quinta-feira, 8 de setembro de 2016

A Guerra das Areias Cambiantes



O indômito sol de meio-dia pousou seus olhos sobre as dunas de Silithus e observou em silêncio o exército que se formava diante da Muralha do Escaravelho.

O orbe seguiu seu trajeto, mas, para a multidão que se reunia abaixo, era como se ele tivesse estacionado nos céus para lançar-lhes raios de fogo até matá-los de calor.


Em meio aos soldados irrequietos, havia uma elfa noturna absorta em pensamentos. Nos olhos de seus iguais, ela era admirada – até mesmo reverenciada. Já os outros, representantes de todas as raças do mundo conhecido, viam-na cada qual com os próprios preconceitos. Afinal, as querelas entre elfos noturnos e outras raças, tais como trolls e taurens, datavam de séculos.

Mas, independente das afiliações, todos que haviam vindo lutar naquele dia compartilhavam um sentimento perante a elfa: respeito. Shiromar era como o sol: impassível, irredutível e indômita.

Tais qualidades haviam-na servido bem nos últimos meses, provendo-lhe forças para prosseguir quando tudo parecia perdido, quando a missão lhe parecia interminável, enquanto os companheiros desistiam.

Ela conquistou o vigia e as Cavernas do Tempo; conquistou o dragão de bronze, o Prolemestre e as colmeias infestadas de insetos e, então, os estilhaços e seus guardiões, os dragões ancestrais, nenhum dos quais seria derrotado facilmente. Para cumprir a tarefa, ela empregou toda sua coerção, engenhosidade e, algumas vezes, violência pura e simplesmente.

E tudo isto por um artefato. O artefato que repousava em suas mãos naquele exato momento: o Cetro das Areias Cambiantes, finalmente reunido após mil anos.

No fim, todos os caminhos a levaram a Silithus, aos portões da Muralha do Escaravelho, onde o cetro havia sido estilhaçado.

Shiromar olhou para os céus e se lembrou dos tempos em que os dragões eclipsavam o sol; tempos em que ondas intermináveis de Qirajis e silitídeos rebentavam contra legiões de elfos noturnos; em que a esperança era apenas um vulto disforme. Era de se pensar que ninguém sobreviveria àqueles meses terríveis. No entanto, ali estava ela, diante da barreira sagrada que salvara suas vidas há tantos anos, durante a Guerra das Areias Cambiantes...

Fandral Guenelmo liderou o ataque com seu filho Valstann ao lado. Eles avançaram pelo desfiladeiro, de modo a proteger seus flancos das ondas infindas de silitídeos. Shiromar estava perto da linha de frente, lançando feitiços o mais rápido que suas energias lhe permitiam.







Os elfos abriram caminho até a boca do desfiladeiro a ferro e fogo. Na companhia de Fandral e Valstann estavam as sentinelas, as sacerdotisas e os guardiões mais poderosos, além de druidas infatigáveis no lançamento de feitiços e curas. Contudo, a cada onda de silitídeos derrubada, centenas se erguiam para tomar o seu lugar. Assim se passaram dias, até a chegada da notícia da incursão silitídea, quando Fandral soou o chamado às armas.

A sacerdotisa Shiromar e suas companheiras já haviam recuperado energia suficiente para clamar pelas graças de Eluna todas ao mesmo tempo. Então, diante do exército noctiélfico, uma coluna ofuscante de luz obliterou o enxame que bloqueava o fim do desfiladeiro.

Um zumbido baixo se ergueu no ar. Uma por uma, criaturas insectoides – Qirajis alados – sobrevoaram o desfiladeiro, logo em seguida atacando os druidas nas posições de apoio.

Fandral passou, com as linhas de frente, por cima dos cadáveres dos silitídeos para sair do desfiladeiro. Os Qirajis mergulhavam com suas garras laminadas em riste, produzindo um zumbido que cortava o ar. O líder noctiélfico forçou o avanço das tropas para permitir que a retaguarda se dispersasse.

Em um penhasco à distância, Shiromar avistou um enxame de Qirajis terrestres irrompendo do abismo, tal qual formigas de um formigueiro. Um monstro colossal assomava ao longe, brandindo pinças afiadas, engolindo todos em sua sombra e bradando ordens aos soldados insectoides.

