— E
bem quando o vagão começou a subir, um goblin verde feioso pulou em cima de
mim! — Li Li Malte do Trovão encurvou os dedos perto do rosto, fazendo sua
melhor imitação de um goblin rosnante. Ela se inclinou na direção do grupo de
jovens pandarens espalhados pela colina, querendo chamar a atenção deles.
Uma
jovem pandarena rolou de lado, roncando alto. Um pouco de baba escorria-lhe do
canto da boca, molhando o pelo branco da bochecha. Outro pandaren ergueu a
cabeça, os círculos negros em redor dos olhos aparecendo rapidamente por cima
do livro antes de desaparecerem novamente. Um terceiro bocejou abertamente. Em
volta de Li Li, o tédio transparecia na expressão dos filhotes pandarênicos que
a ouviam. Até Shisai, o irmão dela, a ignorava com afinco, arrancando talos de
grama e dando nós neles.
— Mas
aí eu chutei o goblin bem no peito, e ele caiu do vagão e bateu na parede. E
ele explodiu! Fez CABUM! ― Alguém tossiu. — Tá, a poção dele explodiu —
corrigiu-se Li Li, levantando a voz. — Mas foi muito legal!
— Tá,
a gente já sabe, Li Li — disse um filhote, enquanto desenhava arabescos no chão
com o dedo. — Você já contou isso um bobilhão de vezes.
—
Chen, por que você não conta uma história pra gente? — implorou outro
filhote.
—
Hum? —respondeu Chen, enquanto organizava algumas canecas de cerâmica em uma
manta sob os ramos de uma grande magnólia, cujos galhos filtravam a luz da
tarde em borrões dourados que salpicavam vários grupos de pandarens fazendo
piquenique. Era um dia cálido e perfeito, e quase todo mundo tinha decidido
passar o tempo no topo da grande carapaça de Shen-zin Su, tomando banho de sol
e descansando.
—
Conta daquela vez que você competiu com quatro anões no Ninho da Águia para ver
quem bebia mais!
— Ei,
eu estava contando uma história para vocês! — disse Li Li, visivelmente
irritada. — Quando eu estive em Altaforja, eu me encontrei com o Rei Magni,
e...
O
pandinha revirou os olhos e disparou:
— Li
Li, você só fala desse rei Magni! A gente pediu para o Chen!
Li Li
bufou e abriu a boca para protestar.
— Ora
essa, Li Li conhece muitas histórias boas — intercedeu Chen. — Mas você errou
numa coisa, pequeno Pandawan. — Chen deu uma piscadinha matreira. — Eram cinco
anões. ― Os outros pandinhas riram com gosto, mas Li Li fez uma
careta. Chen não pareceu notar.
“Falando
de beber, vocês estão me fazendo esquecer meus bons modos. Sinto muito que a
cerveja não seja melhor — desculpou-se Chen para um grupo de pandarens adultos,
enquanto enchia as canecas. — Infelizmente não há muitos ingredientes de
cervejaria na Grande Tartaruga.”
—
Tenho certeza de que está deliciosa, Chen — respondeu uma das anciãs, aceitando
a bebida graciosamente. — É tão bom ter nosso maior cervejeiro de volta! Nós
todos sentimos sua falta.
—
Vocês são gentis — agradeceu Chen, sorrindo.
— Chen,
anda, vem contar uma história pra gente! — choramingou um pandinha.
— Em
um minuto. Antes deixem-me servir seus pais. Então eu farei um chá para vocês e
poderemos contar histórias.
— Uma
vez um ogro quase me comeu — começou Li Li. — Nossa, foi tão assustador.
— A
gente sabe, Li Li! Dá para ficar quieta? — gritou outro pandinha. — Chen
tem um monte de histórias que a gente ainda não ouviu.
— Ah,
eu desisto! Vão, continuem importunando meu tio — resignou-se Li Li. A jovem
pandarena olhou para Chen ansiosa, esperando que ele lhe desse a deixa para
contar as histórias, mas o tio já tinha ido para outra parte da colina, absorto
numa conversa. Li Li então resolveu mudar de tática. — Ou então quem sabe vocês
possam me contar alguma história. Que tal? Uma história sobre passar os
dias colhendo flores na colina e levando bomba na prova de caligrafia... Nossa,
é tão empolgante...
Vários
pandinhas protestaram com veemência e parecia que a discussão ia piorar.
— Ei,
pandinhas! —interrompeu Chen, bem a tempo. — Quem quer chá?
Um
coro de "Eu, eu!" ecoou em resposta, e Li Li se viu sendo
ignorada, pois a oferta de Chen atraiu a atenção de todos. A pandinha
aproveitou para sair da encosta da colina. Quando saiu do campo de visão dos
pandarens fazendo piquenique, ela suspirou e olhou para o céu. Nuvens fofas
passeavam lentamente, tapando o sol de vez em quando e inundando o cenário de
luz ao se desfazer.
Li Li
continuou seu caminho, descontando a frustração chutando pedrinhas soltas e
seguindo-as na descida pela ladeira adiante. Desde que Li Li retornara de suas
viagens com Forte Bô, a vida se tornara cada vez mais entediante. Chon Po, o
pai dela, ficara aliviado e furioso ao revê-la, e os extremos daquela gangorra
emocional pareciam ter se exacerbado quando Chen explicou com detalhes o
destino de Bô.
O
coração de Li Li pesava no peito quando ela pensava em Bô. Chen lhe garantira
que a morte de Bô não fora sua culpa, e num nível intelectual Li Li entendia
isso. Mas a voz calma e cruel em sua mente nunca a deixava esquecer que, se ela
não tivesse decidido abandonar Shen-zin Su, a Grande Tartaruga, então Bô talvez
ainda poderia estar vivo.
Li Li
voltou ao presente, tentando esquecer a culpa, e notou que, inconscientemente,
tomara o caminho para a Biblioteca-mor. A jovem olhou para o elegante templo
que abrigava a biblioteca e seu ânimo melhorou. A biblioteca sempre fora seu
lugar de refúgio, onde ela podia se perder nas páginas de um livro ou carta, e
isso era justamente o que ela precisava naquele momento. Li Li entrou com
alegria.
Lá
dentro, o cheiro familiar e reconfortante de tinta e pergaminhos a acalmaram.
Li Li pegou um atlas grosso e uma pilha de cartas amarrotadas das estantes e se
sentou em uma cadeira estofada. Colocando os pergaminhos em uma mesa próxima,
ela deixou o livro se abrir numa página ao acaso.
