpreso em ver o quanto Anduin havia crescido. Ou era apenas uma ilusão causada pela luz? O príncipe pôs o arco e a aljava de lado, frustrado, brigando com o arcebispo: – Quando me implorou que o acompanhasse, arcebispo, você se esqueceu de mencionar que encontraríamos meu pai.

– Às vezes, querido príncipe, para curar o mundo, é preciso manter alguns segredos – retrucou Benedictus, sorrindo.

O rei se sentiu arrastado o papel de pai. Ele queria mandar o garoto parar de se comportar daquela maneira e agir como um adulto. Ele queria ordenar que Anduin ficasse em Ventobravo e cumprisse suas tarefas como príncipe e herdeiro do trono. Mas ele sabia que isso só serviria para criar mais raiva, como ocorrera antes. Quanto mais severo ele era com o garoto, mais Anduin se afastava.

– Então este é seu presente de Dia da Lembrança, arcebispo? – O rei Wrynn tentou suavizar sua voz: – Uma reunião de família surpresa? – Seus olhos se voltaram inconscientemente para o túmulo de Tiffin.

O arcebispo observou os dois e pareceu satisfeito: – Em parte. Mas há mais. Lembra-se da missão que me foi dada assim que Tiffin faleceu?

Varian pensou por um instante. Fazia muito tempo. Muito havia acontecido desde a morte da esposa. Muito havia mudado. Ele havia mudado muito. "Tiffin amaria o homem que me tornei?"

Benedictus esticou o braço e deu a Varian uma chave prateada e reluzente. O rei estava estarrecido, em choque, sentindo o peso do objeto na mão. Anduin soube o que era imediatamente: – A chave do medalhão da mamãe!

Varian ficou sem palavras. Buscou o que dizer: – Você encontrou! Como?

– Sim, como o senhor ordenou. Lamento que eu tenha levado tanto tempo para encontrá-lo, mas achei que hoje seria um bom dia para trazer boas memórias para os dois. – Benedictus pousou a mão sobre a cabeça do príncipe.

– Obrigado, Benedictus. Você é um bom homem. Eu não sei o que faria sem você – agradeceu o rei, emocionado.

O arcebispo fez uma reverência e despediu-se: – Por favor, permitam que me retire – e se virou, acenando. – Que a paz esteja com ambos – disse, e desapareceu na trilha por entre as árvores.

O rei Varian permaneceu imóvel, segurando a chave prateada ansiosamente, pensando sobre a estranha despedida do arcebispo. E finalmente percebeu que Anduin o observava. Todas as coisas amargas que ele queria dizer ao seu filho não importavam agora. Ele percebeu que havia apenas uma verdade: Anduin era mais importante do que tudo. Era muito claro.

O príncipe se virou para olhar a lápide da mãe, perdido nos próprios pensamentos. O pai finalmente rompeu o silêncio: – É bom ver você, filho. Acho que você cresceu pelo menos dois palmos... – Varian hesitou. – Acho que comida draeneica fez bem a você.

– Mestre Velen diz que eu cresço em todas as direções – Anduin respondeu, ainda encarando o túmulo da mãe. – Ele me lembra sempre que "devemos crescer em todas as direções, todos os dias".

O rei Wrynn balançou a cabeça, concordando: – Um conselho sábio e útil. Especialmente para um rei... ou futuro rei.

Anduin estremeceu, e então olhou para o pai, com os olhos azul-celeste faiscando: – O mundo está morrendo, papai?

Varian foi pego de surpresa pela singela intensidade da questão. Lembrou-se dos questionamentos inocentes e ao mesmo tempo profundos de Anduin desde a tenra infância.

Desde então a profunda sabedoria do garoto era evidente.

A resposta foi cautelosa: – Eu não filosofo profundamente sobre essas coisas, mas sei que o mundo possui ciclos, como estações. Tudo tem seu tempo, e as coisas precisam ir e vir no ciclo de renovação.

Varian pensou sobre como descrever a resposta de forma melhor e puxou sua espada: – Como uma arma majestosa, filho, o gume deve ser renovado sempre para que ela mantenha seu poder total.

– Velen também diz isso, que morte e renascimento são partes da mesmo revolução estelar. E o povo dele viu a longa marcha do tempo como nenhum outro.

– Então ele deve saber que reis e reinos vêm e vão, mas verdade, honra e dever duram para sempre.

– E amor – disse Anduin, mal olhando para o pai.

O rei pensou por um momento e, por fim, concordou: – Sim, amor.

– Acho que o amor sobrevive a tudo – prosseguiu Anduin.

Subitamente, Varian sabia o que fazer. Ele tinha o medalhão prateado na mão e começou a falar antes mesmo de saber o que dizer: – Eu guardei o medalhão de sua mãe por todos esses anos para me lembrar de minha responsabilidade como rei. Para me lembrar que ações têm consequências, e que um líder deve viver com suas escolhas, boas ou ruins, pois muitos acreditam nele.

Varian estendeu o medalhão para Anduin.

– Quero que você... – Varian hesitou. – Digo, pensei que talvez você gostaria de ficar com ele.

Se quiser.

Anduin concordou, e o rei lentamente pôs o medalhão no pescoço do filho. O príncipe segurou o medalhão e passou o dedo pelos entalhes, exatamente como o pai havia feito por tantos anos.