Em meio ao zumbido do enxame, havia um som que parecia se repetir na presença do guerreiro comandante: Rajaxx, Rajaxx... Embora a elfa noturna não compreendesse a língua dos Qirajis, ela imaginou que fosse o nome da criatura.

Com o aproximar da onda seguinte de Qirajis, ouviu-se o troar de um berrante: do leste e do oeste, uma multidão de elfos noturnos investiu contra o inimigo. Fandral e Valstann bradaram seu grito de guerra e se lançaram contra o âmago do enxame. Os dois lados colidiram, amalgamando-se numa massa indistinta, enquanto os reforços noctiélficos atacavam ambos os flancos.

Shiromar estava certa de que desta vez os elfos venceriam, mas as sombras se alongavam, o dia se tornava noite e a batalha não chegava ao fim. No centro da refrega, Fandral e Valstann embatiam-se contra o general Qiraji em desesperada peleja.

Shiromar desviou-se de uma série de ataques dos Qirajis alados e lançou um olhar em direção ao embate principal. Os números dos Qirajis estavam minguando e seu general parecia ter percebido isso, pois, com um salto incrível, ele recuou de volta ao penhasco de onde a elfa o havia visto surgir. Ele despareceu no abismo e os poucos insetos restantes logo foram erradicados.

Aquela noite, vigias velaram o sono das forças noctiélficas. Fandral sabia que os Qirajis ainda não haviam sido derrotados e imaginava que a batalha fosse recomeçar logo pela manhã.

Shiromar dormiu um sono entrecortado, o clangor da batalha ainda soando em seus ouvidos, embora o silêncio reinasse no deserto.

Com o alvorecer, as tropas seguiram para o penhasco, onde foram recebidas por uma inóspita placidez. Shiromar perscrutou o horizonte, mas não avistou Qiraji ou silitídeo algum. Fandral preparava o avanço das tropas quando chegou um mensageiro trazendo notícias fúnebres: a Vila do Vento Sul estava sendo atacada.

Fandral refletiu se deveria recuar e defender a vila, mas chegou à conclusão de que isso deixaria o caminho livre para uma invasão dos Qirajis restantes. Os elfos não faziam ideia de quais eram os números dos insetos, ou mesmo se eles não teriam uma arma secreta.

Valstann adivinhou os pensamentos de seu pai e se ofereceu para liderar um destacamento até a vila, de modo que Fandral pudesse ficar e reter as forças inimigas.

Shiromar, que estava por perto, ouviu o desenrolar da conversa: – Pode ser uma armadilha – disse Fandral.

– Confie em mim, pai. Eu defenderei a vila e regressarei vitorioso, elevando a honra dos Guenelmo – respondeu Valstann.

– Volte com vida e eu estarei mais do que satisfeito – assentiu o pai, relutante.

Valstann reuniu um destacamento e partiu sob o olhar do pai. A divisão das forças preocupava Shiromar, mas ela compreendia a situação e sabia que aquilo era necessário.

Nos dias seguintes, Shiromar e seus companheiros enfrentaram onda após onda de silitídeos vindos das colmeias espalhadas pelo deserto. Não se via Qiraji algum. A elfa foi lentamente tomada por um sentimento de pavor. Ela via a longa ausência dos mestres dos silitídeos como um mau presságio. Ela se preocupava com Valstann e, várias vezes durante o dia, nos breves intervalos da carnificina, vislumbrou Fandral fitando o horizonte, aguardando ansiosamente o retorno do filho.

No terceiro dia, quando o sol atingiu o zênite, os Qirajis reapareceram e trouxeram reforços. Uma vez mais o zumbido das asas pesou no ar; uma vez mais, multidões inumeráveis de insetos desenharam a linha do horizonte. Eles cobriram Fandral e seu exército como a sombra de uma nuvem gigante que obscurece o sol... e se detiveram...

E aguardaram.



Fandral pôs os soldados em formação e se colocou diante das fileiras. Os Corvos da Tormenta sobrevoavam as linhas de frente e os druidas já transformados em ursos fincavam suas garras na areia, ávidos e atentos. O mar de insetos se abriu para dar passagem ao imenso general Qiraji, que carregava em uma das pinças um elfo ferido. Ele se pôs diante de seu exército e soergueu Valstann Guenelmo para que todos o vissem.