O
Pântano das Mágoas se espalhava pela página, pintado em elegantes tintas verdes
e marrons. O mapa era antigo e Li Li o conhecia praticamente de cor, tendo há
muito copiado a maior parte dele, e de muitos outros, para o diário que
mantinha em casa. Li Li se apoiou na mesa de leitura, folheando os papéis até
encontrar o que procurava.
A
carta de Chen detalhava a exploração da terra que já fora a região sul do
Pântano das Mágoas, agora chamada de Barreira do Inferno. Em tempos recentes,
magia vil se infiltrara por uma fenda entre os mundos e asfixiara a flora
luxuriante, deixando apenas terra vermelha e árida em seu lugar. O texto explicava
que a fenda fora aberta por um mago imensamente poderoso chamado Medivh, que
tivera ajuda dos orcs no outro mundo. A carta não falava mais do que isso, e
nenhum documento na biblioteca mencionava a Barreira do Inferno ou Medivh. Ele
devia ter nascido bem depois que os companheiros de Li Li em Shen-zin Su já
haviam abandonado seu legado de exploração intrépida. Li Li se perguntou como
seria um mapa moderno do pântano. As cartas de Chen estavam desatualizadas
havia vários anos, e o retorno dele significava que não haveria novas notícias
do mundo exterior.
Li Li
folheou as cartas novamente, sem ânimo, mas as palavras já não a interessavam.
Elas permaneciam estáticas, a tinta desaparecendo lentamente dos registros de
tudo que Chen vira outrora. Li Li sabia que, além do isolamento de suas vidas
na Ilha Errante, o mundo continuava a mudar sem eles.
Ela
fez cara feia enquanto devolvia os papéis às prateleiras. A jovem pandarena se
sentia como se, sofrendo de inanição, tivesse se sentado em uma mesa de
banquete apenas para ver a comida desaparecer após a primeira mordida. O mundo
era tão maior e mais bonito do que quaisquer mapas ou palavras seriam capazes
de comunicar, e ela mal arranhara sua superfície. Não havia nada para ela em
Shen-zin Su.
* * *
—
Esta noite nós temos muita coisa boa! Sopa de espinafre e cenoura com galinha,
peixe no vapor e arroz, é claro — disse Chon Po alegremente para Li Li, Shisai
e Chen, enquanto preparava a mesa de jantar. — Me digam o que vocês acham da
sopa, principalmente. É uma receita nova.
—
Parece uma delícia, Po — comentou Chen. — Obrigado por me convidar.
Chon
Po olhou orgulhosamente para suas criações e se sentou à mesa.
— O dia
de vocês foi bom? — perguntou. — O tempo estava ótimo. Eu queria ter ido ao
piquenique.
— Nós
sabemos que o senhor está ocupado, Papai —respondeu Shisai, se servindo do
peixe. — Mas foi bem divertido, sim!
— Não
foi nada demais — desdenhou Li Li, dando de ombros.
Shisai
revirou os olhos e disse:
—
Você está zangada porque ninguém quis ouvir as suas histórias. As do tio Chen
são melhores mesmo, não são, tio Chen?
—
E-err... — Chen hesitou, se servindo de sopa. Li Li olhou para o irmão enquanto
enfiava arroz na boca estouvadamente.
— O
tio Chen nos contou da vez que ele quase matou o grande mestre de feras Rexxar!
—continuou Shisai, ignorando o desconforto de Chen e de Li Li.
— O
quê? — disse Chon Po, e suas sobrancelhas se ergueram, sobressaltadas. — Isso
me parece algo violento demais para contar às crianças, Chen.
—
Hum, bem... há um pouco de exagero nisso, Po. — minimizou Chen, coçando a nuca.
— A história é sobre exageros, na verdade. O que aconteceu é que ele bebeu da
minha cerveja e a achou tão forte que me acusou de tentar matá-lo! — Chen riu,
sem graça. — Viu? É... é engraçado, não é...?
Chon
Po permaneceu com a expressão impassível.
— Mas
não é assim que termina! —insistiu Shisai. — Vocês dois foram até Theramore
para lutar com o almirante Proudmore e...
— Já
chega! — Chon Po interrompeu o filho e olhou para o irmão com raiva. — Você
precisa pensar no exemplo que está dando, Chen! Veja o que aconteceu com Li Li,
e olha que tudo o que ela tinha de você eram as cartas!
—
Nada aconteceu comigo, papai — murmurou Li Li. — Eu estou bem aqui, está
vendo? E eu posso ouvir o senhor.
—
Esse tipo de história pode ter sérias consequências, Chen.
— Ei,
olhem só pra mim! Ah, vocês não podem olhar, porque eu sou Li Li Malte do
Trovão, a pandarena mágica invisível!
— Li
Li jamais teria imaginado tanta bobagem por conta própria —continuou Chon Po —,
não sem...
—
"Bobagem"? Do que o senhor está falando? Não é bobagem! Tem um
mundo enorme lá fora enquanto aqui na ilha todos os pandarens estão ocupados
demais escondendo as cabeças gordas debaixo de uma carapaça, que nem Shen-zin
Su durante uma tempestade, e por isso ninguém se importa!
—
Pan'a'ens 'ão 'em ca'apashas, Li Li — comentou Shisai, falando de boca cheia.
— É
uma metáfora, seu asno!
— Não
fale de boca cheia, Shisai! E não xingue seu irmão, Li Li!
Li Li
olhou para o pai e o irmão, e continuou:
— Eu
não acredito que vocês não fiquem nem um pouco curiosos. Sobre as pessoas do
mundo. Sobre as cidades, as terras distantes...
— Nem
um pouco, se isso significa quase ser comido por um ogro como você disse, Li Li
— retrucou Shisai, e engoliu a comida fazendo barulho. — Quer dizer, as
histórias do tio Chen são legais e tudo mais, mas...
—
Nossa, mas que peixe delicioso esse que você fez, Po. Muito obrigado pelo
jantar! —disse Chen, em voz alta.
— Comida
de ogro? — Chon Po saltou da cadeira. — Você está inventando coisas para
assustar seu irmão? — completou ele, e se inclinou para diante, apoiando-se nas
mãos e encarando firme a filha.
—
Não! — gritou Li Li, indignada. — Eu não inventei nada! Quer dizer... eu...
bom, eu fui capturada pelo ogro, mas a parte do "quase
devorada" foi um pouquinho de exagero...