Varian entregou a chave ao filho, e o tempo parou. Até a brisa no cemitério pareceu prender a respiração em respeito ao acontecimento. Varian sentiu como se estivesse passando adiante uma espécie de tocha, uma sensação de pertencimento, um poderoso símbolo de crescimento e amadurecimento que de alguma maneira ajudaria o filho no futuro. – É seu, agora – disse o rei.

– Você pode abri-lo quando estiver pronto.

O príncipe pensou por um instante e guardou a chave. Ele encontraria tempo para fazer as pazes com o passado do próprio jeito.

– Ela amava esse medalhão, Anduin – acrescentou Varian. – Ela amava a beleza, e o povo de Ventobravo... Mas o que ela amava acima de tudo era você.

Os olhos de Anduin brilhavam marejados sob a luz da tarde. Varian olhou profundamente para o filho, enxergando-o como nunca. – Eu fui um pouco... cego... ao não ver o homem que você se tornou.

Com isso, as lágrimas do garoto se acumularam e rolaram, fartas, tão naturalmente quanto as palavras que ele sempre quis dizer: – Eu gostaria tanto de ser como você, pai. Eu quero ser um grande rei. Mas... não sou... tão forte. – Anduin enxugava o rosto furiosamente, como se as lágrimas fossem um sinal de fraqueza.

O pai o envolveu com o braço: – Não, Anduin. Você tem mais coragem que eu, e ela emana de um lugar muito profundo em seu coração. Lembra-se do que seu tio Magni dizia? Existem dois tipos de força...

E os dois disseram a última parte juntos: – Grande e pequena!

A memória carinhosa fez Anduin sorrir. Varian continuou: – Eu permaneço rígido e inflexível diante da tempestade, mas você sente o vento, você se curva e o domina, e assim se torna inquebrável.

Varian se virou para a lápide de Tiffin: – Sua mãe possuía essas mesmas qualidades. Ela dominava a arte da persuasão gentil, e seu amor movia o mundo.

O príncipe observou o túmulo da mãe, tentando controlar novas lágrimas que fluíam. Varian se viu dizendo aquelas palavras sem pensar, não como o rei de Ventobravo, mas como um pai a um filho.

– É bom que você consiga chorar por ela, Anduin. Eu nunca tive essa... força. – Ambos se detiveram por alguns momentos encarando o túmulo da pessoa cujo amor os unia profundamente, mais do que o sangue.

– Eu sinto saudades dela. – Anduin disse, finalmente. – Eu sei que eu era só um bebê, mas eu ainda a sinto.

– É por isso que você será o maior dos reis Wrynn – Varian disse, batendo nas costas do filho.

Ele desejava que aquele momento durasse para sempre, mas sabia que era impossível.

Observou a área ao redor e disse: – Então, de que direção você acha que a emboscada virá?

– Eles estão nos observando há algum tempo. Quem você acha que são? – respondeu Anduin, enxugando o rosto.

– Provavelmente assassinos se aproveitando das distrações causadas pela celebração, tempo em que os líderes de Ventobravo aparecem juntos em público. Então, qual é o plano?

Anduin tentou olhar em volta discretamente, e explicou: – Eles virão do leste, tentando bloquear a saída principal. Nós seremos atacados com força bruta, não com artimanhas. Se virarmos nossas costas para a parede a oeste, certamente os encararemos numa situação mais favorável.

Varian não consegui conter o sorriso: – Impressionante. Você realmente ouviu as lições tediosas que lhe dei.

– Você me ensinou mais do que imagina, pai.

O rei concordou satisfeito, e Anduin sorriu em resposta. Algo implícito se passava entre eles, algo que não precisava de palavras.

O estrondo de foguetes sobre eles rompeu o silêncio. Mísseis mágicos eram lançados do Vale dos Heróis e explodiam acima da cidade em cascatas de cores e formas. O encerramento das cerimônias do Dia da Lembrança havia se iniciado.

Mas os fogos de artifício também eram um sinal para outra coisa. De todos os lados emergiram homens ameaçadores, todos carregando armas grosseiras e a expressão de assassinos com sede de sangue.

Varian Wrynn se virou para o filho, quase se divertindo: – Parece que meu discurso vai atrasar um pouco.

Os atacantes se lançaram contra os dois, e Varian contou dez deles. "Sem problema", pensou, até que Anduin apontou para trás e ambos viram outro homem atrás de uma árvore. Este era um feiticeiro poderoso: suas vestes púrpuras brilhavam com proteções, e runas ardentes de energia orbitavam seu cajado retorcido.

– Eu não gosto da cara daquele – disse Varian, desembainhando a espada. Anduin concordou e sacou o arco e armando uma flecha.

Enquanto observavam, o feiticeiro brandiu o cajado e desenhou um enorme círculo brilhante no ar, entoando cânticos de evocação.

Mais fogos de artifício dividiram o firmamento, e os atacantes subitamente atacaram o rei e o príncipe. Os estouros cobriam os grosseiros gritos de guerra dos assassinos enquanto o encontro de aço contra aço lançava fagulhas e sangue ao ar. Do outro lado do Lago de Ventobravo as vozes idênticas do pai e do filho ecoavam orgulhosas: – Pela Aliança!

***

Um caleidoscópio de pessoas cercava as grandes estátuas que ornavam a ponte sobre o Vale dos Heróis. A multidão aplaudia os fogos de artifício mágicos com desprendimento, e as explosões reverberavam entre as paredes da cidade e o fosso, logo abaixo.
Alfaiates, ferreiros, cozinheiros, vendedores e soldados se espalhavam pela ponte e pela estrada para Vila d'Ouro, até onde a vista alcançava. Todos se divertiam, absorvidos pelo espetáculo.

