quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Velen: Lição do Profeta


Velen:
Lição do Profeta

Marc Hutcheson


As elevadas energias da Sede dos Naarus inspiravam paz interior até no mais sanguinário dos peregrinos guerreiros e causavam maravilhamento até nos habitantes mais cínicos de Azeroth.

O vulto que flutuava diante da Sede há muito já se reconfortava com essa coluna de Luz. Velen olhou para fora de sua câmara de meditação, buscando um insight... em todas as conexões, grandes ou pequenas, nas quais ele poderia perceber as linhas do futuro. Ao longo dos últimos meses, as linhas pareciam se fragmentar cada vez mais.


Enquanto o Profeta dos draeneis meditava, com pernas cruzadas e mãos pousadas nos joelhos, os cristais que refletiam as energias do ancião fulguravam e pulsavam e turbilhonavam ao redor dele, sem padrões aparentes, apenas caos. E as visões, as possibilidades de amanhãs infinitos, o atacavam.

Uma gnomida exausta e imunda arrastava um dispositivo estranho pela poeira de Terralém, deixando sulcos gêmeos que serpenteavam sem fim nas dunas atrás dela. Etéreos, com energias envoltas em panos, simplesmente observavam o esforço da gnomida, nem ajudando nem impedindo o duro progresso.

O vindicante Maraad batalhava um inimigo oculto com seu imenso martelo cristalino, e então caiu de joelhos, com o peito trespassado por uma lança oleosa das trevas mais negras, cuja lâmina emitia uma fumaça doentia.

A silhueta blindada de Asa da Morte preenchia o céu enquanto o Aspecto sobrevoava um mundo calcinado e pousava numa árvore carbonizada e partida, tão gigantesca que só poderia ser Nordrassil. Suplicantes envoltos em mantos de roxo profundo se atiravam numa fenda vulcânica no solo.

Med'an, o Guardião de Tirisfal, chorava, com lágrimas que pareciam deslocadas naquele rosto de feições órquicas, e olhos tão vulneráveis e magoados que qualquer pessoa que os fitasse teria o coração partido.

Mas não Velen.

Havia muito que o Profeta aprendera a se distanciar das visões, de modo a não enlouquecer. O terceiro olho profético já o acompanhava há tanto que as premonições era tão naturais quanto respirar. Os fragmentos de cristal ata'mal tinham tornado Velen a sentinela de universos alternativos sem fim, às vezes imersos em seus próprios eclipses de trevas, gelo ou fogo. Velen não se entristecia por esses futuros, nem se enlutava pelas suas extinções, nem mesmo gritava em exaltação por seus triunfos. O Profeta apenas os lia, observando as tramas de suas tapeçarias em busca de caminhos que levassem ao triunfo absoluto, no qual a vida e a Luz rechaçariam as trevas e salvariam tudo da aniquilação. O que importavam os eventos menores – tão valorizados pela maioria dos mortais, até mesmo pelos draeneis – quando comparados à responsabilidade intimidadora de garantir a sobrevivência de toda criação?

Velen vasculhou os destroços das imagens que se moviam muito rápido, tentando fixar algo, encontrar um marco do caminho. Mas isso lhe escapava.

* * *

Anduin Wrynn se ajoelhou na terra macia e pousou as mãos numa açoitadeira, uma das últimas mutações restantes entre aquelas causadas pela queda da Exodar em Azeroth. Dois draeneis ladeavam a criatura, prendendo-a para o príncipe, usando de força gentil para evitar que ela se libertasse e fugisse da Luz canalizada pelas mãos do rapaz. Os draeneis outrora assumiram a missão de reparar a destruição causada pela chegada deles a este mundo mas, após completar a maior parte da tarefa, eles perceberam que seu poderio se fazia necessário em outros lugares: primeiro na guerra contra a Legião Ardente, em seguida na marcha pelo domínio gélido do Lich Rei e, agora... no mundo pós-Cataclismo.
Algumas das monstruosidades disformes tinham sido ignoradas na confusão, vagando tragicamente em loucura e dor, desviadas de seu propósito original por um acidente terrível. Na primeira vez que Anduin viu uma delas, ele não sentiu nojo, mas tristeza. Eu tenho de ajudar. Eu tenho de tentar. Assim que teve uma pausa nas lições com Velen, o príncipe acorreu às matas e campos da Ilha Névoa Lazúli, seguido pela escolta de draeneis. Agora, os guardas serviam de grilhões improvisados enquanto o rapaz rogava à Luz que curasse o mutante, que acalmasse sua loucura. Anduin não entendia o que havia de errado com a coisa. Não precisava entender.

A Luz entendia. Seu poder era canalizado pelo jovem príncipe, que era usado como um meio para corrigir a criatura que se contorcia sob as mãos dele. O ato de cura sempre fez Anduin se sentir como a chave numa fechadura, a ferramenta aplicada ao uso correto, e ele tinha provado seus talentos a si mesmo em seu tempo com os draeneis. Sua confiança tinha se desenvolvido sob a tutela da raça antiga, particularmente com as aulas do Eterno, o Profeta. Quer você perceba isso ou não, pai, eu estava certo. Magni estava certo. Este é o meu chamado.

Tal pensamento o entristecia. Anduin amava o pai, mas distância entre eles era grande demais, tanto em temperamento quanto em experiência. Por que você não entende, pai? Eu não sou como você. E o que há de errado nisso? Você não pode aprender com nossas diferenças?

Comigo?

Pessoalmente, Anduin se arrependia do último desentendimento. Varian insistia em tratá-lo como uma criança, enquanto o Profeta, Magni e os outros claramente o viam de forma diferente, reconhecendo seu valor nascente. Anduin e o pai tinham discutido durante a conferência da Aliança em Darnassus, e Varian o machucara, segurando o braço do filho com imensa força. O momento mais orgulhoso da vida de Anduin veio em seguida, logo após aquela discussão, quando o Profeta falou com ele, naquela voz suave e sobrenatural, convidando-o a estudar na Exodar como seu discípulo.

Por que você não pôde ver que eu tinha de ir, pai? Por que você não viu a honra nesse convite?