— JÁ
CHEGA! — rosnou Chon. — Veja se pode! Você fala que nada aconteceu com você? E
ser capturada por um ogro não é nada?? E você ainda insiste em ficar
tagarelando sobre o mundo lá fora? Você não aprendeu nada com a morte de
Bô?
Todos
congelaram, inclusive Shisai. Li Li abaixou a cabeça e encarou o prato,
fechando os olhos ao sentir a pontada da culpa perfurando seu coração.
—
Isso não foi culpa dela, Po. — retrucou Chen, calmamente.
— Não
—concordou Chon Po, olhando fixo para Li Li —, mas se ela não tivesse fugido,
isso não teria acontecido.
Lágrimas
fizeram arder os olhos de Li Li. Quantas vezes ela mesma já pensara aquilo? A
pandinha rilhou os dentes, humilhada e furiosa, e pensou, "Não vou
chorar. Não vou chorar. Não vou..."
—
Chon Po, não foi você que enviou Bô atrás de Li Li?
— O
que você quer dizer com isso, Chen?
Chen
suspirou e disse:
— Só
estou dizendo que especular sobre "e se" é uma perda de tempo.
Li Li não pôde prever o futuro... e nem você.
—
Não? — disse Chon Po, voltando a raiva contra o irmão. — Alguma coisa assim já
aconteceu conosco aqui em Shen-zin Su? Nosso lar é o lugar mais seguro...
— Já,
sim —interrompeu Chen com firmeza. — Aconteceu com Xiu Li.
À
menção da mãe de Li Li e Shisai, o clima ficou ainda mais desconfortável. Chon
Po baixou a cabeça, tremendo de raiva.
Implacável,
Chen continuou:
— E
Wanyo está sumido há um bom tempo. Ele provavelmente está morto.
—
Onde você está querendo chegar? — perguntou Chon Po, rosnando e erguendo o
rosto para encarar Chen.
—
Barcos de pesca partem, mas nem todos voltam. Como Wanyo, como... sua esposa.
Como pode acontecer com qualquer um de nós, Po. Riscos sempre existirão, não
importa onde estivermos. Você não pode controlar isso.
Lenta
e silenciosamente, Chon Po se sentou, espumando de raiva.
—
Papai — arriscou Li Li — Eu quero ver o mundo. Eu vou tomar cuidado...
— Você
é uma grande tola só por pensar nisso! — interrompeu Chon Po, batendo com o
punho na mesa e fazendo tremer os pratos de cerâmica. — O mundo é um lugar
perigoso, como o seu querido tio Chen acaba de nos lembrar. Você é uma criança.
Você quer acabar igual ao Bô? Ou à sua mãe?
—
Chon Po! — repreendeu Chen, veemente, mas já era tarde. Li Li saíra correndo,
engolindo um soluço. E a porta do seu quarto bateu com força no andar de cima.
Chen
olhou para Chon Po do outro lado da mesa, cruzando os braços em desafio. O
queixo altivo de Po praticamente desafiava Chen a contrariá-lo.
—
Você pode me ouvir um minuto? —perguntou Chen, tão polidamente quanto pôde,
fazendo um gesto na direção da cozinha.
—
Está bem. — Chon Po se levantou bruscamente e marchou para o outro cômodo, e
Chen o seguiu de perto.
Sozinho
à mesa, Shisai pescou um pedaço de cenoura da sopa e mastigou lentamente. Ele
olhou para a cozinha, depois para as escadas que levavam ao segundo andar. E
engoliu.
—
Puxa, que constrangedor —disse ele para ninguém ouvir, e depois voltou a
encher o prato.
* * *
Chen
quase empurrou Chon Po pela porta dos fundos até a varanda coberta que se
estendia atrás da casa.
—
Você está sendo injusto com Li Li —disse Chen. — Não é mau que ela
queira viajar.
— É
perigoso! —replicou Chon Po. — Mais perigoso que ficar aqui, não importa o que
você diga! Xiu Li e Wanyo partiram, mas por causa de acidentes. Bô foi morto!
Você quer que Li Li morra também?
—
Pare de falar como se isso fosse algo inevitável! Ela não poderia ter previsto
o que aconteceu! Os agressores procuravam a tal Pérola de Pandária... ou sei lá
o que eles pensaram que Wanyo tinha encontrado. E eles pensaram que Li Li sabia
onde isso estava, só por ser pandarena! E quanto ao orc, ele estava atrás de mim,
e se eu tivesse encontrado Bô e Li Li mais cedo...
—
Tudo o que sua história prova é que para os inimigos, todo pandaren é
presa fácil. Chon Po andou de um lado para o outro sob as lanternas cuja luz
alaranjada intensificava a expressão furiosa do seu rosto. — Li Li está a salvo
aqui, mais do que em qualquer outro lugar!
Chen
sacudiu a cabeça.
—
Você não pode forçá-la a ficar se ela não quiser; isso ela já provou. Você não
pode protegê-la para sempre, e tentar fazer isso só vai sabotar sua causa.
—
Bom, então você sabe como criar meus filhos melhor do que eu, é isso? — zombou
Chon Po.
—
Não, Chon Po, eu só estou dizendo que eu sei como ela se sente. Quando eu tinha
a idade dela, nada que nossos pais dissessem conseguia me fazer mudar de ideia.
Por que você acha que o que você diz conseguiria mudar a cabeça dela? Li Li
fará as próprias escolhas.
— As
próprias escolhas ruins. Correndo direto para o perigo, abandonando a
família, deixando as responsabilidades para trás... — Chon Po começou a
enumerar nos dedos as falhas de Li Li, uma a uma. — Nós só sabíamos se ela
estava viva ou morta por alguma carta que chegava de vez em quando...
Chen
cerrou as sobrancelhas.
—
Nunca estabelecendo uma família só dela...
— Po,
como você sabe que ela não fará isso um dia? —perguntou Chen, pasmo.
Chon
Po pareceu não tê-lo ouvido.
— Sem
sequer aparecer para o casamento do irmão...
— Com
quem Shisai está se casando? Eu não entendo o que você quer dizer... — Chen se
deteve no meio da frase, ao entender finalmente. Ele ficou parado olhando para
lugar nenhum por sobre o corrimão da varanda, a mente subitamente serena
enquanto as peças se encaixavam. Sem perceber, Chon Po continuou a listar as
transgressões de Li Li.
—
Você está falando de mim — disse Chen, calmamente. — Não é, Chon Po?
