domingo, 18 de setembro de 2016

Conselho dos Tres Martelos: Ferro e Fogo



Conselho dos Três Martelos:
Ferro e Fogo

Matt Burns


O céu sobre o Ninho da Águia convidava Kurdran Martelo Feroz como o brilho distante de uma fogueira em uma gélida noite de inverno. Após vinte longos anos preso num mundo infernal hoje conhecido como Terralém, ele voltou para casa. Nunca se arrependeu de participar da expedição da Aliança na luta contra a Horda dos orcs em seu mundo, mas nesses anos difíceis o desejo de ver esse céu ardia em seu coração.


Seu grifo, Sky’ree, planava acima dele com três outros: ela nunca esteve tão alegre nas últimas duas décadas. Ele queria muito estar lá em cima com ela e sentir a brisa da montanhas acariciar-lhe o rosto. O destino determinara que ele andaria em duas pernas sobre a terra, mas era no céu que ele se sentia livre. Essa era a maior dádiva de Sky’ree para ele. Acima da ferocidade na guerra ou da amizade em tempos de paz, estava a bênção do voo. Mas, por enquanto, ele a deixaria voar sozinha.

Kurdran respirou fundo e contemplou sua terra: florestas verdejantes se estendiam por todos os lados; anões Martelo Feroz iam e vinham entre lojas e casas que ladeavam o sopé da montanha; e o aviário colossal, um recôncavo de pedra esculpido à imagem de um dos nobres grifos, coroava o Ninho da Águia. Tudo estava como ele havia deixado.

O anão sacou da cinta um pequeno cetro de ferro enrolado com cordões de grama e adornado com penas de grifo. Não era uma arma (seu martelo da tempestade estava às costas): era um lembrete. Em Terralém, o cetro adquiriu uma natureza quase mística, um símbolo de quem Kurdran era e da terra pela qual ele lutava. Muitas vezes, sentiu que segurá-lo próximo de si o enchia de esperança e dava força para prosseguir. Agora que estava em casa, porém, a potência do cetro parecia...

Um guincho agudo perfurou os ares. Kurdran olhou para cima, e uma pontada de medo o trespassou: Sky’ree estava caindo em parafuso, suas asas torcidas de forma bizarra.

– Sky’ree! – berrou Kurdran.

O grifo aterrizou com um baque seco. Ossos desencontrados irrompiam das agora destroçadas pernas traseiras, e sangue jorrava de uma fratura horrível no crânio. Sky’ree tentou se levantar, mas desabou de dor. Ela abriu o bico e soltou um piado fraco.

– Não se move, menina! – exclamou Kurdran. Corria ao socorro da sua companheira ferida, coração retumbando, quando sentiu a mão enrijecer.

O cetro estava borbulhando e se tornando algo assustadoramente familiar... cristal... diamante.

Tentáculos faiscantes saíram dele e deslizaram pelo seu braço, congelando-o até que ficasse sólido como pedra. A substância viscosa chegou ao peito e se expandiu até embaixo, solidificando suas pernas e fundindo-as com o chão.

Kurdran tentou puxar o martelo das costas, mas seu braço foi recoberto de diamante antes que conseguisse. Congelado, podia apenas olhar, com desesperança impotente, o grifo que salvou tantas vidas e se tornou uma extensão de seu próprio ser sangrar lentamente até a morte diante de seus olhos.

A prisão de diamante subiu pelo pescoço de Kurdran, espessa e gélida, até que invadiu sua garganta e encheu seus pulmões. Por fim, cobriu seus olhos e ouvidos. Sky’ree e o convidativo azul do céu se foram.

Mas a libertação da morte lhe foi negada. Ele existia num vácuo, em sua mente corria um terror calcinante como metal derretido. Por fim, um som de uma pancada indistinta e ritmada ficou cada vez mais alto.

BAM. BAM. BAM.

Cada golpe mandava vibrações pelo seu corpo, como se estivessem batendo com um objeto contundente em sua mortalha cristalina, tentando libertá-lo.

BAM. BAM. BAM.

A rigidez do corpo arrefeceu. A sensibilidade voltou aos membros. Então, o som ficou diferente.

CLANG. CLANG. CLANG.

A ruído familiar foi o suficiente para Kurdran saber onde estava e perceber que tinha apenas acordado de um pesadelo e entrado em outro. Tratava-se do som metálico de um martelo atingindo uma bigorna dia e noite, atormentando os ouvidos de Kurdran. O pulso de uma cidade que não a sua, profunda, construída no âmago de uma montanha e que jamais teria a alegria do céu aberto.

Era Altaforja.

* * * * *

A cidade dos ancestrais de Kurdran era um caldeirão fervente de velhos preconceitos. Era uma convulsão infinita. Seus gases tóxicos dissolviam qualquer lógica ou racionalidade que restasse nos anões Barbabronze, Martelo Feroz e Ferro Negro que viviam juntos em Altaforja pela primeira vez em dois séculos. E Kurdran estava à margem de tudo, fitando confuso o coração fervilhante da cidade prestes a entrar em erupção.
Ele teve a incômoda sensação de que ainda estava em guerra com a maldita Horda e preso em Terralém. Contudo, não havia inimigos às claras em Altaforja. Nenhum demônio ensandecido.

Nenhum orc furioso tentando dizimar a vida em seu mundo. Só havia palavras.