Anduin se obrigou a prestar atenção no presente, afastando-se das distrações da auto-piedade e se concentrando nas necessidades da açoitadeira. O rapaz fez uma promessa a si mesmo de que jamais deixaria de se maravilhar com esta experiência. A cura era frequentemente vista como uma coisa corriqueira, um milagre que se tonara mundano, mas Anduin sabia que a Luz, a fonte da cura, não via o ato da mesma forma. Toda vida, toda vida, era um milagre.

Diante do príncipe agora havia uma bela criatura vegetal púrpura e verde, de pétalas largas e porte ereto e forte. Os draeneis a soltaram. Um deles se curvou como reconhecimento do feito do rapaz.

Anduin ouviu uma comoção atrás de si e se espantou, acordando completamente do transe curativo. Foi então que ele percebeu que estava sentado com o traseiro real na lama. Muito digno, pensou Anduin. Meu pai ficaria felicíssimo.

O príncipe se levantou num salto. Diante dele havia um draenei alto vestido de armadura pesada.

Era um Escudo, um dos guardas pessoais de Velen.

— O Profeta pediu para ver-te, Príncipe Anduin — foi tudo que ele disse.

Os refugiados tinham chegado perdidos em humildade, inicialmente, sozinhos e em pares, em barcos furados e jangadas improvisadas, trocando o horror certo pelo risco desconhecido.

Rumores diziam que os draeneis tinham escapado à ruína do mundo, que havia refúgio na Ilha Névoa Lazúli. E qualquer rumor era melhor do que a realidade que a maioria desses exilados enfrentara. No começo, os draeneis os ajudaram como puderam, dando aos refugiados um lugar fora da Exodar, curando-os e compartilhando comida e água. Porém, em seguida os exilados começaram a buscar notícias de seus parentes e amigos, e o chamado ecoou por Kalimdor: O

Profeta mantém Névoa Lazúli segura. O Profeta previu o Cataclismo e fará que tudo fique bem de novo. Antes, sozinhos e em duplas, agora em uma ou duas dezenas. O campo de refugiados continha mil exilados, e os draeneis perceberam que as necessidades dos recém-chegados em muito superavam a vontade e capacidade dos hospedeiros de supri-las.

Os sussurros no campo acabaram tomando um viés mais sombrio. O Profeta não quer nos ver.

Os draeneis o mantêm oculto nas profundezas da espaçonave. Eles parecem demônios de cascos, não parecem?

Anduin tinha passado algum tempo dentre os refugiados, curando o tanto que podia, encorajando a fé na Luz eterna, aconselhando e liderando de uma forma sutil que frequentemente deixava os adultos espantados, na presença dele... e um pouco perturbados, quando ele estava ausente. O príncipe perguntara várias vezes por que essas almas desgarradas não tinham buscado a proteção do pai dele, da força de Ventobravo. Os exilados responderiam com olhares de esguelha, proclamando Varian um grande e verdadeiro rei, mas afirmando que ele não dispunha da habilidade de ver o futuro, como o Profeta. Sem querer ofender, o tom deles informava, mas seu pai é só um homem. O Profeta é mais. Depois de algum tempo, juntando peças e pistas que encontrou em várias conversas, Anduin montou o quebra-cabeças e percebeu que as ações dos refugiados não eram provocadas por uma reverência a um profeta jamais visto. Aquela gente vinha das margens da sociedade. Para eles, a ordem de direito de um governo era algo a ser temido, em vez de buscada como proteção. Por fim, o príncipe parou de fazer perguntar.

E, portanto, o rosto de Anduin era uma visão familiar àqueles que o viram, enquanto o jovem era escoltado através do campo até sua audiência com Velen. Familiar, sim, mas não um deles.

Anduin sentia essa distância, um abismo fruto de seu sangue real, sua força na Luz e seu trauma de infância. Às vezes, ele sentia que gostaria de ser mais... normal. Mas Anduin começava a sentir, ao se lançar contra os desafios e estranhas energias da puberdade, que as diferenças eram necessárias. O príncipe tinha um papel único a cumprir, o papel de liderar e proteger seu povo, e isso não era nem privilégio nem uma fonte de poder pessoal. Era um dever.

Os refugiados eram todos humanos. Sem dúvida, os anões eram orgulhosos demais para abandonar sua terra natal; os elfos noturnos não seriam intimidados nem pela fúria de Asa da Morte; e os gnomos eram... bem, eram gnomos. Por que temer lava e terremotos, quando uma explosão estava sempre a um defeitinho de distância?

Os exilados estavam com medo, com fome e doentes. Febres se espalhavam como chamas, regularmente, e o jovem príncipe usaria seus talentos quando as epidemias varriam o campo.

Dados os esforços dele, era impossível não se aborrecer com os comentários que acabou ouvindo ao passar por um grupo de refugiados sentados em círculo, sem fazer nada além de bater papo.

— Cachorrinho do alienígena — comentou um deles.

— O Profeta recebe um menino, mas se recusa a ver a gente? — Foi a resposta. O resto da conversa se perdeu no que Anduin seguiu adiante. O rapaz passava muito tempo observando pessoas, silenciosamente observando os movimentos das almas em seus rostos. E, em muitos dos olhos dos exilados, Anduin viu a mesma acusação que acabara de ouvir. O papo do campo estava contra ele, e era difícil conter o ressentimento. Eu não fiz nada além de ajudá-los, pensou o príncipe.

Foi então que uma dúvida indesejada surgiu. Mas por que Velen não os recebe?

* * *

As memórias do ar gélido e do norte morto gradualmente abandonaram o passageiro do grifo de transporte, conforme ele voava no ar tépido de Kalimdor. O viajante era mais pesado e mais quieto do os que o animal se acostumara a transportar. Geralmente, os habitantes do solo ficavam maravilhados pelo novo ponto de vista aéreo, ou apavorados com a subida e as manobras tão comuns àqueles que voavam. Mesmo se algum viajante típico falasse pouco em voz alta, os barulhinhos que emitia e a tensão nas pernas diziam muito ao grifo sensível e observador. Em contraste, a serenidade e imobilidade... eram a natureza do passageiro atual.
Alguém que já tinha visto dezenas de mundos e batalhado contra a Legião Ardente num conflito eterno não poderia vislumbrar nada de notável num voo através de Azeroth. O Vindicante Maraad tinha preocupações que sobrepujavam a beleza da vista. O norte estava seguro; as trevas do Lich Rei, derrotadas; e agora chegara a hora de voltar seus esforços contra outro oponente.