Chon
Po se calou de repente, e ficou parado onde estava sem ousar encarar Chen. O
tempo foi passando enquanto Chen se preparava para a salva de palavras furiosas
que o irmão com certeza já vinha guardando dentro de si há muitos anos.
— A
conversa acabou.
Chon
Po voltou para casa pisando forte e fechou a porta atrás de si.
* * *
O
sono não veio fácil para Li Li aquela noite. Ela se virou e revirou, e as
palavras afiadas do pai cutucavam sua consciência sem descanso. Finalmente,
quando o céu cada vez mais claro anunciou a chegada da aurora, ela desistiu,
saiu da cama e se vestiu.
Sobre
a penteadeira estava um pequeno pote de argila parecido com aqueles que Bô
outrora enchera de água e pendurara nas pontas dos cajados de treinamento de
equilíbrio e postura de Li Li. Ela o examinou detidamente nas mãos, sentindo o
peso familiar, e o guardou na túnica, enquanto saía de casa.
Àquela
hora, Shen-zin Su estava tão quieto que Li Li pensou ouvir as gotas de orvalho
estourando sob seus pés. Na pouca luz, as teias de aranha se estiravam entre os
galhos das árvores feito renda brilhante. Enquanto caminhava, Li Li se abaixava
para colher grupinhos de flores coloridas das rachaduras do chão, juntando os
botões em dois buquês improvisados.
No final
da trilha, protegida por muralhas e pelo orgulhoso leão Guardião, o glorioso
Bosque dos Cajados se espalhava diante dela. Qualquer pandaren que desejasse
entrar no belo bosque tinha que derrotar o Guardião em combate, algo que Li Li
conseguira há muitos anos. O Guardião inclinou a cabeça na direção dela,
afastando-se para deixá-la passar, e ela retribuiu o cumprimento
respeitosamente. Fazia tempo que Li Li não visitava o bosque, bem conservado
como sempre e cuidado por um pequeno exército de jardineiros. Pouco depois do
nascer do sol eles chegariam para varrer qualquer sujeira que o vento tivesse
levado aos mausoléus durante a noite, mas Li Li estava sozinha por enquanto, e
feliz por isso.
Xiu
Li, a mãe de Li Li e Shisai, morrera num acidente de pesca quando eles eram
pouco mais que recém-nascidos. Li Li não tinha muitas lembranças de Xiu Li, e
embora a jovem raramente sentisse diretamente a falta da mãe, a ausência às
vezes fazia seu coração doer agudamente. Ela se ajoelhou em frente ao mausoléu
da família Malte do Trovão, depositando um dos pequenos buquês no altar.
—
Mamãe, eu sinto tanto sua falta... — A respiração de Li Li se evolava no ar da
manhã. — O papai não entende; ele nunca entenderá. E o tio Chen não quer deixar
o papai zangado. — A pandarena hesitou, quase temendo falar alto, embora o
bosque se encontrasse deserto. — A senhora entenderia, não é, mamãe? Eu não
posso ficar aqui pra sempre. Eu não posso.
Li Li
se sentou na grama e abraçou as pernas dobradas na altura do peito. Ela enfiou
a cabeça entre os joelhos em contemplação serena, escutando os pássaros
chilreando as primeiras canções da manhã, empoleirados nos galhos da grande
árvore no topo da colina. Antes que suas pernas ficassem dormentes, Li Li se
levantou, fez uma última reverência e continuou pelas filas de memoriais até
seu próximo destino.
O
mausoléu da família Forte Bô ficava mais para o alto da colina, sob os galhos
espraiados da árvore gloriosa. Um nó endureceu na garganta de Li Li, e as
palavras do pai retornaram com clareza dolorosa.
"Você
não aprendeu nada com a morte de Bô?"
Ela
colocou o pequeno pote de argila diante do mausoléu e arranjou o segundo buquê
de flores dentro dele, novamente ficando de joelhos.
— Se
eu pudesse trazer você de volta, Bô, eu traria. Ou então eu teria feito outra
coisa. Eu teria ido para algum lugar onde aquela naga horrenda e seu bruto orc
não teriam nos encontrado. Mas eu não teria deixado de partir. ― Ao admitir
isso, uma lágrima rolou pela face de Li Li, molhando seu pelo. A pandinha
continuou:
“Eu
tinha que ir embora. Ficar aqui me deixa louca. Talvez isso faça de mim uma
pessoa ruim. É o que o papai parece pensar. Mas eu tenho mais medo do que pode
acontecer comigo se eu ficar aqui do que se eu for embora. Espero que isso não
seja um insulto à sua memória, Bô. Eu só quero fazer o que é certo pra mim. Eu
sinto tanto... — As palavras dela se apertaram contra sua garganta contrita. —
Eu não queria que ninguém se machucasse. — Li Li inclinou a cabeça, como fizera
no altar da mãe, e recitou uma oração aos mortos.
“Fique
em paz — encerrou Li Li, e se levantou. A pandarena olhou para o céu, dourado e
róseo com a luz da aurora, e viu a borda laranja do sol surgindo no horizonte
ao leste. Deu batidinhas na barra da saia e olhou para seus pés. Seu coração
ainda doía, e ela não tinha vontade de voltar pra casa. Ainda era cedo, mas
havia uma boa chance de Chen já estar acordado.
* * *
Ele abriu
a porta na quarta batida.
— Li
Li? — disse Chen, piscando surpreso. — Entre! Deixe-me preparar algo para você
comer.
Li Li
entrou no pequeno chalé atrás dele e se sentou à mesa da cozinha enquanto Chen
se ocupava em preparar a refeição.
—
Desculpe vir chatear o senhor tão cedo, tio Chen.
—
Ora, problema nenhum! — afirmou ele, sua voz soando abafada atrás da porta de
um armário. — Eu estava terminando de preparar meu último projeto de cerveja.
Infelizmente não há muita variedade de ingredientes por aqui, mas vamos ver
como isso vai.
Li Li
ficou sentada em silêncio, mexendo nas mangas do vestido enquanto Chen
preparava mingau no fogão.
—
Você ainda está zangada com o que aconteceu ontem à noite? —perguntou Chen,
mexendo o mingau com uma colher de cabo longo.
— Eu
nunca quis que nada acontecesse com Bô —murmurou ela, encarando a mesa.
— Eu
sei, Li Li. E seu pai também sabe. Ele só é...
— Um
grande cretino — disse Li Li, e fungou.
—Teimoso...
— completou Chen, diplomaticamente, pensando na conversa que tivera com Chon Po
na varanda.