Quando Kurdran chegou em Altaforja poucas semanas antes, foi tratado como herói por seus sacrifícios em Terralém. Agora era diferente. Rumores infundados contra o clã Martelo Feroz emergiram dos saguões obscuros da cidade como fantasmas vingativos da sangrenta Guerra dos Três Martelos, que despedaçara a unidade dos clãs enânicos muitos anos antes. Os boatos iam desde histórias de rituais de sacrifício no Ninho da Águia até relatos de que Kurdran tinha executado uma dúzia de combatentes da Aliança em Terralém por terem fugido de uma batalha.

Uma semana antes, a atenção dos anões tinha se voltado para um novo assunto.

– O conselho está te esperando, thane Kurdran.

Kurdran ignorou o guarda de Altaforja e segurou o cetro dos Martelo Feroz firmemente na mão.

De onde ele ficava, no poleiro de grifos da cidade, era possível observar as profundezas da Grande Forja, que era o coração de Altaforja, cidade apropriadamente batizada, por sinal. Rios de metal liquefeito caíam do teto em escaldantes poças alaranjadas. Perto desses tanques borbulhantes, ferreiros anões martelavam bigornas. O calor, especialmente ali tão perto da forja, era insuportavelmente opressivo, era como estar preso numa garrafa de vidro e ficar sufocando sob o sol ardente.

Sky’ree estava deitada numa cama de palha ao seu lado, com as pernas escondidas sob o corpanzil. Kurdran passou os dedos calejados pela crista de penas e ponderou sobre o destino da fiel companheira.

– Por que droga eu escolhi vir pr’estas paragens? – murmurou Kurdran para si mesmo, tomando fôlego.

– Pois tu não queria ver o passado suceder de novo – respondeu a voz calma de Eli Golpeforte, aproximando-se de Kurdran e juntando palhas soltas em pilhas arrumadas. – Pois o rei Magni, apesar de ser Barbabronze, é um anão honrado. E pois que, como tu mesmo disse para Falstad, tu é o anão que vai dar conta da pendenga – prosseguiu o cuidador de Sky’ree.

As palavras de Eli trouxeram memórias à mente de Kurdran. Tendo voltado de Terralém, Kudran desrespeitou profundamente seu amigo íntimo Falstad, que havia liderado o clã Martelo Feroz em sua ausência. Mas remoer o ocorrido com Falstad agora só traria mais mágoas para Kurdran, por isso ele afastou esses pensamentos sobre o amigo.

Sky’ree emitiu um arrulho baixo e cutucou Kurdran de leve com o bico, como se concordando com as palavras de Eli.

– Eu não tava falando contigo – disse Kurdran, dispensando Eli com um gesto e virando para Sky’ree: – Nem contigo.

Sky’ree simplesmente se ajeitou no ninho de palha, revelando brevemente três ovos de cor bege com pontos azuis que ela tinha posto logo depois de chegar a Altaforja. Kurdran queria que ela voltasse ao Ninho da Águia com a prole em vez de ficar na cidade, mas ela não o abandonaria.

Não era uma mascote. Era um espírito livre, livre para escolher o próprio destino assim como Kudran podia escolher o seu.

A decisão de Sky’ree de ficar encheu Kurdran com um misto de alegria e raiva. Logo depois de pôr os ovos, ela ficou tão abatida e frágil que não podia mais voar. Vários sacerdotes, mestres de grifos e alquimistas que a examinaram chegaram à mesma conclusão: a condição de Sky’ree não se devia a alguma estranha enfermidade contraída em Terralém ou em Altaforja. Era uma mazela para a qual não existe cura: o tempo.

– Thane Kurdran...

– Estou indo! – exclamou Kurdran, olhando para o guarda de Altaforja.

– É meio difícil ir enquanto tu está sentado no chão... – ralhou Eli, continuando a fazer o trabalho.

Kurdran resmungou e ficou de pé. O guarda Barbabronze subitamente se virou e passou todo desajeitado pelos grandes ninhos de grifos que ladeavam a passarela ao redor da Grande Forja.

O aviário tinha praticamente dobrado de tamanho depois de que os Martelo Feroz chegaram na cidade com seus grifos. De certo modo, a área passou a lembrar o Ninho da Águia. Era uma casa longe de casa.

Com o cetro na mão, Kurdran seguiu o guarda, cumprimentando os cavalga-grifos dos Martelo Feroz que estavam sentados entre os montes de palha. Por mais que Kurdran estivesse abatido, a expressão no rosto dos anões era bem pior, como se ele estivesse indo para a morte.

De certo modo, estava.

Kurdran seguiu o guarda pela passarela até chegar à Sala do Trono. Uma multidão barulhenta de anões estava à porta da câmara. Nos rostos via-se a combinação de luz e sombras criada pelos braseiros de ferro que ardiam em toda a cidade. Estavam presentes membros de cada clã: os Barbabronze com suas armaduras de prata polida; os Martelo Feroz com suas tatuagens e adornos de penas de grifo; os Ferro Negro com sua pele cinzenta e aventais de trabalho manchados de carvão. Era uma amostra fiel de Altaforja como um todo: poucos Martelo Feroz e alguns Ferro Negro salpicados em meio à maioria dos Barbabronze.

À medida que abria caminho entre os anões, Kurdran ouvia fragmentos das discussões acaloradas que estavam ocorrendo ali.

