quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Busca por Pandaria Parte 1



— E bem quando o vagão começou a subir, um goblin verde feioso pulou em cima de mim! — Li Li Malte do Trovão encurvou os dedos perto do rosto, fazendo sua melhor imitação de um goblin rosnante. Ela se inclinou na direção do grupo de jovens pandarens espalhados pela colina, querendo chamar a atenção deles.
Uma jovem pandarena rolou de lado, roncando alto. Um pouco de baba escorria-lhe do canto da boca, molhando o pelo branco da bochecha. Outro pandaren ergueu a cabeça, os círculos negros em redor dos olhos aparecendo rapidamente por cima do livro antes de desaparecerem novamente. Um terceiro bocejou abertamente. Em volta de Li Li, o tédio transparecia na expressão dos filhotes pandarênicos que a ouviam. Até Shisai, o irmão dela, a ignorava com afinco, arrancando talos de grama e dando nós neles.
— Mas aí eu chutei o goblin bem no peito, e ele caiu do vagão e bateu na parede. E ele explodiu! Fez CABUM! ― Alguém tossiu. — Tá, a poção dele explodiu — corrigiu-se Li Li, levantando a voz. — Mas foi muito legal!
— Tá, a gente já sabe, Li Li — disse um filhote, enquanto desenhava arabescos no chão com o dedo. — Você já contou isso um bobilhão de vezes.
— Chen, por que você não conta uma história pra gente? — implorou outro filhote.
— Hum? —respondeu Chen, enquanto organizava algumas canecas de cerâmica em uma manta sob os ramos de uma grande magnólia, cujos galhos filtravam a luz da tarde em borrões dourados que salpicavam vários grupos de pandarens fazendo piquenique. Era um dia cálido e perfeito, e quase todo mundo tinha decidido passar o tempo no topo da grande carapaça de Shen-zin Su, tomando banho de sol e descansando.
— Conta daquela vez que você competiu com quatro anões no Ninho da Águia para ver quem bebia mais!
— Ei, eu estava contando uma história para vocês! — disse Li Li, visivelmente irritada. — Quando eu estive em Altaforja, eu me encontrei com o Rei Magni, e...
O pandinha revirou os olhos e disparou:
— Li Li, você só fala desse rei Magni! A gente pediu para o Chen!
Li Li bufou e abriu a boca para protestar.
— Ora essa, Li Li conhece muitas histórias boas — intercedeu Chen. — Mas você errou numa coisa, pequeno Pandawan. — Chen deu uma piscadinha matreira. — Eram cinco anões. ― Os outros pandinhas riram com gosto, mas Li Li fez uma careta. Chen não pareceu notar.
“Falando de beber, vocês estão me fazendo esquecer meus bons modos. Sinto muito que a cerveja não seja melhor — desculpou-se Chen para um grupo de pandarens adultos, enquanto enchia as canecas. — Infelizmente não há muitos ingredientes de cervejaria na Grande Tartaruga.”
— Tenho certeza de que está deliciosa, Chen — respondeu uma das anciãs, aceitando a bebida graciosamente. — É tão bom ter nosso maior cervejeiro de volta! Nós todos sentimos sua falta.
— Vocês são gentis — agradeceu Chen, sorrindo.
— Chen, anda, vem contar uma história pra gente! — choramingou um pandinha.
— Em um minuto. Antes deixem-me servir seus pais. Então eu farei um chá para vocês e poderemos contar histórias.
— Uma vez um ogro quase me comeu — começou Li Li. — Nossa, foi tão assustador.
A gente sabe, Li Li! Dá para ficar quieta? — gritou outro pandinha. — Chen tem um monte de histórias que a gente ainda não ouviu.
— Ah, eu desisto! Vão, continuem importunando meu tio — resignou-se Li Li. A jovem pandarena olhou para Chen ansiosa, esperando que ele lhe desse a deixa para contar as histórias, mas o tio já tinha ido para outra parte da colina, absorto numa conversa. Li Li então resolveu mudar de tática. — Ou então quem sabe vocês possam me contar alguma história. Que tal? Uma história sobre passar os dias colhendo flores na colina e levando bomba na prova de caligrafia... Nossa, é tão empolgante...
Vários pandinhas protestaram com veemência e parecia que a discussão ia piorar.
— Ei, pandinhas! —interrompeu Chen, bem a tempo. — Quem quer chá?
Um coro de "Eu, eu!" ecoou em resposta, e Li Li se viu sendo ignorada, pois a oferta de Chen atraiu a atenção de todos. A pandinha aproveitou para sair da encosta da colina. Quando saiu do campo de visão dos pandarens fazendo piquenique, ela suspirou e olhou para o céu. Nuvens fofas passeavam lentamente, tapando o sol de vez em quando e inundando o cenário de luz ao se desfazer.
Li Li continuou seu caminho, descontando a frustração chutando pedrinhas soltas e seguindo-as na descida pela ladeira adiante. Desde que Li Li retornara de suas viagens com Forte Bô, a vida se tornara cada vez mais entediante. Chon Po, o pai dela, ficara aliviado e furioso ao revê-la, e os extremos daquela gangorra emocional pareciam ter se exacerbado quando Chen explicou com detalhes o destino de Bô.
O coração de Li Li pesava no peito quando ela pensava em Bô. Chen lhe garantira que a morte de Bô não fora sua culpa, e num nível intelectual Li Li entendia isso. Mas a voz calma e cruel em sua mente nunca a deixava esquecer que, se ela não tivesse decidido abandonar Shen-zin Su, a Grande Tartaruga, então Bô talvez ainda poderia estar vivo.
Li Li voltou ao presente, tentando esquecer a culpa, e notou que, inconscientemente, tomara o caminho para a Biblioteca-mor. A jovem olhou para o elegante templo que abrigava a biblioteca e seu ânimo melhorou. A biblioteca sempre fora seu lugar de refúgio, onde ela podia se perder nas páginas de um livro ou carta, e isso era justamente o que ela precisava naquele momento. Li Li entrou com alegria.
Lá dentro, o cheiro familiar e reconfortante de tinta e pergaminhos a acalmaram. Li Li pegou um atlas grosso e uma pilha de cartas amarrotadas das estantes e se sentou em uma cadeira estofada. Colocando os pergaminhos em uma mesa próxima, ela deixou o livro se abrir numa página ao acaso.