— Eu
não gosto de aborrecer o meu pai —admitiu Li Li, enquanto Chen colocava
uma tigela diante dela e se sentava do outro lado da mesa. — Mas aqui eu me
sinto muito triste. E... — Li Li aumentou a voz. — A vida é uma aventura! Ou
pelo menos devia ser. Mas não é. — A pandinha hesitou e enfiou a colher na
tigela. — Pelo menos não aqui.
Chen
deu tapinhas no ombro dela e consolou:
—
Tudo bem, Li Li.
—
Venha comigo, tio Chen.
— O
quê?
—
Lembra quando nós falávamos de viver aventuras juntos? Vamos lá! eu ficaria
segura com o senhor, e o papai sabe disso. Vamos ver o mundo!
Chen
abriu a boca e depois hesitou. Os olhos ávidos de Li Li examinavam sua
expressão, mas os segundos se passaram e ela percebeu que a resposta que
ouviria não era a que ela queria.
—
Você concorda com o papai, não é?
— Não
se trata disso —respondeu Chen. — Eu acho que vocês dois tem razão em certos
pontos. Mas quanto a mim... — O pandaren olhou para sua casinha, para as
panelas penduradas sobre o fogão; as prateleiras cheias de pratos, pergaminhos
e decorações; a mobília confortável. E sorriu. — Eu estou feliz aqui. Eu passei
tanto tempo na estrada, sem um lar para chamar de meu. Isso aqui para mim é
novidade. Para mim, isso aqui já é uma aventura nova.
— O
senhor só pode estar brincando... — duvidou Li Li, tomando um bom gole do
mingau e então empurrando a tigela para longe, sem terminar a comida. A única
pessoa ali que a entendia havia desistido. Ela foi traída.
— Eu
sei que você não vê as coisas como eu, Li Li. Você ainda é jovem...
— Eca,
agora o senhor está falando igualzinho ao papai. Quando é que o grande
aventureiro Chen Malte do Trovão ficou tão chato? — Li Li disse a última
palavra com um tom de acusação.
— As
coisas mudam, Li Li. — Tudo no comportamento de Chen transparecia uma paciência
calma e enfurecedora. — Eu já viajei o que tinha que viajar. E estou pronto
para algo diferente.
—
Bom, eu não viajei o que tinha que viajar. E se depender do papai e do senhor,
eu nunca vou fazer isso! Vou crescer, ficar velha e acabada e passar os dias
fazendo chá e falando do tempo, e minha vida vai ser jogada fora!
— Li
Li, você sabe que isso não é verdade.
— Não
fale mais comigo. Você está do lado dele! — Li Li se levantou e saiu da
casa estouvadamente. Chen reclinou a bochecha na palma da mão e deu um meio
sorriso enquanto a observava se afastando.
— Nós
Maltes do Trovão somos um bando de cabeças-duras —disse ele para si mesmo.
* * *
Plonc. A pedra atingiu a superfície do oceano com um baque
pesado. Plonc. Plonc. Plonc. Li Li arremessou mais pedras na água, mas a
satisfação do gesto era fugaz. Sentindo-se derrotada, sentou-se de chofre.
Aquele
era um dos seus locais favoritos em Shen-zin Su. Bem na frente da carapaça, Li
Li podia balançar as pernas acima do ponto em que o grosso pescoço da tartaruga
desaparecia na água, e olhar para a distante linha azul-cinzenta do horizonte
onde o mar parecia se unir ao céu. Há muito tempo, o famoso viajante Liulang
fundara a colônia em Shen-zin Su para levar os mais bravos e audaciosos
pandarens por Azeroth em busca de aventura e conhecimento. Mas a curiosidade há
muito se tornara complacência, deixando aqueles dias perdidos nos anais da história.
— Eu
odeio isso — desabafou Li Li. — Quando eu estava viajando, antes de eu e Bô nos
metermos em encrenca, as coisas pareciam estar certas. Aqui eu não vou
conquistar nada. Nada contra você, Shen-zin Su. — Li Li bateu na carapaça da
tartaruga levemente. — Mas há tanta coisa para fazer por aí! Ver Ventobravo e
Altaforja... eu jamais conseguiria sequer imaginar esses lugares, nem com todos
os mapas e cartas do mundo. O Rei Magni foi tão bom pra mim! Ele me mostrou a
casa dele. Eu queria poder mostrar algo pra ele também, mas não pude. Chen
decidiu que aqui agora é o nosso lar. Bom para ele. Desculpe, Shen-zin
Su. Eu amo você, mas nunca me senti em casa aqui. Será que existe algum lugar
que eu um dia vou poder chamar de lar?
Li Li
não esperava uma resposta à sua pergunta, então, ao ouvir a Grande Tartaruga
tremer e soprar bolhas na água à sua frente, a pandarena ficou momentaneamente
paralisada. Ela se perguntou por um instante se o barulho produzido por
Shen-zin Su fora uma tentativa real de comunicação, antes de decidir que tinha
sido só coincidência. Li Li continuou, entre suspiros:
“Bem
que eu queria poder conversar com você. Você provavelmente me ajudaria mais que
a minha família. — Desanimada, abaixou a cabeça e uniu as mãos sobre o colo.
O
chão sacudiu violentamente, arremessando-a para o lado e lhe ferindo o ombro.
Assustada, Li Li tentou se erguer, mas a Grande Tartaruga tremeu de novo e a
arremessou para trás. Li Li ficou apertada contra o chão, o coração batendo
descompassado enquanto Shen-zin Su subia e descia balançando feito um navio na
tempestade. Li Li foi catapultada para a beirada da carapaça, onde tentou se
agarrar ferozmente, procurando recobrar o equilíbrio. Abaixo dela as águas se
dividiram lentamente, caindo em cascata do forte pescoço de Shen-zin Su
enquanto a tartaruga erguia a enorme cabeça.
Sob
os pés, Li Li sentiu a tartaruga se encolhendo como um iaque prestes a saltar
um obstáculo. Um ribombar alto veio do fundo da sua garganta. Li Li sentia a
vibração no corpo mais do que a ouvia. E então, com um grande ímpeto de
esforço, Shen-zin Su... tossiu.
Li Li
podia jurar que tinha sido isso mesmo que acontecera. A Grande Tartaruga
produziu um som profundo e cavo feito uma buzina de barco, e o movimento súbito
derrubou Li Li novamente. Estrelas lhe explodiram nos olhos quando sua cabeça
bateu contra a carapaça. Segurando as têmporas, Li Li finalmente conseguiu
rolar para longe da beirada. O tremor começou a diminuir de intensidade,
tornando-se um lento embalo, até que por fim Shen-zin Su se aquietou.