– Nós, Barbabronze, mantivemos o nosso pedaço do martelo de Modimus como era, como deveria ser!

– Vocês tacaram ele numa biblioteca para juntar poeira. A gente, do Martelo Feroz, pegou o nosso pedaço e forjou uma coisa nova.

– Bah, guri! Não adianta discutir com esses Barbabronze. Tudo que é coisa boa que sai de Altaforja é coisa que eles afanaram de algum tesouro antigo – gritou um cavalga-grifo ali perto.

Do meio da aglomeração, alguém empurrou o anão que falava em cima de Kurdran. A multidão se movimentou, cercando-o.

– Saiam da frente! – gritou Kurdran.

Uns poucos anões que estavam perto deram passagem. Outros o fitavam, contorcendo o rosto de ódio.

– Abram caminho para Kurdran, a chefia das borboletas! – berrou uma voz com sarcasmo, usando o apelido jocoso do clã de Kurdran.

– Uma rodada de cerveja por minha conta se o Kurdran abrir mão do pedaço dele do martelo de Modimus!

– Só um anão sem juízo ia apostar contra isso!

Kurdran acotovelou os últimos anões no seu caminho e emergiu já na Sala do Trono. A câmara, lar da realeza de Altaforja, era como o resto da cidade: mal iluminada, com paredes altas de pedra metálica clareadas por lamparinas dependuradas. No fundo da sala, em cima de uma plataforma elevada, estavam os três idênticos tronos do Conselho dos Três Martelos.

Um arrepio correu pelo corpo de Kurdran quando seus olhos fitaram o trono do meio, que pertenceu ao rei Magni. No dia em que Kurdran entrou para o conselho, o irmão de Magni, Muradin, o levara às profundezas da cidade ancestral. Lá, Kurdran viu uma imagem que assombraria seus sonhos por muito tempo: Magni transformado numa estátua de diamante. A petrificação aconteceu quando o rei tentou fazer um ritual de comunhão com a terra para obter respostas sobre os perturbadores terremotos, tempestades e outras catástrofes que afligiam o mundo naqueles tempos.

Agora, Muradin estava no trono central. Kurdran olhou para o anão Barbabronze, que lhe devolveu um olhar pernicioso, bem diferente das joviais boas-vindas dadas a Kurdran quando este entrou na cidade. Nos primeiros dias como membro do conselho, ele brindou muitas canecas de cerveja com Muradin e contou as histórias de Terralém, enquanto o Barbabronze partilhou suas aventuras no gélido continente de Nortúndria. Com o passar do tempo, Muradin tornou-se frio com Kurdran por razões que este não entendia.



À direita de Muradin estava Moira Thaurissan, filha de Magni. Apesar de ter decepcionado seu pai ao se casar com os antigos rivais do clã Barbabronze, os Ferro Negro, ela era a herdeira legal de Altaforja, assim como seu filhinho, Dagran, que balançava calmamente num berço aos pés de Moira.

– Bem-vindo, Kurdran. – A herdeira, com cabelos trançados em coques perfeitos, curvou-se discretamente.

– Buenas – foi só o que Kurdran disse. Passou por uma mesa de madeira ao pé da rampa no caminho para os tronos. Na mesa, havia dois artefatos que, na semana anterior, tinham chacoalhado o fervilhante caldeirão de Altaforja: um nodoso cajado de madeira incrustado com uma gema roxo-escura e uma cabeça de martelo deformada.

Kurdran franziu o rosto ao ver as relíquias e sentou-se em seu trono, à esquerda de Muradin.

Não era a primeira vez, desde que viera a Altaforja reinar ao lado de Moira e Muradin, que ele se sentia deslocado. O conselho tinha uma forte presença dos Barbabronze e, devido a Dagran, um forte componente Ferro Negro, mas não pelo lado de Kurdran.

Os murmúrios do povo à entrada da Sala do Trono diminuíram, e o Conselheiro Belgrum, um anão encarquilhado que estava ao pé da plataforma, curvou-se. Dois jovens historiadores ali perto imitaram o gesto respeitoso de Belgrum. Um deles era um pequeno Martelo Feroz vestido numa vistosa túnica vermelha, um conferente muito detalhista, pelo que diziam.

Belgrum endireitou-se e avançou claudicando para cumprimentar o recém-chegado. – Bem-vindo, thane Kurdran. Já tomaste tua decisão?

Kurdran perscrutou a sala. Era sempre a mesma coisa nos últimos dias. A mesma pergunta. A mesma multidão de anões futriqueiros. A mesma sensação de estar encurralado. Em todas as ocasiões anteriores, ele respondera a Belgrum da mesma forma: não. Contudo, na noite anterior, um Martelo Feroz e um Barbabronze morreram durante uma querela sobre o cetro nas mãos de Kurdran.

– Não achei que tivesse opção... – redarguiu Kurdran.

– Bah... – bufou Muradin. – Quantas vezes a gente vai ter que discutir isso...

– Kurdran – Moira interrompeu o desabafo do anão Martelo Feroz –, de nós três, é seu o maior sacrifício a ser feito. Se você escolher ficar com seu pedaço do martelo, vamos abdicar do que planejamos.