Maraad tinha ouvido do retorno do Destruidor, da devastação que Azeroth enfrentava, mas ele era draenei; que importância poderia ter o possível fim de um único mundo? A Legião ainda se esgueirava na Espiral Etérea, e provavelmente continuava seu trabalho de destruir toda vida que encontrasse.

Ao sobrevoar Névoa Lazúli à luz da lua, Maraad ficou chocado ao ver a miríade de luzinhas espelhando, pobremente, as estrelas no céu. Por um breve momento, numa estranha fantasia, o vindicante viu as luzes como se fossem pequenos mundos, antes de se corrigir e olhar para o alto. Os céus eram seu foco. Sempre.

Seria aquele um exército acampando junto à Exodar? Por que ele não fora avisado?

O grifo entrou pelo portal metálico no casco da Exodar, e foi recepcionado pelo mestre de hipogrifos Stephanos. O mestre se curvou de leve.

— Parabéns pela vitória no norte, vindicante. É bom ver-te de volta no lar.

— Lar? Não há lar algum para nós, irmão. Não realmente. Somos os errantes do universo, os exilados de Argus perdido. Não podemos jamais nos esquecer disso. O que são os acampamentos que vi ao chegar? Teria um exército maculado nossa ilha?

— Não, vindicante. São refugiados escapando aos horrores do Cataclismo. Eles têm esperanças de serem salvos pelo Profeta.

— Assim como todos nós, irmão — retrucou Maraad, franzindo o cenho, uma expressão que se assentava estranhamente nas feições dele.

O vindicante não esperou resposta. Avançou com rapidez e decisão, direto até a Sede e então, sem pausa, se dirigiu aos aposentos de Velen. Seus cascos ecoaram no pisco cristalino com cada passo. Ao se deparar com os dois guardas postados à entrada, Maraad procurou qualquer sinal de falta de vigilância e zelo. Nunca mais, pensou ele. Draenor já foi o bastante.

Foi só quando o vindicante alcançou a porta da sala de visitas do Profeta que um dos Escudos rompeu sua mobilidade estatuária. O guarda avançou, bloqueando a passagem. Isso não era inesperado.

— Sou o Vindicante Maraad, anteriormente do comando da Aliança em Nortúndria — entoou Maraad, ritualmente. — Busco uma audiência com o Profeta.

— O Profeta não está recebendo ninguém, Vindicante Maraad. Lamento ter de rejeitar-te após tão longa jornada.

Agora isso era inesperado.

— Ainda é cedo. Tu afirmas que o Profeta se recusa a me ver? Vim desde a distante Nortúndria, e tu nem perguntaste a ele.

— Novamente, minhas desculpas, vindicante — respondeu o Escudo, claramente constrangido.

— Ele não está a receber ninguém no momento.

— Devo então voltar amanhã de manhã?

— Não recomendo, vindicante. O Profeta concedeu audiências exclusivamente ao príncipe humano durante as últimas semanas. Tomarei nota de tua visita e convocar-te-ei quando a ordem for dada.

Maraad fitou o Escudo por vários momentos, com pensamentos inescrutáveis, antes de voltar por onde tinha vindo.

* * *

Anduin permaneceu de pé perante o mentor, em silêncio contemplativo. Era impossível compreender realmente a idade e a sabedoria de Velen e, à moda dos jovens, o príncipe simplesmente o aceitou como uma força intrínseca à natureza, como o sol ou as luas. O Profeta estava de costas para o rapaz, e Velen levitava numa pose meditativa que o garoto tinha visto várias vezes nas semanas anteriores.
— Por que você não avisou o mundo sobre o Cataclismo? — Anduin deixou escapar.

As costas de Velen não se moveram. Não houve nenhum tique, ou recurvar, ou qualquer movimento que traísse os pensamentos de Velen, mas algo pesou consideravelmente no ar, após a pergunta.

— Eu vigio em busca do caminho, esperando que a Luz ilumine nossa trilha para além da Legião e sua missão destrutiva. Apenas eu posso ver o caminho. Apenas eu posso revelá-lo às forças da Luz.

— Parece ser um fardo terrível — comentou Anduin, após refletir sobre o que ouviu.

O Profeta girou lentamente no ar para encarar o príncipe.

— É por isso que eu trilho os caminhos do amanhã. A Legião e os Deuses Antigos abrem rasgos no tecido do futuro e, se eu puder vê-los, se eu puder preparar as raças mortais, então talvez seja possível escapar ao desastre.

— E se você falhar?

A serenidade perene de Velen feneceu por um momento, sendo substituída por um instante fugaz de dor e mágoa em quantidades insuportáveis, que se tornou ainda mais assustador graças à calma que o precedeu e o seguiu.

— Deixa-me mostrar-te uma coisa — sussurrou o ancião draenei. Velen se endireitou e se aproximou do solo. Ainda flutuando alguns centímetros acima do piso metálico da Exodar, o Profeta chegou perto do rapaz e pôs a mão em sua testa.

— Lamento por isto. Mas é necessário — afirmou o Profeta.

A Exodar desapareceu, e havia apenas vastas extensões de trevas pontuadas por luzes e energias místicas. Então, um deslocamento súbito, e Anduin estava num solo estranho, sob um céu desconhecido. Havia quatro luas prominentes competindo pela atenção dele, uma atmosfera ambarina, e formações rochosas, da mesma cor azul do chão, que se retorciam em mil formas diferentes. Anduin não viu água em lugar algum, mas a pedra azulada dava a impressão de ondas beligerantes subitamente congeladas à mercê de algum artista onipotente. Havia criaturas espalhadas pelo terreno e girando no ar, tão variadas e alienígenas que não se podia descrevê-las. Cores e meios de locomoção diferentes e padrões se formavam de dança ou brincadeira ou guerra... quase nada fazia sentido, e Anduin simplesmente ficou tentando capturar o maravilhoso caos abstrato daquilo tudo.

E a Luz! Anduin sentia a presença dela ao seu redor, tão forte quanto qualquer lugar de Azeroth, pulsando e reluzindo pelas criaturas alienígenas.