No centro das celebrações, um grupo da Delegação de Honra não estava tão entusiasmado. O

discurso do rei Wrynn era o próximo, e ninguém sabia onde ele estava! Jaina e Mathias Shaw se entreolharam preocupados quando o marechal de campo Afrasiabi subiu no palanque acenando para a multidão. Era dele a honra de fazer a introdução do discurso do rei Wrynn. Mas a exibição de fogos de artifício acabou e o rei de Ventobravo ainda estava desaparecido. A cerimônia havia saídos dos trilhos, e Afrasiabi não gostava quando os planos não seguiam conforme o planejado.

O marechal se virou e rosnou: – Com mil demônios! Onde está ele? – Todos que estavam no tablado se encolheram, mas Afrasiabi sorriu rapidamente para a plateia e arrastou os delegados e chefes de estado para um canto. A própria delegação estava em polvorosa, discutindo todas as explicações e as possíveis ações a serem tomadas. Alguns nobres queriam dar prosseguimento à cerimônia, com ou sem rei. Outros insistiam que era necessário esperar pelo líder o quanto fosse preciso.

O general Jonas, uma mente estrategista, sabia de um plano: – Marechal de campo, eu sugiro que você execute uma ação de retardamento. Simule um ataque. Mantenha posição, como se houvesse uma, enquanto procuramos pelo rei. – Jaina e Mathias assentiram de cabeça.

O marechal de campo não exatamente gostou da nova estratégia: – General, eu sou um comandante dos exércitos do rei, não uma dançarina de hula! – Afrasiabi olhou em volta, mas tudo que obteve em resposta foi uma série de expressões de desespero, todas suplicando para que ele fizesse esse favor.

– Eu não tenho nada preparado! – protestou o marechal.

– Improvise! Distraia-os! Mantenha-os entretidos! – um coro de respostas se seguiu.

A multidão começava a se agitar atrás dele quando, finalmente, Afrasiabi parou de resistir e suspirou. Rosnando disfarçadamente, ele se virou para a turba que começava a se tumultuar.

"Malditos shows de gnomos e pôneis...", pensou.

O alto-comandante de Ventobravo forçou um sorriso que ofuscou a mais brilhante das medalhas em seu peito. Para entreter a plateia, escolheu um de seus tópicos favoritos: a fascinante história e o minucioso mundo das táticas de cerco com uso de máquinas a vapor.

***

Varian Wrynn se movia como um elemental do vento, pulando e girando em todas as direções para proteger o filho a qualquer custo. Num instante ele se lançava para a esquerda, desenhando arcos longos com sua espada para fazer recuar um grupo de assassinos; no seguinte, interceptava um grupo que se aproximava de Anduin pelo outro lado, cortando com a selvagem espada Shalamayne para efeitos mortais.
Eles mantinham o muro de pedra às costas e tentavam repelir os ataques, mas a despeito de seus esforços, o rei e o príncipe não conseguiam avançar na direção do feiticeiro. Mais atrás o mago claramente evocava algo, e seu portal ficava mais definido a cada segundo.

Varian aparou uma machadada e arrancou o machado – e o braço – do assassino com um movimento perfeito de espada, e em seguida pulou para a frente tentando manter a vantagem.

A cada passo em direção ao evocador, no entanto, os assassinos se aproveitavam da preocupação do rei com o filho e avançavam contra Anduin. Estava claro para Varian que os assassinos estavam apenas brincando com ele até que algo irrompesse do portal, ainda que ele não pudesse imaginar o que pudesse ser.

O rei olhou rapidamente para o filho e se encheu de orgulho. O príncipe mantinha terreno bravamente, atirando flecha atrás de flecha nos assassinos. Muitos já estavam cobertos de setas e penas estabilizadoras, mas ainda assim apenas três caíram. Certamente tratava-se magia negra.

Anduin desviou-se habilmente de uma adaga atirada contra si e pousou perto de Varian: – Eles estão protegidos, pai! Cuidado!

O rei Wrynn se virou para o filho: – Fique por perto. Temos que chegar até o feiticeiro antes que ele complete o feitiço!

– Eu também sei brincar com essas proteções! – disse Anduin, erguendo as mãos. Murmurou uma prece e disse a palavra de poder "Escudo", que ribombou nos céus como um trovão.

Varian sentiu os pelos da nuca se eriçarem quando um escudo de energia divina o recobriu. Ele sorriu um sorriso de lobo para o filho e se virou para dois pobres assassinos que estavam no lugar errado e na hora errada, desdenhando: – Vamos ver se eles estão protegidos disso! – Varian urrou e se atirou para frente, dando um salto heroico no ar, e desceu a espada num ataque selvagem.

O orbe brilhante da Shalamayne deixou um arco luminoso ao partir ao meio um assassino que nem viu o que o atingiu. O torso sem vida voou dividido em duas metades sangrentas e, antes mesmo que os restos caíssem no chão, Lo'Gosh já estava se aproximando da próxima vítima, girando a espada e acabando com o assassino seguinte com a mesma velocidade. Anduin disparava flechas sem parar, guardando a retaguarda do pai.

As coroas de Ventobravo se moviam como uma, rasgando com a espada e perfurando com flechas conforme abriam caminho na direção do cada vez mais desesperado feiticeiro. Rei e príncipe eram uma equipe perfeita, Varian despejando força bruta e Anduin liberando saraivadas de aguilhões.