O Pântano das Mágoas se espalhava pela página, pintado em elegantes tintas verdes e marrons. O mapa era antigo e Li Li o conhecia praticamente de cor, tendo há muito copiado a maior parte dele, e de muitos outros, para o diário que mantinha em casa. Li Li se apoiou na mesa de leitura, folheando os papéis até encontrar o que procurava.
A carta de Chen detalhava a exploração da terra que já fora a região sul do Pântano das Mágoas, agora chamada de Barreira do Inferno. Em tempos recentes, magia vil se infiltrara por uma fenda entre os mundos e asfixiara a flora luxuriante, deixando apenas terra vermelha e árida em seu lugar. O texto explicava que a fenda fora aberta por um mago imensamente poderoso chamado Medivh, que tivera ajuda dos orcs no outro mundo. A carta não falava mais do que isso, e nenhum documento na biblioteca mencionava a Barreira do Inferno ou Medivh. Ele devia ter nascido bem depois que os companheiros de Li Li em Shen-zin Su já haviam abandonado seu legado de exploração intrépida. Li Li se perguntou como seria um mapa moderno do pântano. As cartas de Chen estavam desatualizadas havia vários anos, e o retorno dele significava que não haveria novas notícias do mundo exterior.
Li Li folheou as cartas novamente, sem ânimo, mas as palavras já não a interessavam. Elas permaneciam estáticas, a tinta desaparecendo lentamente dos registros de tudo que Chen vira outrora. Li Li sabia que, além do isolamento de suas vidas na Ilha Errante, o mundo continuava a mudar sem eles.
Ela fez cara feia enquanto devolvia os papéis às prateleiras. A jovem pandarena se sentia como se, sofrendo de inanição, tivesse se sentado em uma mesa de banquete apenas para ver a comida desaparecer após a primeira mordida. O mundo era tão maior e mais bonito do que quaisquer mapas ou palavras seriam capazes de comunicar, e ela mal arranhara sua superfície. Não havia nada para ela em Shen-zin Su.
* * *
— Esta noite nós temos muita coisa boa! Sopa de espinafre e cenoura com galinha, peixe no vapor e arroz, é claro — disse Chon Po alegremente para Li Li, Shisai e Chen, enquanto preparava a mesa de jantar. — Me digam o que vocês acham da sopa, principalmente. É uma receita nova.
— Parece uma delícia, Po — comentou Chen. — Obrigado por me convidar.
Chon Po olhou orgulhosamente para suas criações e se sentou à mesa.
— O dia de vocês foi bom? — perguntou. — O tempo estava ótimo. Eu queria ter ido ao piquenique.
— Nós sabemos que o senhor está ocupado, Papai —respondeu Shisai, se servindo do peixe. — Mas foi bem divertido, sim!
— Não foi nada demais — desdenhou Li Li, dando de ombros.
Shisai revirou os olhos e disse:
— Você está zangada porque ninguém quis ouvir as suas histórias. As do tio Chen são melhores mesmo, não são, tio Chen?
— E-err... — Chen hesitou, se servindo de sopa. Li Li olhou para o irmão enquanto enfiava arroz na boca estouvadamente.
— O tio Chen nos contou da vez que ele quase matou o grande mestre de feras Rexxar! —continuou Shisai, ignorando o desconforto de Chen e de Li Li.
— O quê? — disse Chon Po, e suas sobrancelhas se ergueram, sobressaltadas. — Isso me parece algo violento demais para contar às crianças, Chen.
— Hum, bem... há um pouco de exagero nisso, Po. — minimizou Chen, coçando a nuca. — A história é sobre exageros, na verdade. O que aconteceu é que ele bebeu da minha cerveja e a achou tão forte que me acusou de tentar matá-lo! — Chen riu, sem graça. — Viu? É... é engraçado, não é...?
Chon Po permaneceu com a expressão impassível.
— Mas não é assim que termina! —insistiu Shisai. — Vocês dois foram até Theramore para lutar com o almirante Proudmore e...
— Já chega! — Chon Po interrompeu o filho e olhou para o irmão com raiva. — Você precisa pensar no exemplo que está dando, Chen! Veja o que aconteceu com Li Li, e olha que tudo o que ela tinha de você eram as cartas!
— Nada aconteceu comigo, papai — murmurou Li Li. — Eu estou bem aqui, está vendo? E eu posso ouvir o senhor.
— Esse tipo de história pode ter sérias consequências, Chen.
— Ei, olhem só pra mim! Ah, vocês não podem olhar, porque eu sou Li Li Malte do Trovão, a pandarena mágica invisível!
— Li Li jamais teria imaginado tanta bobagem por conta própria —continuou Chon Po —, não sem...
— "Bobagem"? Do que o senhor está falando? Não é bobagem! Tem um mundo enorme lá fora enquanto aqui na ilha todos os pandarens estão ocupados demais escondendo as cabeças gordas debaixo de uma carapaça, que nem Shen-zin Su durante uma tempestade, e por isso ninguém se importa!
— Pan'a'ens 'ão 'em ca'apashas, Li Li — comentou Shisai, falando de boca cheia.
É uma metáfora, seu asno!
— Não fale de boca cheia, Shisai! E não xingue seu irmão, Li Li!
Li Li olhou para o pai e o irmão, e continuou:
— Eu não acredito que vocês não fiquem nem um pouco curiosos. Sobre as pessoas do mundo. Sobre as cidades, as terras distantes...
— Nem um pouco, se isso significa quase ser comido por um ogro como você disse, Li Li — retrucou Shisai, e engoliu a comida fazendo barulho. — Quer dizer, as histórias do tio Chen são legais e tudo mais, mas...
— Nossa, mas que peixe delicioso esse que você fez, Po. Muito obrigado pelo jantar! —disse Chen, em voz alta.
Comida de ogro? — Chon Po saltou da cadeira. — Você está inventando coisas para assustar seu irmão? — completou ele, e se inclinou para diante, apoiando-se nas mãos e encarando firme a filha.
— Não! — gritou Li Li, indignada. — Eu não inventei nada! Quer dizer... eu... bom, eu fui capturada pelo ogro, mas a parte do "quase devorada" foi um pouquinho de exagero...