Um lamento se ergueu dos soldados noctiélficos. Shiromar sentiu o peito arder. Fandral ficou em silêncio, consciente de que Vento Sul havia tombado e temendo que seu filho já estivesse morto.

Ele se amaldiçoou por permitir o plano do garoto e permaneceu imóvel, tomado por um misto de medo, raiva e desespero.

Valstann se moveu convulsivamente e disse algo ao general, mas ele estava longe demais para ser ouvido.

Subitamente, o feitiço que caíra sobre Fandral se dissipou e ele se lançou contra o inimigo, seguido de seus homens, mas a distância era enorme... e mesmo antes do general Qiraji agir, Shiromar sabia que não seria possível alcançar Valstann a tempo.

O general Qiraji ergueu o corpo ensanguentado de Valstann com as duas garras. Ele as fechou e, então, puxou-as uma para cada lado, partindo o elfo no meio.

Fandral hesitou e caiu de joelhos em meio à turba que corria em direção ao inimigo. No instante em que os dois lados colidiram, uma tempestade de areia vinda do leste cobriu todos, sufocando-os, lançando-os em completa escuridão. A força do vento impedia Shiromar de se mover. Ela protegeu os olhos como pôde. O vento uivante penetrava seus ouvidos, abafando o clangor da batalha e os gritos de suas companheiras moribundas.

Em meio ao caos, ela vislumbrou a sombra sinistra, gigantesca do general Qiraji, não muito longe, despedaçando e dilacerando elfos noturnos como um fazendeiro ceifa o trigo. Então ela ouviu Fandral, uma voz fantasmagórica na tempestade, ordenar aos exércitos que recuassem.

Tudo o que se sucedeu pareceu muito rápido, mas na verdade foram dois dias: Fandral levou as forças noctiélficas, através das montanhas, para a Cratera Un’Goro, com as legiões de silitídeos e Qirajis em seu encalço, devorando aqueles que não conseguiam acompanhar a marcha.

Quando em Un’Goro, algo estranho aconteceu: espalharam-se boatos de que os Qirajis haviam recuado assim que os elfos adentraram a cratera. O Arquidruida reuniu as tropas restantes no centro da concavidade e ordenou que ficassem a postos. Finalmente, eles teriam um momento de descanso depois de tanta luta, suor e sangue. Contudo, os elfos noturnos haviam sofrido uma derrota amarga e Fandral Guenelmo jamais seria o mesmo.

Shiromar observou Fandral enquanto ele montava guarda no Pico Penacho de Fogo. O vapor das ventanas vulcânicas erguia-se às suas costas e a luz alaranjada da lava iluminava-lhe a face, uma máscara ocultando uma tristeza profunda, uma angústia vivida apenas pelos pais que viram a morte dos próprios filhos.

A retirada súbita dos Qirajis a inquietava. Quanto mais pensava no assunto, mais se lembrava das lendas entorno da Cratera. Rumores de que ela havia sido moldada pelos deuses nos primórdios dos tempos. Talvez eles velassem por aquelas terras. Talvez sua bênção ainda protegesse o lugar. Uma coisa era certa: era preciso articular um plano para deter o avanço dos insetos ou então...

Kalimdor estaria perdida para todo o sempre.

A Guerra das Areias Cambiantes continuou durante longos e agonizantes meses. Nas duras batalhas que se seguiram, os elfos estavam sempre na defensiva, sempre em desvantagem, sempre recuando, mas ainda assim Shiromar sobreviveu.

Desesperado, Fandral buscou o auxílio da revoada dragônica bronze. Embora houvessem se recusado inicialmente, essa atitude mudou quando as Cavernas do Tempo, lar e província de Nozdormu, o Atemporal, foi atacada pelos Qirajis.

O herdeiro de Nozdormu, Anacronos, concordou em alistar os dragões de bronze na batalha contra os Qirajis. Todos os elfos noturnos em condições de batalhar se uniram à causa e, juntos, eles forjaram uma campanha para retomar Silithus.

Nem mesmo o poder dos dragões foi um contrapeso suficiente para balancear a vastidão numérica dos silitídeos e Qirajis. Foi então que Anacronos convocou a progênie das outras revoadas: Merithra, a verde, filha de Ysera; Celestrasz, o vermelho, filho de Alexstrasza; e Arygos, o azul, filho de Malygos.