O céu escureceu. Primeiro para um tom vermelho furioso que invadiu a abóbada amberina como uma premonição de perdição. Após alguns momentos, a cor começou a se transformar num tom cada vez mais nauseante de verde. Cometas fulgurantes berravam dos céus adoecidos e atingiam a terra, lançando as pobres criaturas apavoradas para todos os lados. Os cometas se ergueram das crateras, gigantescos e terríveis, e começaram a semear morte com eficiência implacável. Um rasgo se abriu no ar perto do príncipe, e uma inundação de horrores irrompeu dele: demônios alados e súcubos, brandindo chamas amarelas esverdeadas e magias poderosas, destruindo tudo que havia pela frente. Após o desembarque do exército das trevas, um vulto gigantesco emergiu do rasgo, e se parecia tanto com os draeneis que o príncipe não teve como não perceber.

O recém-chegado demoliu as estruturas rochosas, abrindo um espaço onde ele poderia se ajoelhar no pó resultante da destruição, e traçar símbolos de poder medonho com a garra afiada.

Quando ele terminou, houve um momento de calma perfeita enquanto o massacre se deteve e o mundo inteiro aguardou, numa paralisia aterrorizada.

E, então, uma explosão.

As energias liberadas romperam a superfície, e Anduin se viu gritar e erguer os braços, em pânico, mas a magia o atravessou sem causar dano. A Legião marchou de volta ao portal, voltando ao nexo sombrio onde os demônios habitam, e no rastro deles restou... nada. Nada vivo, pelo menos. Nem mesmo as formações rochosas — e Anduin jamais saberia se elas tinham sido naturais ou esculpidas pelas formas de vida que ele testemunhara — tinham sobrevivido.

Havia apenas cinzas e matéria desfeita. Mesmo o céu estava nublado, não oferecendo mais uma vista limpa das quatro luas.

Então, misericordiosamente, a visão terminou.

Anduin se levantou diante do Profeta novamente e, mesmo lutando contra o impulso que o enfurecia, ele chorou.

— Não há vergonha em se lamentar uma perda tamanha — afirmou Velen, gentilmente.

— Que mundo era esse? Quando isso aconteceu? — Perguntou o príncipe, por entre as lágrimas.

— Eu não sei o nome. Seus habitantes não falavam de formas que nós compreenderíamos, e nenhuma das raças mortais deste mundo jamais passou por lá. Chamo-o de Fanlin'Desor: Céus Ambarinos sobre Pedra Extraordinária. Como eu duvido que a Legião registre suas vítimas, ou mesmo se dê ao luxo de lembrar-se deles, nós provavelmente somos os únicos seres do universo cientes da existência deles.

— Que triste — comentou Anduin.

— De fato. Se a Luz quiser, quando a vitória final for conquistada, eu me sentarei numa torre erigida num dos mundos perdidos, e registrarei a todos, como minha penitência.

— Penitência? Pelo quê? O que você fez além de ajudar, Velen?

— Há muito que eu fracassei em desviar meus irmãos de seus caminhos. E a criação pagou o preço. — Velen encerrou essa parte da discussão com um aceno, retornando ao propósito de ter mostrado a visão a Anduin. — Mas a minha intenção era ilustrar a ti as consequências da derrota. Independente de quão terrível o Cataclismo realmente seja, e de quão poderoso Asa da Morte se prove ser, nossa guerra é uma batalha muito maior. Não defendemos apenas um mundo, mas todos eles.

Anduin sempre percebia que a lição estava encerrada quando o Profeta voltava à postura meditativa e fitava as energias da Sede. No que o príncipe abriu a porta da câmara, um último pronunciamento do Profeta o seguiu.

— E, rapaz, é um fardo terrível.

* * *

O tom despido de emoções daquelas últimas palavras assombrou Anduin pelo resto do dia, e por um bom pedaço da noite. Ele se virava e revirava, lutando contra o sono que geralmente vinha tão facilmente. Quando finalmente sucumbiu, os sonhos eram visões nítidas, testemunhos vívidos.
Chamas demoníacas e mundos partidos se lançavam num vazio negro desprovido de sóis ou luas. Todas as luzes do universo estavam apagadas, como se velas de um santuário tivessem sido sopradas pelo beijo frio do vento. E, porém, mais do que a falta de luz, era o silêncio que perturbava Anduin. Um universo vivo não deveria, não poderia ser tão silencioso.

O primeiro pensamento que lhe ocorreu, ao observar o fim dos dias, foi que ele jamais veria o pai de novo... ou teria outra chance de reconciliar o abismo que agora os separava. Em seguida, desenvolvendo essa ideia com a empatia intrínseca a sua natureza, Anduin considerou que nenhum filho em lugar nenhum do universo seria capaz de dizer ao pai que ele era amado, ou pronunciar as curativas palavras "me desculpe". Além do silêncio e das estrelas baças, aquilo significava a morte das possibilidades, da esperança, e esse era o mais profundo dos horrores.

E, então, algo soou. Inicialmente era apenas uma vibração na noite, porém mesmo aquela pequena perturbação do ar era pura, forte e limpa. Um brilho surgiu, e então vários. A vibração se tornou muitas, todas em tons diferentes, e as visões e sons se aglutinaram numa maré crescente de arco-íris e melodia. Seres de Luz cercaram Anduin, resgatando-o das trevas, e lhe cantando sobre esperança num coro que restaurou o universo.

Em meio a tudo aquilo, o rosto de um dos refugiados surgiu, um homem que o príncipe tinha visto inúmeras vezes, mas cujo nome ele não lembrava. Os seres ao redor de Anduin diziam (cantavam), "Cada vida, um universo".

O rapaz acordou, suando, com o cabelo emaranhado pela intensidade do sonho (Visão, foi uma visão...), e, porém, reconfortado pelo que vira. Anduin adormeceu novamente, sendo recebido por sonhos misericordiosamente ordinários.

* * *

Maraad estava num grande salão circular com runas pulsantes entalhadas nas paredes curvas.
Três draeneis muito idosos (porém de postura ainda ereta) dominavam o centro da câmara, com armaduras graciosas e belas, polidas até reluzir. Eles estavam circundados por vários paladinos e vindicantes, e todos demonstrando sutilmente submissão aos três. Essa obediência era fruto de uma pirâmide de autoridade que não tolerava egos nem no topo nem na base.