— JÁ CHEGA! — rosnou Chon. — Veja se pode! Você fala que nada aconteceu com você? E ser capturada por um ogro não é nada?? E você ainda insiste em ficar tagarelando sobre o mundo lá fora? Você não aprendeu nada com a morte de Bô?
Todos congelaram, inclusive Shisai. Li Li abaixou a cabeça e encarou o prato, fechando os olhos ao sentir a pontada da culpa perfurando seu coração.
— Isso não foi culpa dela, Po. — retrucou Chen, calmamente.
— Não —concordou Chon Po, olhando fixo para Li Li —, mas se ela não tivesse fugido, isso não teria acontecido.
Lágrimas fizeram arder os olhos de Li Li. Quantas vezes ela mesma já pensara aquilo? A pandinha rilhou os dentes, humilhada e furiosa, e pensou, "Não vou chorar. Não vou chorar. Não vou..."
— Chon Po, não foi você que enviou Bô atrás de Li Li?
O que você quer dizer com isso, Chen?
Chen suspirou e disse:
— Só estou dizendo que especular sobre "e se" é uma perda de tempo. Li Li não pôde prever o futuro... e nem você.
— Não? — disse Chon Po, voltando a raiva contra o irmão. — Alguma coisa assim já aconteceu conosco aqui em Shen-zin Su? Nosso lar é o lugar mais seguro...
— Já, sim —interrompeu Chen com firmeza. — Aconteceu com Xiu Li.
À menção da mãe de Li Li e Shisai, o clima ficou ainda mais desconfortável. Chon Po baixou a cabeça, tremendo de raiva.
Implacável, Chen continuou:
— E Wanyo está sumido há um bom tempo. Ele provavelmente está morto.
— Onde você está querendo chegar? — perguntou Chon Po, rosnando e erguendo o rosto para encarar Chen.
— Barcos de pesca partem, mas nem todos voltam. Como Wanyo, como... sua esposa. Como pode acontecer com qualquer um de nós, Po. Riscos sempre existirão, não importa onde estivermos. Você não pode controlar isso.
Lenta e silenciosamente, Chon Po se sentou, espumando de raiva.
— Papai — arriscou Li Li — Eu quero ver o mundo. Eu vou tomar cuidado...
Você é uma grande tola só por pensar nisso! — interrompeu Chon Po, batendo com o punho na mesa e fazendo tremer os pratos de cerâmica. — O mundo é um lugar perigoso, como o seu querido tio Chen acaba de nos lembrar. Você é uma criança. Você quer acabar igual ao Bô? Ou à sua mãe?
— Chon Po! — repreendeu Chen, veemente, mas já era tarde. Li Li saíra correndo, engolindo um soluço. E a porta do seu quarto bateu com força no andar de cima.
Chen olhou para Chon Po do outro lado da mesa, cruzando os braços em desafio. O queixo altivo de Po praticamente desafiava Chen a contrariá-lo.
— Você pode me ouvir um minuto? —perguntou Chen, tão polidamente quanto pôde, fazendo um gesto na direção da cozinha.
— Está bem. — Chon Po se levantou bruscamente e marchou para o outro cômodo, e Chen o seguiu de perto.
Sozinho à mesa, Shisai pescou um pedaço de cenoura da sopa e mastigou lentamente. Ele olhou para a cozinha, depois para as escadas que levavam ao segundo andar. E engoliu.
— Puxa, que constrangedor —disse ele para ninguém ouvir, e depois voltou a encher o prato.
* * *
Chen quase empurrou Chon Po pela porta dos fundos até a varanda coberta que se estendia atrás da casa.
— Você está sendo injusto com Li Li —disse Chen. — Não é mau que ela queira viajar.
— É perigoso! —replicou Chon Po. — Mais perigoso que ficar aqui, não importa o que você diga! Xiu Li e Wanyo partiram, mas por causa de acidentes. Bô foi morto! Você quer que Li Li morra também?
— Pare de falar como se isso fosse algo inevitável! Ela não poderia ter previsto o que aconteceu! Os agressores procuravam a tal Pérola de Pandária... ou sei lá o que eles pensaram que Wanyo tinha encontrado. E eles pensaram que Li Li sabia onde isso estava, só por ser pandarena! E quanto ao orc, ele estava atrás de mim, e se eu tivesse encontrado Bô e Li Li mais cedo...
— Tudo o que sua história prova é que para os inimigos, todo pandaren é presa fácil. Chon Po andou de um lado para o outro sob as lanternas cuja luz alaranjada intensificava a expressão furiosa do seu rosto. — Li Li está a salvo aqui, mais do que em qualquer outro lugar!
Chen sacudiu a cabeça.
— Você não pode forçá-la a ficar se ela não quiser; isso ela já provou. Você não pode protegê-la para sempre, e tentar fazer isso só vai sabotar sua causa.
— Bom, então você sabe como criar meus filhos melhor do que eu, é isso? — zombou Chon Po.
— Não, Chon Po, eu só estou dizendo que eu sei como ela se sente. Quando eu tinha a idade dela, nada que nossos pais dissessem conseguia me fazer mudar de ideia. Por que você acha que o que você diz conseguiria mudar a cabeça dela? Li Li fará as próprias escolhas.
— As próprias escolhas ruins. Correndo direto para o perigo, abandonando a família, deixando as responsabilidades para trás... — Chon Po começou a enumerar nos dedos as falhas de Li Li, uma a uma. — Nós só sabíamos se ela estava viva ou morta por alguma carta que chegava de vez em quando...
Chen cerrou as sobrancelhas.
— Nunca estabelecendo uma família só dela...
— Po, como você sabe que ela não fará isso um dia? —perguntou Chen, pasmo.
Chon Po pareceu não tê-lo ouvido.
— Sem sequer aparecer para o casamento do irmão...
— Com quem Shisai está se casando? Eu não entendo o que você quer dizer... — Chen se deteve no meio da frase, ao entender finalmente. Ele ficou parado olhando para lugar nenhum por sobre o corrimão da varanda, a mente subitamente serena enquanto as peças se encaixavam. Sem perceber, Chon Po continuou a listar as transgressões de Li Li.
— Você está falando de mim — disse Chen, calmamente. — Não é, Chon Po?