A atenção de Kurdran se desviou para um pergaminho velho que Belgrum segurava com suas mãos trêmulas. O papel, descoberto na biblioteca de Altaforja uma semana antes, descrevia partes de uma guerra civil entre anões séculos antes. Dizia a história que, quando o rei supremo de Altaforja, Modimus Sidermar, morreu, os clãs lutaram pelo controle da cidade. Nesse tumulto, a arma de Modimus – o Martelo do Rei Supremo – misteriosamente sumiu. Ao longo dos anos, Kurdran ouviu rumores sobre o destino do martelo. Esse texto acabava com as especulações: dizia que o martelo de Modimus tinha se quebrado em três partes. Durante o caos da guerra, cada clã tinha de algum modo conseguido obter um dos fragmentos. Kurdran presumiu que, confrontados com o futuro incerto de Altaforja, os anões tolamente viam a reunificação do martelo como um caminho para a paz ou como mera válvula de escape para velhas disputas e rivalidades.

Kurdran afastou os olhos do pergaminho.

– Tomei minha decisão, sim – bradou ele, erguendo o cetro de ferro. – Este legado está nas mãos do clã Martelo Feroz faz séculos. Eu entrei nesse conselho para manter a paz, não para pelear sobre a reforja de um martelo velho.

Gritos de fúria emergiram dentre a robusta aglomeração de anões que assistia.

– O martelo era de Modimus pra começo de conversa! É da cidade!

– Se os Martelo Feroz não querem paz, não podem fazer parte do conselho!

Kurdran observou, agitado, a multidão cercar os poucos anões do Martelo Feroz que estavam no meio enquanto guardas armados corriam para acabar com o tumulto.

– Mas um dos meus está morto por causa desse martelo – berrou Kurdran mais alto que o clamor.

– Não vou deixar isso acontecer de novo.

Ele apertou o cetro dos Martelo Feroz na mão pela última vez e o colocou sobre a mesa de madeira, ao lado dos outros artefatos, com uma pancada seca. A multidão silenciou.

Belgrum assentiu com a cabeça e ergueu as mãos para todos os presentes. – Assim seja. Por decreto do conselho, o grande martelo de Modimus Sidermar, último rei supremo de Altaforja, será reforjado!

Os anões que presenciavam a sessão explodiram num ruidoso aplauso, e Kurdran ficou taciturno.

– Como todos veem – prosseguiu Belgrum –, os Martelo Feroz doam o cabo do martelo de Modimus, que tinha sido reforjado na forma do cetro hoje carregado pelo thane Kurdran e, antes dele, pelo thane Khardros.

Kurdran mirou o cetro. O tamanho e a forma era ligeiramente diferente da descrição que o pergaminho fazia do cabo do martelo. Lembrou-se de ter perguntado a Khardros anos antes de onde tinha vindo o cetro. O velho anão simplesmente respondeu que o passado dele não tinha importância: importava apenas aquilo que se tornaria. Kurdran sempre achou que a explicação obscura do thane era mais uma de suas reflexões filosóficas, talvez até uma parábola para o clã Martelo Feroz. Agora ele se perguntava se havia sido Khardros que tinha pego o cabo e o reformado, sem nunca mais mencionar as origens dele.

Belgrum apontou a cabeça deformada de martelo em cima da mesa.

– Os Barbabronze doam a cabeça do martelo de Modimus, danificada a ponto de ficar irreconhecível por um incêndio durante a guerra civil e guardada na biblioteca da cidade junto com outros destroços como memória do conflito.

Por fim, Belgrum estendeu a mão para o cajado nodoso ao lado da cabeça do martelo.

– E os Ferro Negro doam o cristal, antes dourado, que ficava na cabeça do martelo de Modimus.

A pedra foi achada por um dos feiticeiros do clã e teve a cor alterada para esconder sua identidade.

Um aplauso barulhento e desencontrado irrompeu dos Ferro Negro presentes.

– A reforja começará em três dias a contar de hoje. Por enquanto, nós do conselho pedimos que todo mundo cuide da vida enquanto escolhemos quem reforjará as partes – concluiu Belgrum.

Aos poucos, os espectadores se dispersaram, continuando as discussões de onde tinham parado, como se a sessão nunca tivesse acontecido. Kurdran olhou longamente o cetro dos Martelo Feroz sobre a mesa. Uma questão perturbadora o consumia: o que mais, nas próximas semanas ou meses, Altaforja tomaria dele e de seu clã?

Sem dizer mais nada, ele desceu da plataforma de pedra e caminhou em direção à saída da Sala do Trono.

– Kurdran, – chamou Moira, preocupada, – Nós ainda temos que decidir quem forjará o martelo.

– Não tem importância – Kurdran rosnou, saindo da sala.

* * * * *

Kurdran caminhou ao lado de Sky’ree por várias fileiras de apartamentos e lojas de mercadores no anel externo da cidade, onde os sons de martelos e bigornas da Grande Forja não passavam de um eco longínquo. As névoas da idade nublavam os olhos do grifo, e a lentidão de seus passos deixava claro o esforço doloroso que fazia. Mas, para desgosto de Kurdran, Sky’ree parecia gostar de explorar cada buraco de Altaforja.
Mais do que tudo, Kurdran queria escapar de Altaforja e voar com Sky’ree, mas uma simples caminhada era tudo o que o grifo aguentava. As caminhadas costumavam ser uma distração bem-vinda, mas a mente dele hoje estava carregada com os pensamentos sobre o martelo de Modimus. Depois de Kurdran ter saído tempestuosamente da reunião do conselho no dia anterior, Moira e Muradin escolheram um ferreiro Ferro Negro para reforjar o martelo. A decisão fez o sangue de Kurdran ferver, mas pensando em retrospecto, ele sabia que a culpa era dele por não estar presente na hora para argumentar contra a escolha. O malquerer dele pelo clã Ferro Negro estava profundamente entranhado. A traição era como um traço da cultura dos Ferro Negro, assim como os grifos eram um traço da cultura dos Martelo Feroz.