O feiticeiro sombrio percebeu que suas chances de sucesso diminuíam rapidamente e redobrou os esforços, canalizando mais energia púrpura para o campo cintilante. Algo enorme e medonho logo começou a tomar forma na névoa remoinhante do portal.

***

– Ele não está na bastilha. Eu vasculhei tudo – disse o general Jonas, ainda recuperando o fôlego.
Jaina olhou Mathias e franziu a testa: – Ele não é assim. Onde ele poderia estar? E onde está o príncipe?

O general ficou ainda mais alarmado: – O rei e o príncipe sumidos? Isso é um desastre!

Shaw meneou a cabeça: – Amplie as buscas, general. Eu mobilizarei a AVIN.

– Eu checarei o porto – disse Jaina logo antes de sumir num clarão de luz branca.

Jonas franziu o cenho e começou a sair.

– E general – disse Shaw agarrando o braço de Jonas com uma expressão de profunda preocupação – esteja pronto para soar o alarme. Temo que algo sinistro esteja acontecendo.

***

O rei era um lobo feroz, atacando todos os inimigos pelo caminho, às vezes dois ou três de uma só vez, abrindo caminho até o feiticeiro. Seus olhos ensandecidos refletiam a sede de sangue.
Depois de uma série de ataques, restavam apenas três defensores entre eles.

Anduin armava e atirava flechas de forma suave e quase automática, numa maestria instintiva.

As setas sibilantes atingiram um dos últimos defensores com precisão, enterrando-se fundo no corpanzil. O assassino caiu onde estava. Anduin piscou, surpreso. Obviamente o feitiço de proteção havia expirado, e o mago se devotava completamente ao portal, comprometendo todo o mana e pouco se importando em proteger os comparsas. Os dois últimos assassinos olharam o feiticeiro consternados, e Varian viu a oportunidade de que precisava.

Numa investida célere ele encurtou a distância que o separava dos inimigos e cruzou espadas com ambos os malfeitores ao mesmo tempo, repelindo ambos furiosamente. O ataque surpresa deixou-os desorientados e vulneráveis por um brevíssimo instante – e isso era tudo que o rei precisava.

Com um brado de guerra sorvido das profundezas da Voragem, Varian girou num redemoinho de lâminas mortais, fendendo as armaduras e depois decapitando os dois assassinos, cujas cabeças rolaram pelo chão, imortalizando as expressões de surpresa.

Varian deteve-se e respirou forte, encarando o feiticeiro a apenas alguns passos de distância. O mago exibiu os dentes amarelos, triunfante: – Tarde demais! Seu destino está...

Antes que o evocador pudesse completar a provocação, Varian atacou uma vez mais, estendendo a espada ao mesmo tempo em que Anduin disparava um projétil mortal diretamente por sobre o ombro do pai. Para a surpresa dos dois, o feiticeiro nem tentou se defender. Sua única preocupação era finalizar o portal, ao custo de uma flecha atravessada no pescoço e uma lâmina em seu peito.

O feiticeiro ainda sorria triunfante quando caiu morto, seu último encantamento terminado. O portal pulsava com energia, emoldurando a silhueta negra e opulenta da criatura que se preparava para atravessá-lo!

– Para trás, Anduin! – Varian berrou.

Em meio a um clarão de luz efervescente, uma figura imensa saiu do portal, almejando invadir Ventobravo. Anduin ofegou, surpreso, e Varian recuou, em postura defensiva. Diante deles estava o maior draconídeo que já haviam visto. O enorme monstro, meio dragão, meio homem, estava adornado da cabeça à cauda com uma armadura entalhada com símbolos do Martelo do Crepúsculo, cujas placas púrpura faiscavam com feitiços de proteção.

O draconídeo sacou machados idênticos – inclusive no tamanho descomunal – das costas e vociferou um desafio que estremeceu as árvores e as entranhas de Anduin. Varian interpôs-se a meio caminho entre o filho e a criatura dantesca: – Atrás de mim, Anduin! Não importa o que aconteça. Entendeu? Fique longe. Esta criatura... esta coisa... é diferente.

Anduin nem teve chance de concordar: o draconídeo uivou de ódio e avançou sobre o príncipe.

***

– Então com o advento da manivela vaporosa transversal de Gnomeregan – o marechal de campo arrastavas as palavras, olhando por sobre o ombro na expectativa de que o rei finalmente chegasse – e... com a fantástica nova interligação de esteiras dentadas, a máquina de cerco baridependente pode lançar simultaneamente mais de cinquenta rochas, mesmo no clima gélido da Coroa de Gelo.
O marechal de campo Afrasiabi fez uma pausa, esperando que a multidão estivesse tão impressionada com aquilo quanto ele. O povo de Ventobravo estava de fato impressionando, certamente, e no mais absoluto silêncio. O tilintar de um anel caindo no calçamento de pedra ressoou pelo recinto, e então o marechal de campo se virou e se encolheu, derrotado.

Os nobres da cidade estavam reunidos. Um soltou: – Alguém faça alguma coisa. Isso é um desastre! Onde está o rei?!

Todo os delegados começaram a falar ao mesmo tempo. Eles estavam cochichando e discutindo há algum tempo, mas agora era haviam chegado a um consenso. Todos se viraram para Benedictus: – Nós decidimos que o arcebispo deve falar em nome do rei.