Li Li
levantou-se cuidadosamente, preparando-se para outro terremoto. Passou a mão
pela cabeça, sentindo o local da pancada latejando dolorosamente. Um galo ia
aparecer ali até o final do dia. Fazendo uma careta, a pandarena se perguntou o
que teria causado o bizarro acesso de tosse da tartaruga. Shen-zin Su teria
engolido uma baleia por acidente?
Ela
olhou na direção da água, massageando a cabeça com cuidado. Remoinhos alvos de
espuma se pulverizavam contra os lados de Shen-zin Su, prova de que Li Li não
imaginara coisas. Com cuidado ela se postou de pé, ainda tonta.
Li Li
piscou, sem confiar no que estava vendo. Mais adiante em mar aberto, a pandinha
viu uma mancha branca que diferia das outras. Era regular demais para ser a
crista espumante de uma onda. Parecia a vela de um pequeno barco de pesca. Li
Li apertou os olhos, tentando ver melhor. Ela não tinha se enganado. O barco
balançava ao cruzar as ondas e havia marcas pandarênicas claramente visíveis na
proa.
O
barco se aproximou, diminuindo a velocidade. O mastro estava quebrado, um lado
da vela se arrastava, inutilizado, e o marinheiro teimosamente impelia sua
embarcação usando um remo. Quando atingiu umas doze jardas de distância, o
marinheiro se empertigou, empurrando o velho chapéu de palha para trás. Ele
acenou com entusiasmo, chamando Li Li.
—
Ora, olá! Nossa, que estranho, quanto tempo não fazia que eu não via o sol. E
que céu mais azul! E nem tem cheiro de peixe velho por aqui, é tudo tão
fresquinho!
Aquilo
deixou Li Li sem palavras. Ela franziu o cenho, perplexa, e observou enquanto o
barco deslizava em direção à costa, até bater em terra com um baque macio. O
pescador pulou sobre a amurada e acenou novamente, sorrindo. O queixo de Li Li
caiu. Ela até esqueceu a dor latejante no lado da cabeça.
Wanyo,
o pescador há muito desaparecido, havia retornado.
* * *
—
Então esse tempo todo você estava dentro de Shen-zin Su?
— É!
—respondeu Wanyo alegremente. — Eu fui engolido. Nunca senti vontade de ir
embora.
Li Li
apertou o ouvido contra a porta e piscou ao sentir o ponto sensível na cabeça
latejando dolorosamente outra vez. Então se afastou um pouco, contrariada, pois
não conseguiria ouvir tão bem a conversa de Wanyo com os Anciãos, mas pelo
menos a dor de cabeça não voltaria. Pelas ripas de madeira da porta dava para
ouvir alguém estalando a língua, e Li Li conseguia imaginar os aborrecidos
pandarens sacudindo as cabeças. A pandinha conteve um risinho.
—
Bom, independente disso. — Li Li reconheceu a voz de sua avó Mei. — Temos que
resolver o que fazer com essa coisa que você trouxe.
— Eu
não sei mesmo. — Li Li quase podia ouvir Wanyo dando de ombros. — Quem sabe não
é uma bola de cristal mágica. Ela sempre me mostrou onde era o melhor lugar
para pegar peixe... bom, era sempre onde eu já estava, né, na tartaruga mesmo!
— Wanyo riu.
Alguém
murmurou algo que Li Li não pôde ouvir direito, mas ela achou que devia ser
algum comentário irônico, pois risadinhas e fungadas se seguiram.
— Não
se parece com uma bola de cristal nem com qualquer outro artefato mágico que eu
já tenha visto — falou a voz de Chon Po, e Li Li ficou rígida de susto,
sentindo o coração bater violentamente contra as costelas. Ele ficaria furioso
se a surpreendesse bisbilhotando a reunião.
Chen
falou em seguida.
—
Parece é com uma pérola gigante. — Havia um quê de sinistro naquelas palavras,
e Li Li pensou que sabia o que se passava pela cabeça do tio: a chamada Pérola
de Pandária, o item que a sereia naga Zhahara acreditava estar com Wanyo. Será
que ela estava certa?
— Eu
a peguei de um murloc, acreditam? — Wanyo riu de novo. — Se for uma pérola, é
uma pérola mágica, pois eu nunca vi uma que dissesse pra gente onde é o melhor
lugar pra pescar. — Ele fez uma pausa. — E, bom, por que outro motivo aquela
naga louca ia aparecer do nada na hora que eu peguei a pérola?
Os
olhos de Li Li se arregalaram. Aquela era Zhahara, com certeza.
—
"Naga louca"? —perguntou Chon Po. — Li Li mencionou algo assim para
mim uma vez. Conte-me mais, Wanyo.
— Eu
tinha saído à noite e peguei o murloc com a pérola nas minhas redes. O
coitadinho estava nas últimas, ele que me deu essa coisa. Assim que eu peguei a
pérola, a naga saiu da água e mandou um raio pra cima de mim. Quebrou meu
mastro! Eu não ia ficar por ali, né, e pedi para alguns amigos do mar virem me
ajudar. Um peixão me ajudou a escapar. Deve ter sido um dos pequenininhos que
eu joguei de volta na água há muitos anos e que agora estava me pagando o
favor!
— E
foi aí que Shen-zin Su engoliu você? — Era a voz de Chen.
—
Foi. Eu não estava prestando atenção para onde eu estava indo, só queria sair
de perto daquela megera escamosa. Daí o peixe saiu do caminho e eu me vi cara a
cara com a Grande Tartaruga... e no instante seguinte ela me engoliu.
— Eu
tenho mais uma pergunta pra você, Wanyo — continuou Chon Po. — Por que você
decidiu abandonar o seu, ahm, local de pesca depois de tanto tempo lá?
— A
pérola me falou pra fazer isso.
— O
quê?
— Eu
olhei nela hoje de manhã quando acordei, como sempre faço. Mas em vez de me
mostrar pescando, ela me mostrou velejando de volta pra cidade. Daí eu pensei
que tava mesmo na hora de ir embora, pulei no meu barco, e Shen-zin Su me
cuspiu.
Chon
Po suspirou tão forte que Li Li o ouviu do outro lado da porta. — Muito bem,
Wanyo. Isso é tudo, eu acho. Em algum momento teremos que descobrir o que é essa
coisa. Por enquanto, sugiro que a depositemos na Biblioteca-mor. Vocês
concordam?