Infelizmente, o sacrifício de seu cetro não serviu para diminuir as tensões em Altaforja. Ao caminhar, Kurdran sentia a animosidade no olhar dos passantes, que observavam sua pele bronzeada e castigada, seu rabo de cavalo ruivo como fogo e suas tatuagens. Kurdran sabia que os olhares penetravam muito mais profundamente do que pareciam. Altaforja era uma eterna guerra de culturas, cada uma considerando-se superior a todas as outras. Os Martelo Feroz preferiam viver na superfície e rasgar os céus do norte com seus amados grifos. Os Barbabronze preferiam habitar as montanhas, como sempre fizeram. E os Ferro Negro... os Ferro Negro viviam cada vez mais nas sombras, ocultando a própria cultura dos forasteiros...

Uma ombreira de aço chocou-se contra o ombro de Kurdran, trazendo-o de volta de seus pensamentos. Ele se virou e viu dois Ferro Negro carregando um grande barril. Os anões que esbarraram nele o encararam com olhos reluzentes, comuns entre os Ferro Negro. Para Kurdran, eles lembravam os olhos demoníacos que havia visto em Terralém.

Um dos Ferro Negro grunhiu e então seguiu caminho ao lado do companheiro. Eram seguidos por uma fila de anões do clã deles, todos em pares, carregando barris também. Um cheiro pungente emergia dos barris; Kurdran reconhecia o odor da bebida alcoólica preparada pelos Ferro Negro. A mistura não parecia em nada com a cerveja de que ele tanto gostava. Era o tipo de bebida que entorpecia as pessoas e as fazia esquecer as coisas após um único copo. Kurdran já vira grupos dos Ferro Negro carregando barris com o líquido pela cidade inúmeras vezes, aparentemente em busca de algo mais forte do que Altaforja poderia oferecer.

– Kurdran, – disse alguém fora do campo de visão no momento em que o último barril passava por ele. A voz era inconfundível, calma e calculadamente régia.

Kurdran virou-se e viu Moira se aproximando. Ao lado dela estava um grande anão Ferro Negro chamado Drukan, que ele havia observado acompanhando Moira em várias ocasiões.

– Vejo que está levando a nobre Sky’ree para passear – disse ela com um sorriso educado.

Kurdran procurou no rosto de Moira algum sinal de que sua cordialidade não fosse sincera. Ele suspeitava de que ela e os Ferro Negro fossem responsáveis, de algum modo, pelos rumores circulantes sobre o clã Martelo Feroz.

Afinal, foi graças às ações agressivas dela (após o acidente de Magni, ela havia trancado a cidade com seus exércitos e reclamado o trono) que o Conselho dos Três Martelos havia sido formado. A decisão de reforjar o martelo de Modimus também havia partido dela.

Porém, por várias vezes Moira provou ser o maior aliado de Kurdran em Altaforja. Quando as reclamações (quase sempre sem fundamento) sobre os Martelo Feroz foram feitas, culpando-os pela falta de comida, de casas e pelos ninhos de grifos superpopulosos, ela defendeu o clã dele.

Mas a benevolência aparente dela não era o bastante para Kurdran.

– Ela estava precisando ficar longe da quentura – disse Kurdran, enquanto acariciava o flanco leonino de Sky’ree.

Moira se aproximou de Sky’ree e colocou a mão no bico do grifo. – Uma criatura magnífica. Como está a saúde dela?

– Melhorando – mentiu Kurdran, sem vontade de discutir o assunto com Moira além do necessário. Na verdade, ele ficou surpreso ao ver que Sky’ree fora capaz de se levantar do ninho hoje.

– Eu tenho a impressão de que ela acabará ficando nova em folha com o tempo – disse Moira.

Ela acariciou a juba de Sky’ree e o grifo abaixou a cabeça, piando baixo.

Kurdran sabia que Sky’ree era uma ótima juíza de caráter. O fato de ela gostar de Moira criou dúvidas sobre suas suspeitas acerca da líder dos Ferro Negro.

Moira chamou Drukan, que estava longe dali com a cara fechada: – Venha, Drukan. Sky’ree é uma lenda. Ela já enfrentou dragões, você sabia?

– Eu não confio num bicho que gosta de sangue de anão – resmungou Drukan, com uma expressão de desprezo.

Os olhos de Moira se abriram em choque e ela riu. – Não seja ridículo.

– É isso que dizem sobre as terras dos Martelo Feroz – continuou Drukan. – Eles alimentam os grifos com os prisioneiros. E essa Sky’ree aí... bom, dizem que ela já comeu mais do que o suficiente.

Kurdran sentiu o sangue subir à cabeça e caminhou em direção a Drukan.

– Olha como fala, piá.