Benedictus negou a proposta com um gesto: – Não, não. Seria uma honra, mas esse não é meu papel. Vamos aguardar para saber o que houve com nosso rei.

A multidão vaiava e assoviava. O marechal de campo Afrasiabi abandonou o posto no palanque e se sentou, desgostoso: – Humpf... Eu conquisto vitórias, não corações!

Uma crescente onda de preocupação começou a engolfar a multidão, que começou a perceber que algo estava errado. Pequenas amostras de ansiosa insatisfação surgiam nas arquibancadas conforme o paredão de vozes se erguia.

– Nós estamos perdendo o controle da plateia, arcebispo. Faça algo – suplicou um dos nobres.

– Por favor! Eles adoram você!

Benedictus olhou para a delegação e finalmente aquiesceu: – Muito bem. Será uma grande e humilde honra dizer algumas palavras em respeito a este dia.

A multidão murmurou, satisfeita, quando o arcebispo Benedictus subiu e tomou o pódio. Aquela presença tranquilizadora pareceu preencher o vazio do vale, e a turba se aquietou, aguardando uma palavra do líder espiritual. O arcebispo fez uma pausa para se preparar e então ergueu as mãos. Aplausos e vivas explodiram, e então Benedictus começou a falar.

***

Sangue brilhante escorreu dos ferimentos recém-abertos quando Varian foi atirado para trás por um poderoso movimento do enorme machado do draconídeo. A imensa criatura se arrastou para frente e golpeou com o segundo machado, e Varian mal conseguiu aparar o golpe. O rei viu uma breve abertura e, com toda a habilidade, se avançou e atacou a armadura que protegia o ventre do monstro, mas a espada do rei foi repelida em meio a uma chuva de fagulhas. O draconídeo olhou para baixo e soltou uma risada gutural, cercando e provocando o guerreiro já cansado.
Anduin atirou a última de suas flechas na fera, mas o efeito era o de mosquitos atacando um elekk. O rei continuou fintando e se esquivando da criatura, tentando manter a atenção do monstro longe de seu filho enquanto choviam golpes e mais golpes. Anduin podia fazer nada, a não ser observar, angustiado, o pai tentar em vão repelir a descomunal força do monstro.

Subitamente o draconídeo girou, movendo-se muito mais rápido do que se imaginaria diante de todo aquele tamanho. Varian conseguiu aparar a sequência de machadadas, mas a cauda espinhosa da criatura acertou-lhe em cheio o peito e o atirou para longe. O rei caiu com um baque surdo, rolou pelo chão e não se levantou mais.

Anduin observou, em choque, o corpo inerte do pai. Tudo aquilo parecia um pesadelo do qual não conseguia acordar. Anduin gritava – Pai! – mas Varian permanecia imóvel, coberto de sujeira e sangue.

Anduin tentou alcançar o pai, mas sentiu a terra tremer sob os pés. O draconídeo avançava a passos largos em sua direção, como uma locomotiva, imensa e inclemente, um dos machados já cortando o ar, se movendo certeiro para a testa do príncipe.

O garoto caiu para trás como uma pena diante de um furacão, brandindo o arco. O machado do draconídeo atingiu em cheio a arma do rapaz, que caiu rolando pelo chão.

Anduin estava com o rosto deitado na terra, seus braços e peito adormecidos pelo impacto.

Tentou se levantar, mas o corpo aturdido se recusava a cooperar. Tudo o que podia fazer era rolar, e isso salvou sua vida. No instante em que saiu do lugar o segundo machado gigante rachou a terra sobre a qual estava há pouco. O poderoso golpe levantou uma explosão de poeira e pedras, ferindo os olhos do príncipe.

Anduin desfaleceu, ofegante. Sua mente virara um turbilhão. Viu o corpo imóvel do pai e então forçou-se a olhar para cima e encarar a massa draconídea, tentando ser tão valente e orgulhoso quanto o príncipe de Ventobravo deveria ser, quanto Varian seria. Ao deparar-se com os frios olhos azuis da criatura, no entanto, Anduin sentiu uma estranha calma envolvê-lo.

O meio-dragão ergueu ambos os machados e olhou o rival com desdém, as presas gotejando com sede de sangue. Anduin proferiu uma curta prece, sabendo que logo tudo estaria terminado.

Os machados assoviaram, num júbilo cruel...

De súbito, a sombra de uma armadura azul e dourada cobriu Anduin. Seu pai, cambaleando e coberto de sangue, impedia com a espada o avanço do machado do draconídeo, o que causou uma explosão de luz e fagulhas. Num estridente grito de metal se contorcendo, as armas voaram para longe do alcance de ambos... e então veio o segundo machado, no rastro do primeiro.

Varian sentiu a mordida quente da lâmina cortar-lhe a armadura e então enterrar-se em seu torso. O violento impacto atirou o rei ao chão, mas seus olhos não se desgrudaram de Anduin, na ânsia de saber se o filho estivava em segurança.

Os olhares de pai e filho se cruzaram, e Varian acalmou-se ao perceber que o garoto não estava ferido. Quando a poeira baixou, contudo, Anduin horrorizou-se com o que viu.

O rei jazia no chão com o machado do draconídeo enterrado no peito. Anduin lamuriou-se, cheio de angústia, e o momento pareceu durar uma eternidade. Varian olhou fundo nos olhos do filho e disse que estava tudo bem. "Afinal, é assim que sempre termina para os reis da família Wrynn..."