Chon Po se calou de repente, e ficou parado onde estava sem ousar encarar Chen. O tempo foi passando enquanto Chen se preparava para a salva de palavras furiosas que o irmão com certeza já vinha guardando dentro de si há muitos anos.
— A conversa acabou.
Chon Po voltou para casa pisando forte e fechou a porta atrás de si.
* * *
O sono não veio fácil para Li Li aquela noite. Ela se virou e revirou, e as palavras afiadas do pai cutucavam sua consciência sem descanso. Finalmente, quando o céu cada vez mais claro anunciou a chegada da aurora, ela desistiu, saiu da cama e se vestiu.
Sobre a penteadeira estava um pequeno pote de argila parecido com aqueles que Bô outrora enchera de água e pendurara nas pontas dos cajados de treinamento de equilíbrio e postura de Li Li. Ela o examinou detidamente nas mãos, sentindo o peso familiar, e o guardou na túnica, enquanto saía de casa.
Àquela hora, Shen-zin Su estava tão quieto que Li Li pensou ouvir as gotas de orvalho estourando sob seus pés. Na pouca luz, as teias de aranha se estiravam entre os galhos das árvores feito renda brilhante. Enquanto caminhava, Li Li se abaixava para colher grupinhos de flores coloridas das rachaduras do chão, juntando os botões em dois buquês improvisados.
No final da trilha, protegida por muralhas e pelo orgulhoso leão Guardião, o glorioso Bosque dos Cajados se espalhava diante dela. Qualquer pandaren que desejasse entrar no belo bosque tinha que derrotar o Guardião em combate, algo que Li Li conseguira há muitos anos. O Guardião inclinou a cabeça na direção dela, afastando-se para deixá-la passar, e ela retribuiu o cumprimento respeitosamente. Fazia tempo que Li Li não visitava o bosque, bem conservado como sempre e cuidado por um pequeno exército de jardineiros. Pouco depois do nascer do sol eles chegariam para varrer qualquer sujeira que o vento tivesse levado aos mausoléus durante a noite, mas Li Li estava sozinha por enquanto, e feliz por isso.
Xiu Li, a mãe de Li Li e Shisai, morrera num acidente de pesca quando eles eram pouco mais que recém-nascidos. Li Li não tinha muitas lembranças de Xiu Li, e embora a jovem raramente sentisse diretamente a falta da mãe, a ausência às vezes fazia seu coração doer agudamente. Ela se ajoelhou em frente ao mausoléu da família Malte do Trovão, depositando um dos pequenos buquês no altar.
— Mamãe, eu sinto tanto sua falta... — A respiração de Li Li se evolava no ar da manhã. — O papai não entende; ele nunca entenderá. E o tio Chen não quer deixar o papai zangado. — A pandarena hesitou, quase temendo falar alto, embora o bosque se encontrasse deserto. — A senhora entenderia, não é, mamãe? Eu não posso ficar aqui pra sempre. Eu não posso.
Li Li se sentou na grama e abraçou as pernas dobradas na altura do peito. Ela enfiou a cabeça entre os joelhos em contemplação serena, escutando os pássaros chilreando as primeiras canções da manhã, empoleirados nos galhos da grande árvore no topo da colina. Antes que suas pernas ficassem dormentes, Li Li se levantou, fez uma última reverência e continuou pelas filas de memoriais até seu próximo destino.
O mausoléu da família Forte Bô ficava mais para o alto da colina, sob os galhos espraiados da árvore gloriosa. Um nó endureceu na garganta de Li Li, e as palavras do pai retornaram com clareza dolorosa.
"Você não aprendeu nada com a morte de Bô?"
Ela colocou o pequeno pote de argila diante do mausoléu e arranjou o segundo buquê de flores dentro dele, novamente ficando de joelhos.
— Se eu pudesse trazer você de volta, Bô, eu traria. Ou então eu teria feito outra coisa. Eu teria ido para algum lugar onde aquela naga horrenda e seu bruto orc não teriam nos encontrado. Mas eu não teria deixado de partir. ― Ao admitir isso, uma lágrima rolou pela face de Li Li, molhando seu pelo. A pandinha continuou:
“Eu tinha que ir embora. Ficar aqui me deixa louca. Talvez isso faça de mim uma pessoa ruim. É o que o papai parece pensar. Mas eu tenho mais medo do que pode acontecer comigo se eu ficar aqui do que se eu for embora. Espero que isso não seja um insulto à sua memória, Bô. Eu só quero fazer o que é certo pra mim. Eu sinto tanto... — As palavras dela se apertaram contra sua garganta contrita. — Eu não queria que ninguém se machucasse. — Li Li inclinou a cabeça, como fizera no altar da mãe, e recitou uma oração aos mortos.
“Fique em paz — encerrou Li Li, e se levantou. A pandarena olhou para o céu, dourado e róseo com a luz da aurora, e viu a borda laranja do sol surgindo no horizonte ao leste. Deu batidinhas na barra da saia e olhou para seus pés. Seu coração ainda doía, e ela não tinha vontade de voltar pra casa. Ainda era cedo, mas havia uma boa chance de Chen já estar acordado.
* * *
Ele abriu a porta na quarta batida.
— Li Li? — disse Chen, piscando surpreso. — Entre! Deixe-me preparar algo para você comer.
Li Li entrou no pequeno chalé atrás dele e se sentou à mesa da cozinha enquanto Chen se ocupava em preparar a refeição.
— Desculpe vir chatear o senhor tão cedo, tio Chen.
— Ora, problema nenhum! — afirmou ele, sua voz soando abafada atrás da porta de um armário. — Eu estava terminando de preparar meu último projeto de cerveja. Infelizmente não há muita variedade de ingredientes por aqui, mas vamos ver como isso vai.
Li Li ficou sentada em silêncio, mexendo nas mangas do vestido enquanto Chen preparava mingau no fogão.
— Você ainda está zangada com o que aconteceu ontem à noite? —perguntou Chen, mexendo o mingau com uma colher de cabo longo.
— Eu nunca quis que nada acontecesse com Bô —murmurou ela, encarando a mesa.
— Eu sei, Li Li. E seu pai também sabe. Ele só é...
— Um grande cretino — disse Li Li, e fungou.
—Teimoso... — completou Chen, diplomaticamente, pensando na conversa que tivera com Chon Po na varanda.