– Você sabe como esses rumores absurdos andam se espalhando – falou Moira, colocando a mão no ombro de Kurdran. – Drukan está... como posso dizer... ainda aprendendo os fatos mais sofisticados da civilidade.

Moira se virou para Drukan e falou, em um tom malévolo: – Peça desculpas.

– Mas, Majestade...

– Agora. – Ela olhou para Drukan de uma forma fria que falou mais do que palavras.

– Peço perdão, senhor – disse Drukan a Kurdran, com os dentes crispados.

– Bom, eu não quero atrapalhar você e Sky’ree, – falou Moira, cordial novamente. – Só queria dizer que a sua decisão ontem foi incrivelmente humilde... algo que eu já esperava após ouvir contos sobre sua bravura em Terralém. Reforjar o martelo trará união, e isso só será possível por causa da sua decisão.

– Eu não sou um desses anões por aí sem opinião própria – respondeu Kurdran severamente. – O que está feito, está feito.

A herdeira do trono de Altaforja simplesmente sorriu e concordou: – É claro. Vou deixar você e a poderosa Sky’ree continuarem o passeio.

Kurdran viu a dupla ir embora, mas seu momento de paz com Sky’ree já estava arruinado pela conversa. Ele queria que Moira fosse o inimigo. Isso, pelo menos, tornaria a confusão em Altaforja mais compreensível. Porém, ele sentia cada vez mais que estava procurando lógica em uma cidade que havia abandonado os últimos traços dela ultimamente.

– Vamos voltar para o ninho, menina. – falou Kurdran enquanto alisava a asa de Sky’ree.

* * * * *

Kurdran estava de pé em frente a seu trono na Sala do Trono, forçando-se a permanecer calmo.
Foi necessária toda a sua força de vontade para impedi-lo de se lançar contra Belgrum, que estava de pé diante dos tronos.

– Eu assumo toda a responsabilidade por isso – disse o conselheiro, abaixando a cabeça em respeito a Kurdran e aos outros membros do conselho.

A Sala do Trono estava vazia, salvo por Belgrum e os três representantes dos clãs. Ainda assim, o velho anão falou em um tom bem alto. Entre suas palavras, o silêncio preenchia a sala. Em sua mão estava o pergaminho que contava a história do martelo de Modimus.

– É uma mentirada muito bem-feita – afirmou Belgrum, erguendo o pergaminho e sorrindo com desgosto. – Depois de uma baita pesquisa, eu concluí que o pergaminho foi envelhecido por magia. E foi enfiado nos livro de registros. À primeira vista, nada era motivo de preocupação.

– Não é motivo de preocupação? – exclamou Kurdran. – Um dos homens do meu clã está morto!

– Caso tu tenha esquecido, caudilho, um dos homens do meu clã morreu também – retrucou Muradin. – O entrevero não teria ido tão longe se tu tivesse entregado o pedaço do martelo logo de cara.

– Tá surdo, anão? Isso não é pedaço de coisa alguma!

– Não use isso como desculpa! Você não queria nada disso, para começar!

– Muradin, Kurdran, por favor – disse Moira, que virou-se para Belgrum. – A reforja é daqui a um dia. Você sabe o que isto significa, não é?

– Sim, senhora. Mas o pergaminho é fajuto. Eu garanto isso com a minha vida. Alguém aí teve um trabalhão para falsificar isso, mas a escrita usada não combina com a dos outros pergaminhos da mesma época.

– Então, de onde vêm as partes do martelo? – perguntou Moira.

– Pelo que se sabe, o cetro dos Martelo Feroz e a joia dos Ferro Negro surgiram depois da guerra civil. O pergaminho descreve o dano na cabeça do martelo dos Barbabronze em detalhes, exatamente da mesma forma como o encontramos. Mas, pelo que sabemos, não há como dizer quando ele foi danificado e colocado na biblioteca.

– Quem fez isso? – rugiu Kurdran. Ele limpou uma camada de suor da cabeça. Apesar de ter uma constituição física invejável, o calor sufocante da cidade estava começando a afetá-lo.

– Bah, isso é impossível de saber. Muitos anões passam pela biblioteca todo dia – respondeu Belgrum.

– Não importa. Temos de ir até o fundo disso– exclamou Moira. – Nossos companheiros anões estão esperando um ato de união dos clãs. Se esta história vier à tona e nós cancelarmos a reforja, vão querer culpar alguém. Esta informação não deve sair desta sala – Moira olhou fixamente para Belgrum. O velho anão assentiu.

Kurdran deu um soco no trono e explodiu:

– Eu não vou abrir mão de uma coisa que pertence ao meu clã por direito para manter essa farsa!

– Não é uma farsa para a cidade – falou Muradin. – Não após dias de discussão sobre isso.

Mesmo nervoso, Kurdran reconheceu a sabedoria das palavras de Muradin. As discussões sobre o martelo de Modimus elevaram as tensões em Altaforja a um ponto sem retorno, como uma avalanche que seguiria seu curso até o momento da reforja, independente do que o conselho dissesse.

* * * * *

Kurdran sentou-se no poleiro dos grifos e remoeu aquela situação perturbadora. A verdade sobre o martelo de Modimus pesava em sua mente. Ele pensou em levar Sky’ree para dar um passeio e limpar a cabeça, mas ela não se levantou. Ficou lá deitada, inerte, com a respiração fraca.
Os cavalgadores de grifo dos Martelo Feroz estavam sentados ao lado de seus companheiros alados, todos preocupados com a condição de Sky’ree e com a atmosfera tensa em Altaforja.