Os três anciãos eram o Triunvirato da Mão; Boros, Kuros e Aesom; e os outros indivíduos eram a elite dos draeneis: a Mão de Argus. Maraad já descobrira que o Triunvirato tinha retornado à Exodar, como ele mesmo, num esforço de se reconectar com os irmãos em Azeroth, e assim determinar o curso que o povo draenei deveria seguir, considerando os eventos recentes.

Já havia tempo demais que Maraad não se apresentava ao Triunvirato, que ele não participava do conselho com a liderança dos draeneis. O vindicante se esquecera de quão ordenado e comedido era o debate entre eles, quão reconfortante era a conversa, com suas idas e vindas sensatas, sem os jogos verbais e reações imprevisíveis das outras raças da Aliança. O contraste foi posto em destaque brutal quando a longa discussão sobre o que deveria ser feito aos refugiados e seus males foi discretamente interrompida pelo Vindicante Romnar. Ele era o responsável pelos esforços do reparo da Exodar, a nave transdimensional dos draeneis.

Conforme o debate enveredou num círculo cortês, mas indecisivo sobre o número crescente de estrangeiros na ilha, Romnar anunciou:

— Tudo isso poderá se tornar irrelevante muito em breve. A Exodar está quase restaurada.

Uma declaração tão impactante, tivesse sido ela sido feita no Celesfúria em meio aos líderes da Aliança em Nortúndria, teria causado o impacto do sopro de um dragão, e todos estariam se digladiando verbalmente ao mesmo tempo. Ao contrário, aqui a notícia foi recebida com sorrisos de satisfação, e um dos presentes pousou a mão no ombro de Romnar. Muito bem, dizia o humor do aposento.

— "Quase" significa quando? — Inquiriu Maraad.

— Uma semana. Já consertamos todos os sistemas-chave. Agora estamos apenas finalizando os acertos e reforçando as áreas de fraqueza aparente.

— Nós poderíamos acordar nossa nave dentro de uma semana? E o que o Profeta tem a dizer disso? — Perguntou Maraad.

Um silêncio constrangido se estabeleceu.

— Ele ainda não sabe? — Exclamou Maraad, incrédulo.

— Ele se recusa a ver qualquer um de nós — explicou Aesom. — Deixamos uma mensagem com os Escudos, mas não recebemos resposta.

— Eu sou o único a estar perturbado por isso? — Questionou Maraad, desejando não ter dito tais palavras assim que elas deixaram seus lábios. Passei muito tempo longe da Exodar, pensou ele. É claro que eles estão todos perturbados. O silêncio não sinalizava aprovação, mas preocupação.

O que se pode fazer quando parece que até o Profeta se desviou da senda?

Antes que alguém mais pudesse participar do debate, um draenei cujo nome Maraad desconhecia interrompeu a conferência.

— Os refugiados estão em nossos portões. Exigem ver o Profeta.

Assim como todos nós, Maraad pensou, com humor azedo.

* * *

Por que você não avisou o mundo sobre o Cataclismo? A pergunta simples e lógica de uma criança mortal ecoava acusadora pela câmara silente, distraindo o Profeta de sua contemplação da Luz. Velen tinha desconversado em vez de responder, obscurecido ao invés de iluminar.
Estava surpreso consigo mesmo. Eu ainda sou capaz de falsidade? Mesmo depois de tanto tempo? Tanto interna quanto externamente?

Por que um profeta não avisaria de uma calamidade?

Ele tinha visto. A sombra noturna encouraçada se estendendo sobre Azeroth, escurecendo o mundo com fogo e dor. Ele também vira o fim de Azeroth em uma dúzia de apocalipses, vislumbrara mil vitórias e fracassos menores pelos futuros serpenteantes. E a Luz — a estrela guia, a bússola, o senso de direção que o ajudava a navegar pelos mares incertos das visões — não tinha apontado diretamente ao Cataclismo, tinha deixado o retorno destrutivo do Asa da Morte como apenas mais uma dentre muitas possibilidades. De que servia um profeta que não percebia diferença entre visão verdadeira e visão falsa?

Velen fez o possível para afastar a pergunta do menino de sua mente e voltar os pensamentos à recuperação da capacidade de pescar a verdade em meio às visões sem fim... antes que enlouquecesse ou simplesmente fosse tarde demais. Quando o Escudo que servia de sentinela aos aposentos do Profeta implorou mais uma vez por uma audiência para o Triunvirato, Velen não respondeu.

Ele vira a Exodar reparada e rumando à Espiral Etérea, sendo engolida pelas trevas e jamais retornando.

Ele vira a Exodar aparentemente reparada e explodindo no lançamento, matando quase todos os draeneis e devastando Névoa Lazúli.

Ele vira a Exodar aterrissando em Terralém, e os draeneis curando esse refúgio mais antigo no longo exílio.

Ele vira os draeneis reparar a nave dimensional, e então deixá-la atracada em Azeroth. Às vezes isso levava à sombra, às vezes não.

Velen não se fiaria em palpites, mesmo que racionais. Sem a Luz para lhe indicar o caminho, ele se sentia paralisado. Deixe que o Triunvirato decida, pensou ele.

Quando todas as distrações externas se foram, Velen se voltou para dentro, buscando desesperadamente o caminho.

* * *

Maraad ficou ali, parado, se esforçando ao máximo em esconder o desprezo. Até então, a maioria dos contatos que ele teve com humanos se dera com os ocasionalmente impetuosos, mas sempre corajosos heróis da Aliança em Nortúndria. Era difícil crer que aquelas criaturas esfarrapadas — alguns deles sem alguns dentes, e todos desprovidos da cortesia e do intelecto próprios de um ser pensante — fossem da mesma raça que aqueles humanos que tinham marchado ao seu lado.
— A gente queremo vê o Profeta — gorgolejou um deles, com um rosto disforme, em língua Comum quase irreconhecível. — Ele vai dá jeito em tudos.

— Este é o seu porta-voz eleito? — Indagou Maraad, sem conseguir evitar. O nada sutil insulto passou sem ser ouvido ou comentado.