O draconídeo parou sobre Varian, gargalhando enquanto o rei tossia e suplicava que Anduin fizesse uma última coisa:

– Corra... – Varian sussurrou enquanto uma fria e suave escuridão o envolvia. "Deixe-me ser o último a pagar este preço". A criatura encarou o rei e puxou o machado do corpo ferido. A retirada da arma estranhamente não foi dolorosa. Não havia dor, não havia tristeza. Varian sabia que morreria como havia vivido. O monstro ergueu a lâmina encharcada de sangue acima da cabeça, a superfície gasta brilhando à luz do poente. "Como é tranquilo aqui, Tiffin..."

Varian sentia o mundo lhe escapar... até que alguém se ajoelhou ao lado, orando e protegendo o terreno contra o inimigo. O rei lutava para manter a consciência e lentamente percebeu que ali estava o filho, de braços erguidos, gritos e preces protegendo o pai e mantendo a criatura longe.

Anduin se pôs de pé e abriu os braços para os céus. Uma nova de energia sagrada forçou o monstro a recuar, enquanto o príncipe avançava, forte e destemido. "Como um rei!"

Enquanto Anduin gritava a palavra de poder "Barreira", o cemitério parecia cada vez mais desfocado e difuso. O draconídeo estava confuso, e desferiu o machado contra o príncipe, mas a arma foi repelida com um anel divino. Varian observava, admirado, Anduin perseverar. O draconídeo circundou pai e filho, preparando-se para atacar, mas a única arma de Anduin era sua fé! Varian tentou alcançar sua espada, mas a distância era muito grande. Soltou o corpo outra vez, engasgando-se com a dor. Mal podia respirar, e muito menos se mover.

Anduin permaneceu firme como uma rocha, corajoso e resoluto, mesmo quando o draconídeo preparou uma última investida. Varian rolou de lado e, apesar da dor lancinante, tentou se levantar. Ele tinha que fazer algo, e foi então que sentiu o pedaço da armadura do dragão negro preso no cinto. O rei venceu a dor e puxou a lâmina afiada.

Quando o draconídeo atacou o garoto manteve-se firme, envolto numa aura de Luz Sagrada, e abriu as mãos para o céu ao pronunciar o encantamento que dissipava magia. A cada palavra, a terra ressoava, energizada, sacudindo as lápides e agitando a superfície do lago. Um clarão de fogo iluminou o céu e atingiu o draconídeo assim que ele avançou.

O fogaréu cegou a besta, que cambaleou, gritando de dor e fúria, em direção ao sereno Anduin.

Quando o draconídeo caiu, sua armadura se acinzentou. Ele não estava mais protegido por magia negra.

No último instante, Varian levantou-se abruptamente, reunindo a pouca força que lhe restava, e ergueu a lasca da armadura do Asa da Morte.

O estilhaço atravessou a armadura e cravou-se no peito do draconídeo. Como numa violenta avalanche, o corpanzil do monstro desabou sobre Varian. O rei ouviu um grito que era parte brado de guerra, parte urro de dor, mas não teve certeza se o som havia sido emitido por ele ou pela criatura. Então, misericordiosamente, tudo escureceu.

De algum lugar distante Varian sentiu a presença de Anduin. Abriu os olhos e viu que estava nos braços do filho, enquanto as lágrimas do garoto se misturavam ao sangue real.

Jaina e o general Jonas correram até o cemitério seguidos por uma hoste de guardas. O general franziu o cenho e gesticulou para que os soldados checassem os corpos dos assassinos, enquanto Jaina caiu de joelhos perto do rei e do príncipe. Ela viu o terrível ferimento de Varian, olhou para Anduin e sacudiu a cabeça negativamente.

Varian virou-se para Anduin e o viu com novos olhos, cheios de calor e admiração: – Você estava certo afinal... – Varian fez uma careta de dor – o amor sobrevive a tudo. – Anduin limpou o sangue e a terra dos olhos de seu pai, mas Varian mal sentiu o carinho. Seu corpo estava frio e parecia que o mundo inteiro estava se esvaindo.

O sol brilhava vermelho como o sangue no horizonte, colorindo todo o cemitério com um tom carmesim escuro. O rei fechou os olhos e deixou que a Luz fizesse o que tinha que ser feito. A guarda de honra se reuniu ao redor do rei moribundo, e os chiados emitidos por Varian se tornaram cada vez mais suaves e menos frequentes.

– Sinto muito, pai – disse Anduin por entre as lágrimas.

O rei abriu os olhos outra vez e tentou sorrir: – Não. Eu sinto muito... por não ter visto o que você é... e sempre foi. Estou orgulhoso por você... ser meu filho. – Varian estendeu a mão ensanguentada para tocar o rosto do garoto. – Não lamente a minha morte, Anduin. Este sempre foi meu destino... não deixe que seja o seu...

O braço de Varian tombou inerte, e seu corpo ficou imóvel. Anduin ficou sentado, congelado, por um longo tempo, sentindo todo o corpo entorpecido, a vida toda girando em turbilhões debaixo do nariz. O general Jonas esticou o braço para ajudar o jovem a se levantar: – Vamos voltar à bastilha, Anduin. Precisamos ir para um local seguro. O príncipe herdeiro precisa ser protegido.

Anduin não se movia, e não havia escutado nada do que o general dissera, vendo incrédulo a fortaleza que era seu pai morrer.

– Vamos sair daqui – Jaina suplicou tomando o braço de Anduin. O príncipe se desvencilhou dos dois e enxugou os olhos tomado por uma fúria repentina.