— Eu não gosto de aborrecer o meu pai —admitiu Li Li, enquanto Chen colocava uma tigela diante dela e se sentava do outro lado da mesa. — Mas aqui eu me sinto muito triste. E... — Li Li aumentou a voz. — A vida é uma aventura! Ou pelo menos devia ser. Mas não é. — A pandinha hesitou e enfiou a colher na tigela. — Pelo menos não aqui.
Chen deu tapinhas no ombro dela e consolou:
— Tudo bem, Li Li.
— Venha comigo, tio Chen.
— O quê?
— Lembra quando nós falávamos de viver aventuras juntos? Vamos lá! eu ficaria segura com o senhor, e o papai sabe disso. Vamos ver o mundo!
Chen abriu a boca e depois hesitou. Os olhos ávidos de Li Li examinavam sua expressão, mas os segundos se passaram e ela percebeu que a resposta que ouviria não era a que ela queria.
— Você concorda com o papai, não é?
— Não se trata disso —respondeu Chen. — Eu acho que vocês dois tem razão em certos pontos. Mas quanto a mim... — O pandaren olhou para sua casinha, para as panelas penduradas sobre o fogão; as prateleiras cheias de pratos, pergaminhos e decorações; a mobília confortável. E sorriu. — Eu estou feliz aqui. Eu passei tanto tempo na estrada, sem um lar para chamar de meu. Isso aqui para mim é novidade. Para mim, isso aqui já é uma aventura nova.
— O senhor só pode estar brincando... — duvidou Li Li, tomando um bom gole do mingau e então empurrando a tigela para longe, sem terminar a comida. A única pessoa ali que a entendia havia desistido. Ela foi traída.
— Eu sei que você não vê as coisas como eu, Li Li. Você ainda é jovem...
Eca, agora o senhor está falando igualzinho ao papai. Quando é que o grande aventureiro Chen Malte do Trovão ficou tão chato? — Li Li disse a última palavra com um tom de acusação.
— As coisas mudam, Li Li. — Tudo no comportamento de Chen transparecia uma paciência calma e enfurecedora. — Eu já viajei o que tinha que viajar. E estou pronto para algo diferente.
— Bom, eu não viajei o que tinha que viajar. E se depender do papai e do senhor, eu nunca vou fazer isso! Vou crescer, ficar velha e acabada e passar os dias fazendo chá e falando do tempo, e minha vida vai ser jogada fora!
— Li Li, você sabe que isso não é verdade.
— Não fale mais comigo. Você está do lado dele! — Li Li se levantou e saiu da casa estouvadamente. Chen reclinou a bochecha na palma da mão e deu um meio sorriso enquanto a observava se afastando.
— Nós Maltes do Trovão somos um bando de cabeças-duras —disse ele para si mesmo.
* * *
Plonc. A pedra atingiu a superfície do oceano com um baque pesado. Plonc. Plonc. Plonc. Li Li arremessou mais pedras na água, mas a satisfação do gesto era fugaz. Sentindo-se derrotada, sentou-se de chofre.
Aquele era um dos seus locais favoritos em Shen-zin Su. Bem na frente da carapaça, Li Li podia balançar as pernas acima do ponto em que o grosso pescoço da tartaruga desaparecia na água, e olhar para a distante linha azul-cinzenta do horizonte onde o mar parecia se unir ao céu. Há muito tempo, o famoso viajante Liulang fundara a colônia em Shen-zin Su para levar os mais bravos e audaciosos pandarens por Azeroth em busca de aventura e conhecimento. Mas a curiosidade há muito se tornara complacência, deixando aqueles dias perdidos nos anais da história.
— Eu odeio isso — desabafou Li Li. — Quando eu estava viajando, antes de eu e Bô nos metermos em encrenca, as coisas pareciam estar certas. Aqui eu não vou conquistar nada. Nada contra você, Shen-zin Su. — Li Li bateu na carapaça da tartaruga levemente. — Mas há tanta coisa para fazer por aí! Ver Ventobravo e Altaforja... eu jamais conseguiria sequer imaginar esses lugares, nem com todos os mapas e cartas do mundo. O Rei Magni foi tão bom pra mim! Ele me mostrou a casa dele. Eu queria poder mostrar algo pra ele também, mas não pude. Chen decidiu que aqui agora é o nosso lar. Bom para ele. Desculpe, Shen-zin Su. Eu amo você, mas nunca me senti em casa aqui. Será que existe algum lugar que eu um dia vou poder chamar de lar?
Li Li não esperava uma resposta à sua pergunta, então, ao ouvir a Grande Tartaruga tremer e soprar bolhas na água à sua frente, a pandarena ficou momentaneamente paralisada. Ela se perguntou por um instante se o barulho produzido por Shen-zin Su fora uma tentativa real de comunicação, antes de decidir que tinha sido só coincidência. Li Li continuou, entre suspiros:
“Bem que eu queria poder conversar com você. Você provavelmente me ajudaria mais que a minha família. — Desanimada, abaixou a cabeça e uniu as mãos sobre o colo.
O chão sacudiu violentamente, arremessando-a para o lado e lhe ferindo o ombro. Assustada, Li Li tentou se erguer, mas a Grande Tartaruga tremeu de novo e a arremessou para trás. Li Li ficou apertada contra o chão, o coração batendo descompassado enquanto Shen-zin Su subia e descia balançando feito um navio na tempestade. Li Li foi catapultada para a beirada da carapaça, onde tentou se agarrar ferozmente, procurando recobrar o equilíbrio. Abaixo dela as águas se dividiram lentamente, caindo em cascata do forte pescoço de Shen-zin Su enquanto a tartaruga erguia a enorme cabeça.
Sob os pés, Li Li sentiu a tartaruga se encolhendo como um iaque prestes a saltar um obstáculo. Um ribombar alto veio do fundo da sua garganta. Li Li sentia a vibração no corpo mais do que a ouvia. E então, com um grande ímpeto de esforço, Shen-zin Su... tossiu.
Li Li podia jurar que tinha sido isso mesmo que acontecera. A Grande Tartaruga produziu um som profundo e cavo feito uma buzina de barco, e o movimento súbito derrubou Li Li novamente. Estrelas lhe explodiram nos olhos quando sua cabeça bateu contra a carapaça. Segurando as têmporas, Li Li finalmente conseguiu rolar para longe da beirada. O tremor começou a diminuir de intensidade, tornando-se um lento embalo, até que por fim Shen-zin Su se aquietou.