Até mesmo o costumeiro semblante jovial de Eli parecia preocupado. O cuidador dos grifos espalhava os feixes de palha letargicamente. Vários cavalga-grifos, Eli inclusive, eram veteranos de Terralém. Eles acompanharam Kurdran a Altaforja, assim como o haviam seguido até a terra natal dos orcs, sem nunca questionar suas decisões. Mas pela primeira vez na vida, Kurdran sentia que havia levado-os a uma batalha sem sentido.

Kurdran havia se levantado e começado a caminhar distraidamente pelo aviário quando dez anões Ferro Negro começaram a passar por entre os ninhos, levando barris de madeira para a passarela. Os Ferro Negro olhavam de maneira inquietante para os Martelo Feroz enquanto passavam. Um deles tropeçou em uma pilha de palha seca, derrubando um dos barris no chão.

O barril de madeira arrebentou e um líquido pálido se espalhou por todo o aviário.

O Ferro Negro caído socou o chão e se levantou com dificuldade.

– Por que vocês aí dos Martelo Feroz ficam espalhando essas suas galinhas por onde a gente passa? – reclamou o Ferro Negro, cuspindo no grifo mais próximo. A criatura gritou e chutou a beira do ninho, jogando uma pilha de palha na cara do anão.

Eli parou o que estava fazendo e aproximou-se calmamente do Ferro Negro.

– Não é culpa deles, piá – disse ele, em um tom contido.

– Esses bichos só causam problemas desde que chegaram por aqui. Como se ter que ficar caminhando pelo meio desses ninhos imundos deles não bastasse, eles anida largam esse fedor na cidade inteira! – O Ferro Negro estava cheio de ódio. Estalou os dedos e caminhou na direção do grifo mais próximo, com os dois punhos fechados.

Eli instintivamente levantou o forcado na direção do Ferro Negro. – Nem pense em encostar um dedo no grifo, piá.

Os olhos do Ferro Negro se arregalaram ao ver o forcado apontado para ele. – Estão vendo isso, rapazes? – gritou para os outros Ferro Negro. – Um Martelo Feroz tá levantando a arma contra nós.

Eli baixou rapidamente o forcado e contemporizou: – Não transforma isso em uma pendenga maior do que é.

Cinco cavalgadores de grifos levantaram-se. Um deles caminhou à frente e encostou o dedo em riste no peito do Ferro Negro.

– Peguem as suas coisas e sigam caminho – ordenou o Martelo Feroz.

Kurdran sentia a confusão esquentando. O caldeirão estava fervendo, cada vez mais perto de transbordar. Depois da revelação perturbadora sobre o Martelo de Modimus, uma briga era a última coisa que precisava acontecer. O thane caminhou até os Ferro Negro, na intenção de evitar o inevitável.

– Vocês Martelo Feroz preferem ver essa cidade queimar a colocar esses bichos em perigo! – gritou o Ferro Negro, que depois virou-se para seus companheiros e disse – Deem para eles alguma coisinha para acalmar a cabeça.

Sem pensar duas vezes, dois Ferro Negro arremessaram um dos barris no ninho. O objeto passou voando pela cabeça de Kurdran e caiu ao lado de Sky’ree, quebrando-se e espalhando a bebida dos Ferro Negro sobre ela e os outros grifos próximos.

O ódio ebuliu no interior de Kurdran, que precisou respirar fundo para recuperar a compostura.

Caminhou até o líder dos Ferro Negro para mandá-los irem embora. Ao ver Kurdran, o Ferro Negro recuou involuntariamente e tropeçou novamente na palha, caindo outra vez ao chão.

A risada irrompeu entre os cavalgadores de grifos. – Só de ver Kurdran, os cabeças de bagre perderam toda a coragem.

O Ferro Negro olhou furtivamente para os lados, a humilhação clara no rosto. Por fim, se levantou e ficou a centímetros de Kurdran, provocando:

– Thane borboleta... por que você não volta para lá e vai sentar com o resto dos animais? – E cuspiu no rosto de Kurdran.

O pequeno ato de insulto mexeu com algo que havia dentro de Kurdran. Algo que estava se remoendo dentro dele desde que chegou a Altaforja. O sonho de ver o céu sobre o Ninho da Águia, a decisão de entregar sua relíquia, a condição de Sky’ree. Tudo veio à tona de uma só vez, cegando-o com fúria.

O punho de Kurdran se chocou contra o rosto do Ferro Negro com tanta força que arrancou o anão do chão.

Sem receber qualquer ordem, os Martelo Feroz ao lado de Kurdran partiram para cima dos Ferro Negro, que rapidamente rolaram para o lado, desviando dos primeiros golpes. Grunhidos altos partiram dos grifos enquanto os barris eram jogados nos ninhos, partindo-se ao entrar em contato com o chão de pedra. A partir daí, os Ferro Negro e os Martelo Feroz se atracaram, agarrando todos os braços, pernas e armaduras que alcançassem.