– Não! Não é assim que termina! – exclamou, sacudindo o corpo do rei. – Está me ouvindo, pai?!

Um príncipe Wrynn não fica observando enquanto um dos seus morre! Este não é nosso destino!

– Anduin gritava para o céu, e as nuvens pareciam se abrir em simpatia.

Os outros presentes observaram, estupefatos, o príncipe fechar os olhos do pai e lentamente entoar um cântico. No começo um som suave e gentil, mas conforme o volume da voz aumentou, uma bela e poderosa canção tomou o lugar. Enquanto as palavras saíam, as mãos do príncipe começaram a emitir um brilho, primeiro fraco, depois mais e mais luminoso, até que começou a competir com o sol que se punha, iluminando todo o cemitério com uma luz equivalente ao zênite.

A canção alcançou o apogeu, e o príncipe lançou o olhar e a voz para o firmamento, rogando às profundezas dos cosmos por uma fonte de poder divino.

Subitamente, raios mais brilhantes que mil sóis explodiram dos dedos de Anduin e invadiram o corpo do rei, colorindo-o de um amarelo brilhante como o ouro mais puro. Os guardas recuaram, protegendo os olhos, enquanto o corpo de Varian era agitado por um afluxo de pura luz. No centro de tudo estava Anduin, abraçando o corpo do pai enquanto um vórtex de infinita beleza dançava entre eles.

Em agudo contraste com a intensa energia que rodopiava e ondulava pelo lugar, o príncipe começou a falar com voz melodiosa e suave enquanto cuidadosamente pousava as mãos sobre a testa do rei imóvel, e serenamente iniciava uma oração.

***

Benedictus estava à vontade. A multidão adorava tudo o que ele dizia. Com o tempo, o povo perceberia que aquele dia fora inevitável e que, por meio dele, o arcebispo de Ventobravo, o mundo finalmente seria purificado pelos grandes acontecimentos em curso.
O arcebispo levantou o braço em direção à massa, que bebia cada palavra proferida: – Neste exato momento, enquanto estamos aqui, tempos terríveis se abatem sobre nós. As fundações do mundo foram dilaceradas. Azeroth está sendo expurgada pelo fogo divino, e nós nos lembraremos por longos anos destes dias de julgamento como o início de uma nova era!

A multidão ovacionava o discurso sem saber exatamente por quê, e Benedictus ria para si mesmo, fechando os olhos em satisfação. Mas a multidão gritou outra vez, mais alto que antes.

Benedictus abriu os olhos, surpreso. Outra aclamação se seguiu, ainda mais forte, e o arcebispo se virou para ver por que as pessoas gritavam.

Subindo no palco, desgrenhados e cobertos de sangue, estavam o rei Varian e o príncipe Anduin, se apoiando um no outro, fatigados. Quando a multidão notou o estado em que pai e filho estavam, murmúrios de preocupação tomaram o recinto, mas Varian ergueu a mão num gesto tranquilizador, silenciando os comentários.

Benedictus, completamente sem palavras, se curvou e deu passagem ao rei de Ventobravo.

Varian caminhou com dificuldade até o palanque, e Anduin o ajudou a se levantar, mesmo fraco.

Varian deu um tapinha no ombro do filho e meneou a cabeça positivamente, enquanto Anduin caminhava ao encontro de Jaina e do restante da Delegação de Honra.

Varian subitamente se lembrou de que não havia preparado o discurso do Dia da Lembrança. O rei parou por um instante, tentando sorrir em meio à dor, e percebeu com extrema clareza que agora sabia exatamente o que dizer. Apontou para as estátuas imensas à frente da cidade.

–Ouça-me, povo de Ventobravo! O coração do seu rei ainda pulsa, batidas que se fortalecem dia após dia ao ver a determinação que vocês demonstraram para se recuperar da tragédia. Assim como estas estátuas permanecem de pé, vigilantes, também permanecerá Ventobravo, agora e sempre!

Como se os primeiros raios da manhã houvessem surgido no horizonte, a multidão explodiu radiante, ovacionando o rei e aplaudindo diante dos portões da grande cidade dos humanos.

– Nós estamos aqui reunidos no Dia da Lembrança para honrar os heróis que nos mostraram o caminho com a luz de suas vidas e a glória de seus feitos.

A multidão respondia com palmas entusiasmadas.

– Uther, o Arauto da Luz!

Os gritos da multidão se transformaram num urro selvagem.

– Anduin Lothar!

A ovação era libertadora e durou um longo tempo. Varian esperou pacientemente até que os clamores diminuíssem. Ele estava repleto de orgulho, por seu povo e por sua cidade, mas agora sua voz assumiria um tom sombrio:

– Uma vez mais nos deparamos com uma nova e potente ameaça – exclamou, apontando para as torres danificadas. – Agora mesmo nós exibimos as cicatrizes de forças malignas que visam nossa destruição. – Varian elevou a voz para que todos os ouvissem. – Mas a humanidade não se intimida facilmente! Nós permanecemos de pé e nos mantemos lado a lado! Nunca seremos escravos do medo!