Li Li levantou-se cuidadosamente, preparando-se para outro terremoto. Passou a mão pela cabeça, sentindo o local da pancada latejando dolorosamente. Um galo ia aparecer ali até o final do dia. Fazendo uma careta, a pandarena se perguntou o que teria causado o bizarro acesso de tosse da tartaruga. Shen-zin Su teria engolido uma baleia por acidente?
Ela olhou na direção da água, massageando a cabeça com cuidado. Remoinhos alvos de espuma se pulverizavam contra os lados de Shen-zin Su, prova de que Li Li não imaginara coisas. Com cuidado ela se postou de pé, ainda tonta.
Li Li piscou, sem confiar no que estava vendo. Mais adiante em mar aberto, a pandinha viu uma mancha branca que diferia das outras. Era regular demais para ser a crista espumante de uma onda. Parecia a vela de um pequeno barco de pesca. Li Li apertou os olhos, tentando ver melhor. Ela não tinha se enganado. O barco balançava ao cruzar as ondas e havia marcas pandarênicas claramente visíveis na proa.
O barco se aproximou, diminuindo a velocidade. O mastro estava quebrado, um lado da vela se arrastava, inutilizado, e o marinheiro teimosamente impelia sua embarcação usando um remo. Quando atingiu umas doze jardas de distância, o marinheiro se empertigou, empurrando o velho chapéu de palha para trás. Ele acenou com entusiasmo, chamando Li Li.
— Ora, olá! Nossa, que estranho, quanto tempo não fazia que eu não via o sol. E que céu mais azul! E nem tem cheiro de peixe velho por aqui, é tudo tão fresquinho!
Aquilo deixou Li Li sem palavras. Ela franziu o cenho, perplexa, e observou enquanto o barco deslizava em direção à costa, até bater em terra com um baque macio. O pescador pulou sobre a amurada e acenou novamente, sorrindo. O queixo de Li Li caiu. Ela até esqueceu a dor latejante no lado da cabeça.
Wanyo, o pescador há muito desaparecido, havia retornado.
* * *
— Então esse tempo todo você estava dentro de Shen-zin Su?
— É! —respondeu Wanyo alegremente. — Eu fui engolido. Nunca senti vontade de ir embora.
Li Li apertou o ouvido contra a porta e piscou ao sentir o ponto sensível na cabeça latejando dolorosamente outra vez. Então se afastou um pouco, contrariada, pois não conseguiria ouvir tão bem a conversa de Wanyo com os Anciãos, mas pelo menos a dor de cabeça não voltaria. Pelas ripas de madeira da porta dava para ouvir alguém estalando a língua, e Li Li conseguia imaginar os aborrecidos pandarens sacudindo as cabeças. A pandinha conteve um risinho.
— Bom, independente disso. — Li Li reconheceu a voz de sua avó Mei. — Temos que resolver o que fazer com essa coisa que você trouxe.
— Eu não sei mesmo. — Li Li quase podia ouvir Wanyo dando de ombros. — Quem sabe não é uma bola de cristal mágica. Ela sempre me mostrou onde era o melhor lugar para pegar peixe... bom, era sempre onde eu já estava, né, na tartaruga mesmo! — Wanyo riu.
Alguém murmurou algo que Li Li não pôde ouvir direito, mas ela achou que devia ser algum comentário irônico, pois risadinhas e fungadas se seguiram.
— Não se parece com uma bola de cristal nem com qualquer outro artefato mágico que eu já tenha visto — falou a voz de Chon Po, e Li Li ficou rígida de susto, sentindo o coração bater violentamente contra as costelas. Ele ficaria furioso se a surpreendesse bisbilhotando a reunião.
Chen falou em seguida.
— Parece é com uma pérola gigante. — Havia um quê de sinistro naquelas palavras, e Li Li pensou que sabia o que se passava pela cabeça do tio: a chamada Pérola de Pandária, o item que a sereia naga Zhahara acreditava estar com Wanyo. Será que ela estava certa?
— Eu a peguei de um murloc, acreditam? — Wanyo riu de novo. — Se for uma pérola, é uma pérola mágica, pois eu nunca vi uma que dissesse pra gente onde é o melhor lugar pra pescar. — Ele fez uma pausa. — E, bom, por que outro motivo aquela naga louca ia aparecer do nada na hora que eu peguei a pérola?
Os olhos de Li Li se arregalaram. Aquela era Zhahara, com certeza.
— "Naga louca"? —perguntou Chon Po. — Li Li mencionou algo assim para mim uma vez. Conte-me mais, Wanyo.
— Eu tinha saído à noite e peguei o murloc com a pérola nas minhas redes. O coitadinho estava nas últimas, ele que me deu essa coisa. Assim que eu peguei a pérola, a naga saiu da água e mandou um raio pra cima de mim. Quebrou meu mastro! Eu não ia ficar por ali, né, e pedi para alguns amigos do mar virem me ajudar. Um peixão me ajudou a escapar. Deve ter sido um dos pequenininhos que eu joguei de volta na água há muitos anos e que agora estava me pagando o favor!
— E foi aí que Shen-zin Su engoliu você? — Era a voz de Chen.
— Foi. Eu não estava prestando atenção para onde eu estava indo, só queria sair de perto daquela megera escamosa. Daí o peixe saiu do caminho e eu me vi cara a cara com a Grande Tartaruga... e no instante seguinte ela me engoliu.
— Eu tenho mais uma pergunta pra você, Wanyo — continuou Chon Po. — Por que você decidiu abandonar o seu, ahm, local de pesca depois de tanto tempo lá?
— A pérola me falou pra fazer isso.
— O quê?
— Eu olhei nela hoje de manhã quando acordei, como sempre faço. Mas em vez de me mostrar pescando, ela me mostrou velejando de volta pra cidade. Daí eu pensei que tava mesmo na hora de ir embora, pulei no meu barco, e Shen-zin Su me cuspiu.
Chon Po suspirou tão forte que Li Li o ouviu do outro lado da porta. — Muito bem, Wanyo. Isso é tudo, eu acho. Em algum momento teremos que descobrir o que é essa coisa. Por enquanto, sugiro que a depositemos na Biblioteca-mor. Vocês concordam?