— O Profeta não está recebendo ninguém, amigo. Também buscamos a sabedoria dele nestes tempos sombrios. Ele falará quando decidir que chegou a hora — explicou um pacificador da Exodar.

— Mentira. Ele tá falano com o príncipe de Ventobravo!

— Príncipe Anduin está estudando os caminhos da Luz sob a tutela do Profeta. Tu deverias te sentir honrado, humilde, até, pelo fato do Eterno estar ensinando um do teu povo. Quem saber que grande benefício à tua raça poderá advir disto?

— Seu metido! Quem é você pra dizer pra gente ficá humilde, hein? Quem que é você? Pra mim, tu é um demônio de casco, é sim!

Não havia nenhum insulto mais grave aos draeneis que lembrá-los de sua conexão aos eredares da Legião. O pacificador estreitou os olhos, ameaçador, e moveu a mão até a espada cristalina em seu cinto. Diante do gesto, Maraad também buscou o cabo de seu grande martelo, e vários outros draeneis se endireitaram e se inclinaram contra a "delegação" improvisada. Maraad viu que os humanos recuaram instintivamente. Mesmo que, como grupo, eles fossem burros o bastante para querer lutar, o animal dentro de cada um pensou melhor.

O pacificador relaxou visivelmente e tirou a mão da arma, reconhecendo o medo dos refugiados.

— Sei que vós estais longe de casa, que sentis fome e que o futuro vos é incerto. Em tal apuro, vós sois sábios em procurar a voz de nosso Profeta. Creia em mim, amigo, quando te digo que nada me deixaria mais feliz que ver o Eterno ouvindo tuas agruras. Porém, compreenda isto: os caminhos dele são infinitos. Ele virá a ti, ou não, como ele desejar, e ele não será compelido.

Aconselho que vós retorneis a vossos lares no campo.

— Que lares? Aquilo não é lar nenhum — foi a resposta emburrada. O grupo se desfez, resmungando, com rostos sombrios. Os humanos quase tinham entrado em conflito físico com seus anfitriões, e todos sabiam disso.

— Que direito têm eles de falar em exílio conosco? — O pacificador murmurou, espantado.

— Que direito, de fato? — Concordou Maraad.

* * *

Cercado pela Mão de Argus e seus líderes, Maraad expôs sua opinião com sinceridade.
— O Profeta não vai compartilhar de sua sabedoria conosco. A decisão é nossa. Levemos então a guerra à Legião! Ou, caso não seja possível, voltemos à nossa pobre e torturada Terralém, para completar o trabalho de restaurá-la. Nosso segundo lar precisa de nossa presença, assim como os Perdidos que ainda vagueiam pela devastação.

Maraad ouviu apenas o silêncio do Triunvirato, mas sentia a concordância deles em movimentos muito sutis de rosto e corpo, que evidenciavam os pensamentos dos líderes. Havia um sentimento de inquietude, porém, e o vindicante conhecia sua origem... porque ele sentia o mesmo. O Profeta deveria falar, deveria abençoar nossa determinação.

— Em uma semana nós testaremos os pistões de dobra da Exodar. E, se o Profeta não tiver se proferido até então, nós abandonaremos Azeroth!

* * *

— Como vão tuas lições, Anduin? Tua compreensão está a progredir?
Por meses, o príncipe se sentiu grato pela atenção que lhe era dispensada, empolgado pela chance de aprender com o indivíduo mais próximo à Luz de toda Azeroth. Mas, agora, com as perguntas suaves e sem pressa de Velen ecoando na mente, o ressentimento se inflamou.

— Você sabe o que está acontecendo lá fora? — Perguntou Anduin.

— Sempre há alguma coisa acontecendo lá fora, — retrucou a voz suave. Isso foi dito com delicadeza, mas havia um tom sutil e afiado, mesmo assim. — Minha preocupação é o caminho.

— E o que é o caminho? Uma guerra distante em algum mundo desconhecido? Você é necessário aqui. Necessário agora. Foi por isso que você nunca nos alertou do Cataclismo? Por que não era digno de sua atenção? Somos todos insetos, para você? Ou pior, peças de xadrez?

Havia eras desde que alguém ousara retrucar contra o Profeta. Ele se virou para encarar o príncipe. Velen estava surpreso, como geralmente acontecia quando ele lidava com humanos, pela velocidade com a qual o rapaz parecia se tornar um homem, pelo adulto presente nas palavras que lhe tinham sido lançadas. E, assim que o draenei pousou os olhos em Anduin, o mundo mudou.

Em lugar do príncipe, havia um guerreiro encouraçado diante dele, com elmo e armadura de placas reluzindo com a própria essência da Luz. O guerreiro brandia uma espada forjada do mesmo material da armadura, erguendo-a aos céus, posicionado num rochedo em destaque. Se aquele mundo era Azeroth ou outro, Velen não podia saber com certeza. E, subitamente, o céu sombrio acima irrompeu com a bravura combinada dos povos de Azeroth. Elfos sangrentos, orcs, trolls, taurens, até mesmo os amaldiçoados renegados e goblins matreiros cavalgavam montarias voadoras de todos os tipos e descrições. Vestiam armaduras e portavam armas mágicas que fulguravam com tanto poder, que os olhos de Velen doeram ao fitá-las. Ao lado das hostes da Horda, os antigos elfos noturnos investiam acompanhados dos humanos, anões e gnomos, cujos ancestrais formaram a Aliança original, além dos worgens, transmorfos que se uniram a eles. Os próprios draeneis de Velen estavam incorporados ao exército, com fileiras adornadas em metais alienígenas e carregando maças e espadas cristalinas.

A Aliança e a Horda não estavam sozinhas.

Dragões mergulhavam e arremetiam em formações que faziam o céu parecer uma gigante asa reptiliana multicolorida. Eles encobriam o horizonte com seu imenso tamanho e incontáveis números e, quando rugiram um desafio, não foi apenas o solo onde Velen pisava que tremeu, mas o universo inteiro.