Um
murmúrio geral de concordância se seguiu à pergunta de Chon Po, e os Anciãos
passaram a discutir assuntos mais corriqueiros.
Li Li
se afastou rapidamente da porta e saiu correndo dali, passando agachada ao
longo da cerca viva até estar longe do Templo das Cinco Auroras. Sua mente
estava em turbilhão, analisando tudo o que ela ouvira. A pérola gigante
mágica... a Pérola de Pandária? Li Li se sentou sob uma árvore e coçou o
queixo, pensativa. Zhahara dissera que a pérola era um artefato antigo e
poderoso. Li Li tinha certeza de que aquilo era um mito, e Chen e seu pai
também pensavam assim. Mas agora...
As
sombras se alongavam na grama ao lado dela. Li Li se levantou e correu para
casa. O pai dela não podia suspeitar de nada, de forma que ela precisava agir
normalmente, mas sua mente estava a mil, transbordando de ideias.
* * *
Tarde
da noite, Li Li desceu silenciosamente as escadas. Ela seguiu pé ante pé pelo
saguão e fechou suavemente a porta atrás de si ao sair para o ar livre. Tudo o
que importava era chegar à pérola. Ela tinha que ver com os próprios olhos.
A
Biblioteca-mor nunca fechava oficialmente, e as pequenas lanternas mágicas
alinhadas no saguão se acendiam, obedientes, enquanto Li Li passava apressada.
Ela imaginou que a pérola seria exibida com as melhores coleções da biblioteca,
e assim ela se dirigiu para a sala de exibições.
E de
fato, a pérola se postava altiva num pedestal de madeira no meio da sala,
coberta por uma proteção de vidro. Li Li levantou a redoma com cuidado,
deixando-a de lado.
A
pérola era ainda maior do que Li Li imaginara, quase do tamanho de um melão.
Seu brilho opalescente refletia a pouca luz ambiente em um caleidoscópio de
arcos-íris embaçados. Li Li contemplou a pérola, extasiada por sua beleza
singular. Sem conseguir resistir, ela pegou a pérola com as duas mãos e a
trouxe gentilmente até o nível do rosto. A pérola era morna ao toque, e zumbia suavemente
com sua própria energia. Como Wanyo dissera, ela era mágica, com certeza.
—
Você mostrou a Wanyo onde pescar —sussurrou Li Li para a pérola. — Mas o que
você pode mostrar para mim?
Como
se só estivesse esperando a deixa, a pérola começou a brilhar suavemente, as
cores refletidas na superfície girando juntas velozmente em um vórtice
multicor. Li Li sentiu suas pálpebras ficando pesadas, e ela as fechou. Ao
abri-las novamente, ela se viu cercada por brumas cinza-prateadas, não mais com
a pérola nas mãos, sentindo-se como se flutuasse a meio caminho entre o sonho e
o despertar. Aquilo era real?
A
bruma começou a se dissipar, revelando uma vista aérea de amplos campos verdes,
pontilhados com lindas árvores floridas em pontinhos rosados. Li Li agitou os
braços no ar, esperando despencar para o chão, mas não foi o que aconteceu. Aos
poucos ela se acalmou, e espichou a cabeça para a direita e para a esquerda.
Seu coração batia acelerado de excitamento; a pérola lhe propiciava uma visão.
A
cena mudou, focando-se em uma cidade dinâmica, de ruas cheias de pandarens
vendendo produtos e vivendo suas vidas. Li Li franziu a testa: ela não conhecia
ninguém ali. A arquitetura lembrava os prédios em Shen-zin Su, mas algo parecia
diferente. As estradas, o cenário... não eram iguais. Parecidos, mas não
iguais.
A
vista continuou a se desenrolar. Densas florestas de ciprestes e coníferas
recobriram as encostas de montanhas cobertas de neve que se erguiam até o céu.
Gaivotas e mergulhões voavam ao longo da costa onde o mar tocava a terra. Por
toda parte, Li Li via os sinais da presença do seu povo: dos grandes templos
dominando as encostas das colinas até os marcos ao longo das estradas. Este
lugar, onde quer que fosse, já era o lar dos pandarens há muito tempo.
Li Li
flutuou lentamente para cima, vendo a névoa prateada se enfunar em direção ao
centro da região, rolando para o mar, ficando mais espessa até obscurecer
completamente a terra abaixo. Voando pelo céu, Li Li via o sol se pondo no
horizonte oeste, sua luz vermelho-dourada brilhando na superfície do oceano.
Estrelas já piscavam no leste e as luas gêmeas de Azeroth brilhavam em suas
últimas fases.
Uma
lição de geografia de anos atrás surgiu em sua memória: grandes extensões do
oceano sul eram virtualmente não navegáveis, sendo perpetuamente cobertas de
névoa densa. Shen-zin Su evitava essas áreas.
Uma
terra desconhecida de montanhas, florestas e campos, escondida entre as densas
brumas dos Mares do Sul, mas povoada com sua gente?
Pandária.
Assim
que o pensamento surgiu em sua mente, a visão começou a se esvanecer,
desintegrando-se rapidamente diante dos seus olhos. Li Li piscou e o céu sumiu
junto com a sensação de flutuar, e mais uma vez ela se viu parada no meio da
Biblioteca-mor, olhando para a superfície brilhante da pérola gigante que ela
segurava nas mãos.
Pandária...
a lendária terra natal do seu povo, o lugar que Liulang e seus seguidores
deixaram para trás em busca de uma vida mais empolgante nas costas de Shen-zin
Su. Pandária existia realmente? A maior parte dos pandarens da Grande Tartaruga
imaginavam que Pandária já há muito havia sido destruída pela guerra ou por
doenças, ou... por qualquer outra coisa. Senão, eles já a teriam visto a essa
altura. Não é?
Li Li
virou a pérola em suas mãos lentamente. O mundo tinha muitos segredos, e a
magia podia fazer muitas coisas.
— Eu
preciso encontrar Pandária —sussurrou. — Foi por isso que eu tive essa visão,
não foi? Wanyo não viu isso, nem os Anciãos. Nem mesmo meu pai ou tio Chen. Só
eu.
As
cores da pérola se mexeram outra vez, e Li Li interpretou aquilo como um bom
presságio.