Um murmúrio geral de concordância se seguiu à pergunta de Chon Po, e os Anciãos passaram a discutir assuntos mais corriqueiros.
Li Li se afastou rapidamente da porta e saiu correndo dali, passando agachada ao longo da cerca viva até estar longe do Templo das Cinco Auroras. Sua mente estava em turbilhão, analisando tudo o que ela ouvira. A pérola gigante mágica... a Pérola de Pandária? Li Li se sentou sob uma árvore e coçou o queixo, pensativa. Zhahara dissera que a pérola era um artefato antigo e poderoso. Li Li tinha certeza de que aquilo era um mito, e Chen e seu pai também pensavam assim. Mas agora...
As sombras se alongavam na grama ao lado dela. Li Li se levantou e correu para casa. O pai dela não podia suspeitar de nada, de forma que ela precisava agir normalmente, mas sua mente estava a mil, transbordando de ideias.
* * *
Tarde da noite, Li Li desceu silenciosamente as escadas. Ela seguiu pé ante pé pelo saguão e fechou suavemente a porta atrás de si ao sair para o ar livre. Tudo o que importava era chegar à pérola. Ela tinha que ver com os próprios olhos.
A Biblioteca-mor nunca fechava oficialmente, e as pequenas lanternas mágicas alinhadas no saguão se acendiam, obedientes, enquanto Li Li passava apressada. Ela imaginou que a pérola seria exibida com as melhores coleções da biblioteca, e assim ela se dirigiu para a sala de exibições.
E de fato, a pérola se postava altiva num pedestal de madeira no meio da sala, coberta por uma proteção de vidro. Li Li levantou a redoma com cuidado, deixando-a de lado.
A pérola era ainda maior do que Li Li imaginara, quase do tamanho de um melão. Seu brilho opalescente refletia a pouca luz ambiente em um caleidoscópio de arcos-íris embaçados. Li Li contemplou a pérola, extasiada por sua beleza singular. Sem conseguir resistir, ela pegou a pérola com as duas mãos e a trouxe gentilmente até o nível do rosto. A pérola era morna ao toque, e zumbia suavemente com sua própria energia. Como Wanyo dissera, ela era mágica, com certeza.
— Você mostrou a Wanyo onde pescar —sussurrou Li Li para a pérola. — Mas o que você pode mostrar para mim?
Como se só estivesse esperando a deixa, a pérola começou a brilhar suavemente, as cores refletidas na superfície girando juntas velozmente em um vórtice multicor. Li Li sentiu suas pálpebras ficando pesadas, e ela as fechou. Ao abri-las novamente, ela se viu cercada por brumas cinza-prateadas, não mais com a pérola nas mãos, sentindo-se como se flutuasse a meio caminho entre o sonho e o despertar. Aquilo era real?
A bruma começou a se dissipar, revelando uma vista aérea de amplos campos verdes, pontilhados com lindas árvores floridas em pontinhos rosados. Li Li agitou os braços no ar, esperando despencar para o chão, mas não foi o que aconteceu. Aos poucos ela se acalmou, e espichou a cabeça para a direita e para a esquerda. Seu coração batia acelerado de excitamento; a pérola lhe propiciava uma visão.
A cena mudou, focando-se em uma cidade dinâmica, de ruas cheias de pandarens vendendo produtos e vivendo suas vidas. Li Li franziu a testa: ela não conhecia ninguém ali. A arquitetura lembrava os prédios em Shen-zin Su, mas algo parecia diferente. As estradas, o cenário... não eram iguais. Parecidos, mas não iguais.
A vista continuou a se desenrolar. Densas florestas de ciprestes e coníferas recobriram as encostas de montanhas cobertas de neve que se erguiam até o céu. Gaivotas e mergulhões voavam ao longo da costa onde o mar tocava a terra. Por toda parte, Li Li via os sinais da presença do seu povo: dos grandes templos dominando as encostas das colinas até os marcos ao longo das estradas. Este lugar, onde quer que fosse, já era o lar dos pandarens há muito tempo.
Li Li flutuou lentamente para cima, vendo a névoa prateada se enfunar em direção ao centro da região, rolando para o mar, ficando mais espessa até obscurecer completamente a terra abaixo. Voando pelo céu, Li Li via o sol se pondo no horizonte oeste, sua luz vermelho-dourada brilhando na superfície do oceano. Estrelas já piscavam no leste e as luas gêmeas de Azeroth brilhavam em suas últimas fases.
Uma lição de geografia de anos atrás surgiu em sua memória: grandes extensões do oceano sul eram virtualmente não navegáveis, sendo perpetuamente cobertas de névoa densa. Shen-zin Su evitava essas áreas.
Uma terra desconhecida de montanhas, florestas e campos, escondida entre as densas brumas dos Mares do Sul, mas povoada com sua gente?
Pandária.
Assim que o pensamento surgiu em sua mente, a visão começou a se esvanecer, desintegrando-se rapidamente diante dos seus olhos. Li Li piscou e o céu sumiu junto com a sensação de flutuar, e mais uma vez ela se viu parada no meio da Biblioteca-mor, olhando para a superfície brilhante da pérola gigante que ela segurava nas mãos.
Pandária... a lendária terra natal do seu povo, o lugar que Liulang e seus seguidores deixaram para trás em busca de uma vida mais empolgante nas costas de Shen-zin Su. Pandária existia realmente? A maior parte dos pandarens da Grande Tartaruga imaginavam que Pandária já há muito havia sido destruída pela guerra ou por doenças, ou... por qualquer outra coisa. Senão, eles já a teriam visto a essa altura. Não é?
Li Li virou a pérola em suas mãos lentamente. O mundo tinha muitos segredos, e a magia podia fazer muitas coisas.
— Eu preciso encontrar Pandária —sussurrou. — Foi por isso que eu tive essa visão, não foi? Wanyo não viu isso, nem os Anciãos. Nem mesmo meu pai ou tio Chen. Só eu.
As cores da pérola se mexeram outra vez, e Li Li interpretou aquilo como um bom presságio.