Porém, apesar disso tudo, o maior choque para os sentidos de Velen ocorreu quando ele vislumbrou aqueles que voavam logo além do exército de dragões. Os naarus tinham entrado em campo, tantos deles que Velen não conseguia entender como a criação poderia contê-los. O poder desses seres de Luz preencheu o coração de Velen com esperança, apagando os séculos solitários, deixando o Profeta se questionando como ele poderia se desesperar com a possibilidade das trevas, não importando quão terríveis elas fossem, realmente reinarem.

E então a sombra recaiu.

Era vasta e vazia e engoliu toda luz que nela entrava. Velen sabia que ela tudo consumiria até que, então, passaria a devorar a si mesma, eternamente roendo o nada na Grande Treva Além, removendo todo significado do universo, desde a mais emocionante sonata até o mais maravilhoso ocaso. Era terrível de se ver, de se compreender e, entretanto, o exército avançava diretamente contra ela. E a luz começou a se esvair...

Diante do Profeta havia apenas um rapaz humano, de olhos arregalados e exaltado, dizendo algo que Velen não conseguia entender.

O Profeta deu as costas a Anduin, com a mente desesperada pela Luz, tentando alcançar a trama da visão que acabara de ter, na esperança de encontrar o caminho em meio às possibilidades fraturadas. Velen se lembrou das semanas que antecederam o Cataclismo. Ele não percebeu quando o príncipe deixou seus aposentos.

* * *

A semana seguinte foi tensa para os refugiados. Os draeneis estavam ocupados com seus próprios assuntos, preparando os testes da amada espaçonave, e se preocupando com o silêncio do Profeta. Os exilados notaram o aumento na atividade e podiam sentir algo no ar. Sua ignorância dos motivos apenas alimentou seus pensamentos mais sombrios e a criação de rumores. Havia algumas vozes que lembravam os outros da bondade com a qual os draeneis os trataram, mas é da natureza dos mortais suspeitar e temer tudo que não fosse compreendido, e os cacos e pele azul dos anfitriões, no fim, contavam muito mais que os suprimentos e cura que tinham sido dispensados. Muito raros eram os refugiados que, mesmo na escuridão silenciosa, enquanto se deitavam em segurança sob a proteção da Ilha Névoa Lazúli, se perguntavam como os draenei teriam sido tratados se tivesse fugido para outras costas da Aliança, buscando ajuda.
Portanto, quando a enorme estrutura conhecida com Exodar começou a zumbir e vibrar, quando o próprio ar ao redor dos refugiados se eletrizou, os instintos dos humanos lhes disse o que sua inteligência não alcançaria: A nave estava funcionando.

Os draeneis estão partindo! foi o pensamento de um número suficientemente grande de refugiados para que o pânico infectasse todo o campo. Eles estão levando o Profeta com eles!

Aquele que não era visto se tornara um salvador aos refugiados, o Profeta, um talismã contra os horrores do Cataclismo. Como a maioria das turbas, esta não tinha um líder, e não houve um momento identificável em que o medo e a preocupação efervesceram em ação. Mesmo assim, o campo inteiro investiu desesperadamente contra a Exodar.

* * *

Como responder ao chamado dos séculos, ao desafio de ver cada dia como uma nova alvorada, e não apenas uma repetição de banalidades que só poderiam acabar em mágoa? O fardo mais difícil para o ser que outrora fora apenas Velen, e que agora era o Profeta; uma força, um mito, uma abstração; era a solidão da compreensão superior. Ele não poderia desver o visto. E sabia bem que esse cansaço, essa falta de convicção diária, era a arma mais poderosa que seus ex-irmãos poderiam empregar contra ele.
Tu já te cansaste da morte que tu trazes aos mundos? Velen perguntou pensando no amigo perdido, Kil'jaeden. Em algum momento tu duvidas, na treva de tua alma, das escolhas que fizeste?

Porém, eram velhas preocupações, meditações antigas.

Num futuro possível, ele vira um novo Lich Rei se erguer do Trono de Gelo, ainda mais terrível que Arthas ou Ner'zhul, e varrer o mundo com milhares de guerreiros esqueletos no seu rastro.

Quando a Legião retornou, se deparou com uma terra já morta, e os demônios brincaram e riram dos cadáveres draeneis revividos de forma profana... tudo para ofender Velen, após a perseguição por todo o universo.

Ele vira o Guardião da Terra, enlouquecido, o Destruidor, queimar o mundo e então começar a contemplar as mortes dos próprios filhos, a Revoada Negra, para saciar sua fome psicopata pela destruição de coisas.

Por favor, ele implorou à Luz. Mostra-me o caminho.

* * *

A turba tinha perdido toda inteligência por conta dos números, toda razão afogada na paixão das multidões. Os draeneis tentaram negociar, sem resultado. Quando o alarme soou e os paladinos, vindicantes, sacerdotes e magos assumiram posições contra a massa, aconteceu o tragicamente previsível. Os defensores se depararam com uma escolha impossível: lutar apenas para subjugar e repelir, arriscando morrer nas mãos de um inimigo mais fraco; ou massacrar aliados que eles não desejavam matar. A guerra é algo no qual se entra completamente, não há meio-termo; e os draeneis foram lembrados disso quando o vindicante Romnar tombou perante o tropel ao visitar os portões, para investigar quais tinham sido as perturbações causadas pelos seus testes. O vindicante foi ferido gravemente pela turba antes que os outros draeneis conseguissem puxá-lo de volta para uma área segura.
A visão de Romnar caindo fez Maraad reviver memórias das batalhas contra os mortos, e seu martelo cristalino não mais apenas aparava, mas começou a ser golpeado com força esmagadora. Uma vez que ele se libertou das amarras da misericórdia, o resto dos draeneis o seguiu, e o início de uma chacina foi escrito no sangue dos refugiados.

* * *

— Profeta! Você precisa vir! Você precisa! — Gritou Anduin para Velen, que meditava de costas para o menino. O pânico na voz do menino penetrou as visões, e Velen forçou sua atenção a voltar ao presente, virando-se para encarar o tutelado.
— O que houve? — Indagou Velen em seu tom além da idade.

— Os refugiados estão invadindo a Exodar. Seu povo os está atacando! Atacando inocentes!

Velen sentiu, então. O caminho. Havia uma bifurcação e duas trilhas, e o Profeta via o menino o levando por uma delas. No fim da outra, as trevas. Um fardo tamanho, que tanto pudesse depender de escolhas tão pequenas. Era isso então, o significado da visão anterior? O marco que guiaria Velen para fora da vastidão, de volta à estrada da Luz, estava com o menino?