As pessoas ficaram se extasiadas! Os membros da delegação, atrás do rei, aplaudiam em uníssono, e as diferenças agora significavam nada. A multidão ainda gritava quando Varian lançou olhares para Jaina e Anduin, lutando contra o próprio turbilhão de emoções. Ao falar de novo, a voz soou gentil e paternal, algo que o povo de Ventobravo jamais havia visto: – Neste dia devemos nos lembrar não apenas do que é bom, mas também do que é ruim, pois é por meio da adversidade e do erro que nos tornamos melhores! Eu mesmo fui um... rei ausente, caçando nossos inimigos em todas as profundezas. A segurança do meu povo é minha maior responsabilidade, o bem-estar de todos é minha primeira e única prioridade. Pois a verdade é que não é o povo que serve ao rei; é o rei que serve ao povo!

A plateia gritava novamente. Rosas eram atiradas ao palco e palavras de encorajamento vinham de todos os cantos. Estava claro que o povo se importava mais do que ele imaginava, e isso o emocionou profundamente.

– Eu não fui o melhor líder... e pai... e marido. – Os olhos de Varian ficaram marejados pelas memórias. Virou-se e acenou com a cabeça para o filho.

– Um sábio disse certa vez que nós devemos crescer em todas as direções, todos os dias. Eu ainda posso crescer. E vejo uma cidade se erguendo em meio aos desastres, com esperança renovada e construções ainda mais belas!

Os aplausos e gritos dos arquitetos e alvanéis eram os mais altos. Varian ergueu a mão para prosseguir:

– Sim, hoje honramos o passado, mas com nossos olhares apontando para o futuro! Um que forjaremos juntos, por nós mesmos, por nossos filhos e pelos filhos de nossos filhos!

Os gritos que se seguiram misturavam amor e esperança numa amálgama completamente nova.

Os olhos do rei percorreram a multidão e viram vários rostos jovens, as crianças que logo assumiriam os próprios destinos e, à própria maneira, construiriam um mundo melhor.

– Toda geração está destinada a alcançar seus sonhos. Para garantir que isso aconteça, cada um de nós tem seus próprios testes e adversidades, e alguns terão certeza de que o fim está próximo. Mas não há verdade nas mentiras que circulam em tavernas de que os bons tempos ficaram eternamente para trás. Não! Cada dia de nossas vidas é um grande dia! Toda geração encontra sua própria maneira de se tornar a melhor geração que já viveu!

Ao som da multidão, o rei dirigiu os olhos para a Delegação de Honra. Jaina sorria, enquanto Anduin aplaudia mais alto do que todos, o medalhão prateado da mãe pulando na corrente. O rosto do jovem estava cheio de orgulho e algo mais. Amor.

Varian não se sentia mais sozinho em sua luta para proteger o mundo. Ele tinha o sangue de seus pais nas veias e Anduin, por sua vez, também o possuía. Varian sentiu o calor e o conforto de seus ancestrais durante a grande cisão. Foi de onde obteve forças para reinar e, algum dia, seria de onde Anduin obteria a força para realizar o próprio destino. Varian sorriu para o filho e se virou para a multidão cheio da certeza de que espaços agora preenchidos em seu coração haviam permanecido vazios por muito tempo.

– No passado nós utilizamos força e aço para forjar nosso caminho. Protegemos o que podíamos e destruímos o que devíamos. Mas esta não é a única maneira. Se quisermos curar este mundo, então deverá chegar o dia em que os líderes de Azeroth não serão mais guerreiros, mas curadores! Aqueles que construíram ao invés de quebrar. Só então nós poderemos realmente curar nossas feridas mais profundas e alcançar a paz duradoura.

A multidão berrava em aprovação. Mesmo o barão Lescovar e sua trupe de nobres agora estava de pé e aplaudindo, levados pelo poder e pelo orgulho da visão do rei. Varian Wrynn ergueu as duas mãos para silenciar a audiência uma última vez, e então apontou novamente para as grandes estátuas no vale.

– Olhem acima de suas cabeças! Os heróis de outrora permanecem de pé, e nós os honramos e os lembramos neste dia. Agora olhem para os lados! Ao seu lado, nesta multidão, estão os heróis de amanhã! Você... e você... e você! Cada um de vocês terão um papel nisso, cada um de vocês fará a diferença e, no tempo certo, alguns serão honrados nesta data pelos feitos ainda maiores do que nós podemos sequer imaginar!

Os mais jovens na multidão somaram suas vozes aos gritos, os olhos inocentes iluminados pela promessa e pela excitação das grandes aventuras que viriam. Até o inflexível marechal de campo Afrasiabi teve que tirar um cisco do olho, garantindo que não, aquilo não eram lágrimas.

– Portanto, povo de Ventobravo, nós devemos nos unir no dia de hoje! Renovemos nossas promessas de suportar e proteger a Luz, e juntos nós encararemos esta nova tempestade sombria, e nos manteremos firmes contra ela, como a humanidade sempre o fez... e sempre o fará!

A multidão guardou os gritos mais altos para o fim. Em coro, gritos de "Viva o rei Varian! Viva o rei Varian!" alcançaram os céus com vigor e convicção. A ovação não parecia ter fim, ecoando nas profundezas da Floresta de Elwynn e chegando até os distantes picos das Montanhas Cristarrubra.

Ao se aquecer com o calor de seu povo, ele se sentiu verdadeiramente em casa pela primeira vez em anos, e se viu saboreando a grande fortuna que era ser pai, e a grande honra que era ser o rei de Ventobravo. E não pela primeira, e nem pela última vez, o rei Varian Wrynn se sentiu profundamente orgulhoso de ser humano.



©2013 Blizzard Entertainment.
All rights reserved.

Nenhum comentário:

Postar um comentário