—
Você vem comigo —disse a pandarena, carregando a pérola debaixo do braço. Era
meio desajeitado, mas ela poderia guardá-la em uma mochila ou algibeira de
viagem. Rapidamente Li Li saiu da biblioteca, indo para casa. Ela tinha tanto a
preparar, e o tempo era tão curto. Quanto tempo ela tinha passado dentro da
visão?
Uma
vez ela partira atrás de Chen e o encontrara, embora isso tivesse custado um
preço terrível: a vida de Bô. O coração de Li Li martelou em seu peito. Ela não
repetiria seus erros. A missão dela era clara.
* * *
Roupa
extra, o diário com mapas copiados e anotações, comida roubada da cozinha,
vários badulaques que ela achava que seriam úteis, e por último, a pérola. Li
Li a enrolou reverentemente em um pano e a deixou por cima das outras coisas na
mochila. Era tudo de que ela precisava para começar a jornada. A pandarena
afivelou uma bolsinha cheia de pó encantado (algo sempre útil) e deu uma última
olhada no quarto, se perguntando se tinha esquecido alguma coisa. Li Li viu que
tinha tudo na mochila, e foi até a penteadeira, pegando o apito de garça da
gaveta e pendurando-o no pescoço junto com o colar de contas draeneicas que
Chen lhe dera de presente. Ela esfregou os cordões dos colares juntos para dar
sorte.
— Só
falta uma coisa —disse baixinho.
Li Li
já tinha escrito uma carta assim para o pai uma vez, e as palavras vieram
facilmente. A caneta-tinteiro deslizou pela página.
Queridos
papai e tio Chen,
Quando
vocês estiverem lendo isso, eu já estarei a caminho de Altaforja. Shen-zin Su
não é lugar para mim. Eu já venho dizendo isso há anos.
Tio
Chen, encontrar o senhor foi como solucionar um grande mistério. Mas ainda há
um outro mistério a resolver, um muito maior. A pérola de Wanyo me mostrou como
resolvê-lo, então é isso que eu vou fazer. Ninguém vai se machucar dessa vez,
eu prometo. Quando eu vir vocês de novo, vocês não vão acreditar no que eu
terei encontrado!
Li
Li
* * *
Longe
do centro da cidade, Li Li levou o apito aos lábios e soprou uma nota aguda e
clara. Ela só teve que esperar alguns instantes, e logo ouviu o rufar de penas
próximas. Sua velha amiga Garça pousou junto dela. O grande pássaro virou a
cabeça de lado e a examinou com olhos negros e profundos. Li Li sorriu
timidamente.
—
Você provavelmente diria a mesma coisa que o papai. Mas eu não posso ficar aqui
parada esperando o mundo vir até mim. Eu tenho trabalho a fazer.
A
Garça arqueou o pescoço e grasnou para ela, batendo as asas e mudando o peso de
uma perna esguia para a outra.
— Vá
em frente, pode rir. — Li Li revirou os olhos. A Garça grasnou com alegria
novamente e desceu até o nível do chão, permitindo que Li Li subisse em suas
costas com facilidade. Quando Li Li se ajeitou, a garça pulou para o céu de uma
vez, subindo rapidamente com uma poderosa sacudida de asas.
—
Pandária fica ao sul — orientou Li Li, mais alto que o vento, enquanto apertava
o rosto contra o pescoço da Garça —, escondida em meio a uma densa névoa.
A
Garça empinou para diante, quase derrubando Li Li no oceano.
— Gróonk?
— O
que foi isso, seu pássaro doido? — Li Li se agarrou às penas do pássaro, e a cabeça
voltou a doer com o movimento súbito. — É claro que não é para você me levar
até lá direto! Eu vou precisar de mantimentos e comida para vários dias, ora
bolas!
A
garça não pareceu se convencer.
— Gróoonk?
— Uma
aeronave! — Li Li sorriu. — E eu conheço uma pessoa que já me emprestou uma.
— Grooooooooooonk?
—
Altaforja! Rei Magni! Você vai ficar tagarelando o tempo todo? Vamos lá,
voando, voando!
* * *
— A
culpa é sua.
Chon
Po brandiu a carta de Li Li na frente do rosto de Chen como uma faca, seus
olhos vermelhos de fúria. Chen balançava o corpo, apoiando-se ora num pé, ora
no outro.
— A
vida toda sempre foi tio Chen pra cá, tio Chen pra lá e "ah, seria tão bom
conhecer o mundo com o tio Chen!" — Chon Po andava de um lado a outro, e a
raiva transparecia em sua postura. E nada conseguia desfazer essa ilusão! Ah,
não... ela só via a aventura, o romance. Por causa das suas
cartas, Irmão.
Chen
respirou fundo. Chon Po estava irredutível, e ele preferiu deixá-lo reclamar à
vontade, se perguntando o quanto da reprimenda era dirigida à filha e quanto ao
irmão.
— …enchendo
a cabeça dela com falsas esperanças! O que ela acha que vai encontrar lá fora
que nós não temos aqui?
"Para
começar, ingredientes decentes para fazer cerveja", Chen pensou, encarando a parede atrás do irmão. Ele
quase sorriu. De repente o rosto furioso de Chon Po se aproximou, assustando-o.
—
Você não tem nada a dizer?
—
Chon Po, eu não sei o que dizer. Eu não disse a Li Li para ir a lugar nenhum.
— É
como se tivesse dito! — gritou Chon Po. — É o que você vem dizendo a ela
implicitamente por anos e anos! Ela idolatra você, e agora saiu nessa busca
idiota por sei lá qual "grande mistério"! É sua responsabilidade
trazê-la de volta dessa tal de — ele verificou na carta novamente —
"Altaforja".
Na
verdade, Chen se preocupava com a sobrinha. Ela era jovem demais para estar
sozinha no mundo, e se sua memória não falhava, o "grande mistério"
era encontrar Pandária, algo que ele nem sabia se era possível. Além disso, ela
levara a pérola, e uma naga já a havia caçado por causa daquele item. O perigo
parecia provável. E também, dava para fazer uma cerveja fantástica com as
abóboras de Ventobravo.
—
Tudo bem, Po, eu irei atrás dela —concordou Chen. — Mas ela é um indivíduo, e
eu não irei forçá-la a voltar comigo.
Chon
Po fungou. — Ela é uma criança, Chen.
Chen
sacudiu a cabeça.
—
Menos criança a cada dia que passa, Po. Eu partirei assim que for possível.
— Quanto mais rápido melhor. —
Chon Po cruzou os braços. — Nem imagino em que encrencas ela pode estar se
metendo agora...
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