— Você vem comigo —disse a pandarena, carregando a pérola debaixo do braço. Era meio desajeitado, mas ela poderia guardá-la em uma mochila ou algibeira de viagem. Rapidamente Li Li saiu da biblioteca, indo para casa. Ela tinha tanto a preparar, e o tempo era tão curto. Quanto tempo ela tinha passado dentro da visão?
Uma vez ela partira atrás de Chen e o encontrara, embora isso tivesse custado um preço terrível: a vida de Bô. O coração de Li Li martelou em seu peito. Ela não repetiria seus erros. A missão dela era clara.
* * *
Roupa extra, o diário com mapas copiados e anotações, comida roubada da cozinha, vários badulaques que ela achava que seriam úteis, e por último, a pérola. Li Li a enrolou reverentemente em um pano e a deixou por cima das outras coisas na mochila. Era tudo de que ela precisava para começar a jornada. A pandarena afivelou uma bolsinha cheia de pó encantado (algo sempre útil) e deu uma última olhada no quarto, se perguntando se tinha esquecido alguma coisa. Li Li viu que tinha tudo na mochila, e foi até a penteadeira, pegando o apito de garça da gaveta e pendurando-o no pescoço junto com o colar de contas draeneicas que Chen lhe dera de presente. Ela esfregou os cordões dos colares juntos para dar sorte.
— Só falta uma coisa —disse baixinho.
Li Li já tinha escrito uma carta assim para o pai uma vez, e as palavras vieram facilmente. A caneta-tinteiro deslizou pela página.
Queridos papai e tio Chen,
Quando vocês estiverem lendo isso, eu já estarei a caminho de Altaforja. Shen-zin Su não é lugar para mim. Eu já venho dizendo isso há anos.
Tio Chen, encontrar o senhor foi como solucionar um grande mistério. Mas ainda há um outro mistério a resolver, um muito maior. A pérola de Wanyo me mostrou como resolvê-lo, então é isso que eu vou fazer. Ninguém vai se machucar dessa vez, eu prometo. Quando eu vir vocês de novo, vocês não vão acreditar no que eu terei encontrado!
Li Li
* * *
Longe do centro da cidade, Li Li levou o apito aos lábios e soprou uma nota aguda e clara. Ela só teve que esperar alguns instantes, e logo ouviu o rufar de penas próximas. Sua velha amiga Garça pousou junto dela. O grande pássaro virou a cabeça de lado e a examinou com olhos negros e profundos. Li Li sorriu timidamente.
— Você provavelmente diria a mesma coisa que o papai. Mas eu não posso ficar aqui parada esperando o mundo vir até mim. Eu tenho trabalho a fazer.
A Garça arqueou o pescoço e grasnou para ela, batendo as asas e mudando o peso de uma perna esguia para a outra.
— Vá em frente, pode rir. — Li Li revirou os olhos. A Garça grasnou com alegria novamente e desceu até o nível do chão, permitindo que Li Li subisse em suas costas com facilidade. Quando Li Li se ajeitou, a garça pulou para o céu de uma vez, subindo rapidamente com uma poderosa sacudida de asas.
— Pandária fica ao sul — orientou Li Li, mais alto que o vento, enquanto apertava o rosto contra o pescoço da Garça —, escondida em meio a uma densa névoa.
A Garça empinou para diante, quase derrubando Li Li no oceano.
Gróonk?
— O que foi isso, seu pássaro doido? — Li Li se agarrou às penas do pássaro, e a cabeça voltou a doer com o movimento súbito. — É claro que não é para você me levar até lá direto! Eu vou precisar de mantimentos e comida para vários dias, ora bolas!
A garça não pareceu se convencer.
Gróoonk?
— Uma aeronave! — Li Li sorriu. — E eu conheço uma pessoa que já me emprestou uma.
Grooooooooooonk?
— Altaforja! Rei Magni! Você vai ficar tagarelando o tempo todo? Vamos lá, voando, voando!
* * *
A culpa é sua.
Chon Po brandiu a carta de Li Li na frente do rosto de Chen como uma faca, seus olhos vermelhos de fúria. Chen balançava o corpo, apoiando-se ora num pé, ora no outro.
— A vida toda sempre foi tio Chen pra cá, tio Chen pra lá e "ah, seria tão bom conhecer o mundo com o tio Chen!" — Chon Po andava de um lado a outro, e a raiva transparecia em sua postura. E nada conseguia desfazer essa ilusão! Ah, não... ela só via a aventura, o romance. Por causa das suas cartas, Irmão.
Chen respirou fundo. Chon Po estava irredutível, e ele preferiu deixá-lo reclamar à vontade, se perguntando o quanto da reprimenda era dirigida à filha e quanto ao irmão.
— …enchendo a cabeça dela com falsas esperanças! O que ela acha que vai encontrar lá fora que nós não temos aqui?
"Para começar, ingredientes decentes para fazer cerveja", Chen pensou, encarando a parede atrás do irmão. Ele quase sorriu. De repente o rosto furioso de Chon Po se aproximou, assustando-o.
— Você não tem nada a dizer?
— Chon Po, eu não sei o que dizer. Eu não disse a Li Li para ir a lugar nenhum.
— É como se tivesse dito! — gritou Chon Po. — É o que você vem dizendo a ela implicitamente por anos e anos! Ela idolatra você, e agora saiu nessa busca idiota por sei lá qual "grande mistério"! É sua responsabilidade trazê-la de volta dessa tal de — ele verificou na carta novamente — "Altaforja".
Na verdade, Chen se preocupava com a sobrinha. Ela era jovem demais para estar sozinha no mundo, e se sua memória não falhava, o "grande mistério" era encontrar Pandária, algo que ele nem sabia se era possível. Além disso, ela levara a pérola, e uma naga já a havia caçado por causa daquele item. O perigo parecia provável. E também, dava para fazer uma cerveja fantástica com as abóboras de Ventobravo.
— Tudo bem, Po, eu irei atrás dela —concordou Chen. — Mas ela é um indivíduo, e eu não irei forçá-la a voltar comigo.
Chon Po fungou. — Ela é uma criança, Chen.
Chen sacudiu a cabeça.
— Menos criança a cada dia que passa, Po. Eu partirei assim que for possível.

— Quanto mais rápido melhor. — Chon Po cruzou os braços. — Nem imagino em que encrencas ela pode estar se metendo agora...

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