— O que a sua guerra importa àqueles lutando lá fora? — berrou o garoto. E, então, lembrando-se do sonho, Anduin acrescentou: — Toda vida é um universo!

Teria eu me perdido tanto? Velen perguntou a si mesmo. Que agora preciso ser ensinado por uma criança mortal?

E então veio a resposta, das profundezas da alma: As lições da Luz são uma dádiva, não importando sua origem.

— Estou indo — anunciou Velen.

* * *

Os adversários estavam engajados numa peleja desesperada que abafava qualquer outra preocupação. Os refugiados sabiam ter cometido um erro terrível, e era tarde demais para desfazê-lo. Eles lutavam pelo instinto de sobrevivência, para retificar o engano. Para os draeneis, a própria compreensão do que faziam, o horror de estar matando quem não apenas era aliado, mas também mais fraco, imprimia aos defensores uma fúria trágica do ódio de si mesmo.
Interromper a chacina não seria tarefa para um ser comum.

Velen não era um ser comum.

O mundo irrompeu em Luz, cegando tanto turba quanto defensor, um fulgor solar, rúnico e geométrico, que iluminou a silhueta suspensa em seu centro, ao invés de ocultá-la. O cristal do Profeta resplandecia ao lado dele, e a voz era um rugido, forçando alguns dos combatentes a cair de joelhos.

— Chega!

Os draeneis pararam, a maioria aliviada, vários deles largando as armas no chão, horrorizados.

Os refugiados se paralisaram ante a visão do mítico Profeta diante deles em carne e osso.

Velen desceu até pairar entre eles, meros centímetros acima do solo encharcado de sangue de Névoa Lazúli.

— É assim que tratamos nossos irmãos? — Inquiriu Velen ao seu povo, entristecido. Muitos dos draeneis choraram de vergonha ao ouvir sua decepção. Maraad não se comoveu. — E vós, que recebestes nossa ajuda e nossa hospitalidade, atacais vossos amigos sem provocação? — Como poderia qualquer um dos combatentes negar as acusações espelhadas naqueles olhos eternos?

O Profeta se deixou baixar até o chão enlameado, pisoteado e ensanguentado, tocando-o com os cascos.

Ouviu-se uma exclamação coletiva de espanto dos outros draeneis no que o lodo manchou as barras dos mantos do Profeta. Velen caminhou até um dos tombados, ajoelhou-se na imundice, e estendeu a mão para segurar o corpo partido. Velen mergulhou dedos brilhantes no peito esmagado, entristecendo-se momentaneamente ao ver a marca familiar do martelo cristalino, e canalizou a Luz para limpar o ferimento. O humano abriu os olhos, curado de um ferimento potencialmente mortal.

Anduin tinha razão. Que esperança restava ao universo se Velen fracassasse em guardar todas as vidas o melhor que lhe fosse possível? Poderiam os draeneis vencer a guerra, pagando como preço tudo mais que importava?

Velen se levantou, seus mantos sujos dizendo muito. Ele se dirigiu aos irmãos, aos filhos.

— Nós caminharemos ao lado dos mortais de Azeroth, nossos aliados de juramento, e serviremos e auxiliaremos sua luta para curar o mundo do Cataclismo.

Foi Maraad quem retrucou. Apenas ele ousaria.

— A Exodar está finalmente reparada, Profeta. Devemos levar a guerra à Legião. Ou, talvez, voltar a Terralém e curar nosso lar no exílo.

— A consciência de cada um deve ser seu guia — respondeu o Profeta. — Mas, em verdade vos digo: nossa guerra está em toda parte. Em cada gesto e respiração. Temos de preparar o povo deste mundo para que lutem juntos. Temos de servir-lhes de exemplo na união contra o mal. Ao servi-los, nos os despertaremos para a formação da aliança final contra as trevas. Vamos nos misturar aos povos, salvá-los das mágoas do Cataclismo, e fortalecê-los contra o futuro.

Os outros draeneis foram profundamente afetados pelas palavras do Profeta, e foram até os refugiados feridos. Anduin empregou seus próprios talentos nascentes ao esforço, e mesmo enquanto Velen curava e reconfortava, não poderia deixar de observar o príncipe, impressionado pelo homem em quem ele já estava se tornando.

* * *

A Exodar não era apenas uma máquina para os draeneis, mas um ser vivo, uma irmã num sentido que as outras raças jamais compreenderiam. E sua dor tinha sido aliviada, sua essência, curada.
O Profeta se regozijou com todo o seu povo, perante tal triunfo.

Os refugiados se reuniram num conselho, organizados em anéis concêntricos pelas colinas próximas ao Vale Ammen, e por fim decidiram que seu lugar era com seu próprio povo. Tomados pelas emoções enlevantes da dramática aparição de Velen, muitos dos humanos buscaram o sacerdócio, e quase todos dedicaram seus esforços à poderosa Ventobravo, na reforma dos danos causados por Asa da Morte. Cada um dos refugiados, quando questionado sobre sua experiência dentre os draeneis, afirmaria pelo resto da vida que eles estavam certos o tempo todo... Que o Profeta tinha dado a eles a resposta ao Cataclismo.

Serviço.

Porém, as pessoas mais afetadas pelo trágico ataque dos refugiados foram o próprio Eterno e o rapaz que um dia seria rei. Quando Anduin se reuniu novamente ao mentor, se deparou com o Profeta de frente para ele, com os cascos fendidos no chão.

— Agradeço-te por me acordar ao caminho. Tu me indagaste por que eu não avisei do Cataclismo. Fracassei em reconhecer a ameaça que o evento representava por que me concentrei demais no interior... e, de algumas formas, demais no exterior. Eu perdera a visão dos indivíduos neste mundo presente, de suas necessidades... e foi por isso que o farol da Luz se perdeu de mim. Se eu estiver desconectado dos seres viventes de agora, como poderei então navegar por entre todas as conexões de seus futuros?

"Tu serás um poderoso sacerdote um dia, príncipe Anduin. E um sábio rei."

Anduin desejou apenas que o pai pudesse ouvir tais palavras.

FIM



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