Os dragões e os Qirajis alados se confrontaram no céu azul de Silithus, enquanto as forças noctiélficas de toda Kalimdor cobriam as dunas. Ainda assim, os silitídeos e Qirajis pareciam não acabar nunca.

Mais tarde, Shiromar ouviu boatos de que os dragões haviam visto algo perturbador enquanto sobrevoavam a cidade ancestral de onde os Qirajis haviam emergido. Algo que apontava para uma presença ainda mais antiga e aterrorizante por trás da matança perpetrada pelos insetos.

Talvez tenha sido a revelação que levou os dragões e Fandral a incubar seu desesperado plano final: erigir uma barreira circundando a cidade para aprisionar os Qirajis até que um estratagema melhor fosse arquitetado.

Com a ajuda das quatro revoadas dragônicas, os elfos iniciaram o ataque final à cidade. Shiromar marchou logo atrás de Fandral sobre os cadáveres dos Qirajis alados que caiam dos céus. Lá no alto, os dragões estavam destruindo os soldados insectoides. Juntos, elfos noturnos e dragões formaram uma muralha e empurraram os Qirajis de volta à cidade de Ahn’Qiraj.

Mas ao se aproximar dos portões, a situação mudou: tudo o que a muralha podia fazer era se manter em posição. Avançar seria impossível. Merithra, Celestrasz e Arygos decidiram adentrar a cidade e deter os Qirajis tempo o bastante para que Anacronos, Fandral e os druidas e sacerdotisas restantes pudessem criar a barreira mágica.

Então, os três dragões e seus súditos mergulharam cidade adentro contra as legiões de Qirajis, com a esperança de que não se sacrificariam em vão.

Diante dos portões, Fandral ordenou aos druidas que concentrassem suas energias enquanto Anacronos conjurava a barreira encantada. Na cidade, a progênies das três revoadas sucumbia perante os números avassaladores dos Qirajis.

Shiromar usou suas energias para clamar a bênção de Eluna enquanto rochas e raízes se erguiam da areia para formar uma muralha impenetrável em volta da cidade. Os soldados alados que tentavam voar além da barreira se deparavam com uma obstrução invisível que os impedia de prosseguir.

Os Qirajis que ficaram do lado de fora foram rapidamente derrubados. Seus cadáveres, assim como os de dragões e elfos noturnos, cobriam a areia ensanguentada.

Anacronos apontou para um escaravelho a seus pés e, diante dos olhos de Shiromar, a criatura congelou e se achatou, transformando-se num gongo metálico. Próximo à muralha, as pedras se ergueram, formando um palanque sobre o qual o gongo foi colocado.

Em seguida, o dragão ergueu o membro decepado de um irmão morto em batalha e, após uma série de encantamentos, o membro se transmorfou em um cetro.

O dragão disse a Fandral que, se um mortal desejasse ultrapassar a barreira mágica e adentrar a cidade ancestral, bastaria soar o gongo com aquele cetro e os portões se abririam. Em seguida, ele entregou o cetro ao Arquidruida.

Fandral baixou a cabeça, seu rosto se contorceu em desprezo e ele bradou: – Eu não quero nada com Silithus, nem com os Qirajis e menos ainda com um maldito dragão! – Ao terminar, lançou o cetro contra os portões mágicos, estilhaçando-o numa infinidade de fragmentos e, então, pôs-se a caminhar.

– Você romperá nosso elo por orgulho? – perguntou o dragão.



Fandral se voltou:

– Esta vitória insignificante não trará conforto à alma de meu filho, dragão. Eu o terei de volta.

Ainda que demore milênios, eu terei meu filho de volta! – Logo em seguida, ele passou diante de Shiromar...

... que o via em suas lembranças como se tudo aquilo houvesse acontecido ontem, e não mil anos atrás.

O olhar de todos os homens ali reunidos pairava sobre ela, à espera. Ela pôs-se a caminhar rumo ao palanque, passando por humanos e taurens, gnomos e anões, e até mesmo trolls, raças contra as quais seu povo havia guerreado e que agora estavam unidas para findar a ameaça do Qirajis de uma vez por todas.

Shiromar se deteve diante dos degraus e respirou fundo. Ela galgou o topo do palanque e, por um segundo, hesitou. Finalmente, empunhando o cetro, a elfa soou o gongo com um golpe estrondoso.

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