Os grupos coesos se empurraram para frente e para trás, até que os Ferro Negro finalmente perderam o equilíbrio e se chocaram contra um braseiro. As brasas caíram e incendiaram uma pilha de palha. O fogo rapidamente tomou conta dos ninhos ao redor, alimentado pela bebida alcoólica derramada pelos Ferro Negro.

Em questão de segundos, o aviário inteiro estava em chamas. A fumaça subia em direção ao teto da Grande Forja. Vários grifos guincharam fortemente e decolaram, deixando para trás uma torrente de penas, cinzas e brasas.

– Água! – gritou Kurdran desesperado, pisoteando a pilha de anões caídos no chão.

De outras partes da Grande Forja, vários anões começaram a correr na direção do aviário. A maioria dos grifos já estava voando, circulando nos cantos escuros da área, mas quatro deles permaneceram no chão. Três grifos estavam amontoados em torno de Sky’ree e seu ninho.

– Sky’ree! – gritou Kurdran. – Sai daí!

Da direção dela veio um som que fez Kurdran apertar os olhos de dor. Um som que ele não ouvia deste suas batalhas em Terralém. Era um grito de guerra que, por várias vezes, foi o suficiente para fazer os inimigos de Sky’ree fugirem aterrorizados.

Chamas ardiam ao redor dela. Kurdran mal podia ver Sky’ree através da fumaça pesada que impregnava o aviário. Um dos grifos que estava ao lado dela subiu ao ar como uma flecha, deixando para trás uma trilha de penas queimadas no ar. Os outros dois grifos decolaram também, mas não fugiram. Ficaram pairando no ar, tentando segurar as asas de Sky’ree com as garras e gritando um para o outro. Em sincronia, os dois grifos começaram a bater as asas furiosamente, tentando tirar Sky’ree do chão. Mas ela se soltou da pegada de seus companheiros.

Os anões começaram a apagar as chamas com barris de água, enquanto uma dupla de gnomos recém chegados começou a lançar feitiços com cristais de gelo sobre o aviário. No entanto, o fogo continuava violento. Kurdran tentou tirar a armadura, mas no estado de nervosismo, não conseguiu soltar as presilhas. Abandonou a ideia e correu para dentro das chamas.

– Kurdran! – gritou Eli.

O cuidador dos grifos e outros dois Martelo Feroz seguraram o corpo de Kurdran. Mesmo com três anões muito fortes segurando ele, Kurdran continuou caminhando em direção às chamas.

Foram necessários mais dois Martelo Feroz para prendê-lo no chão.

Preso, Kurdran só conseguiu ver o momento em que os dois últimos grifos fugirem do ninho, não aguentando mais a fumaça e o calor. Depois de alguns segundos agonizantes, Sky’ree caiu ao chão.

Depois que as últimas chamas foram apagadas, Eli e os outros Martelo Feroz soltaram Kurdran, e ele correu para o ninho fumegante. Sky’ree estava lá, inerte. Escurecida e esfumaçada.

Uma mão tocou o ombro de Kurdran.

– Eu... Eu sinto muito – lamentou Eli, com uma voz chorosa.

– Por que ela resistiu quando os companheiros tentaram salvá-la? – Kurdran balbuciou, sem acreditar.

– Ela estava protegendo os ovos! – concluiu Eli repentinamente.

Os dois anões moveram cuidadosamente o corpo de Sky’ree. Debaixo dela, onde antes estavam três belos ovos, havia pedaços partidos de casca e os restos calcinados dos filhotes de Sky’ree.

Kurdran observou a cena mórbida, sem conseguir dizer palavra.

– Ela... Ela tentou – comentou Eli enquanto se agachava em frente ao ninho enegrecido.

A multidão em torno do aviário de grifos arruinado permaneceu silenciosa. Até os Ferro Negro, que foram parcialmente responsáveis pelo incêndio, pareciam aterrorizados e sem palavras.

Todos olhavam para Kurdran. A fumaça do ambiente estava permeada pelo cheiro de carne e de palha queimada, e ele se sentiu enjoado.

* * * * *

Quando Kurdran saiu da Grande Forja, os grifos ainda estavam circulando no ar e os residentes da cidade ainda estavam tentando entender o que acontecera. Foi tudo o que ele pôde fazer para não desmoronar. O fogo havia aberto uma queimadura nele, e, com isso, queimado os últimos restos de esperança, ambição e alegria que um dia circularam por suas veias.
Kurdran ficou sentado por horas em uma taverna quase vazia, com um caneco de cerveja intocado à frente, remoendo lembranças de Sky’ree. Cada lembrança acabava sendo sobreposta pela imagem do corpo calcinado dela. Merecia ter morrido em batalha, ou ao menos no conforto de seu lar, perto do Ninho da Águia. Não enfiada no coração de uma montanha.

“Foi um erro vir aqui” , pensou Kurdran. O arrependimento o fez lembrar de alguém que havia ficado completamente fora de seus pensamentos durante as últimas semanas: Falstad.

Falstad havia assumido o título de thane enquanto Kurdran estava em Terralém. Após finalmente retornar ao Ninho da Águia, Kurdran sentiu a necessidade de compensar seu povo pelas décadas que passou ausente da própria terra. Apesar de não ter retomado oficialmente o antigo posto, Kurdran passou a dar ordens ao seu clã sem consultar Falstad, o que acabou prejudicando a posição soberana do thane.



A viagem de Kurdran a Altaforja era um exemplo de suas tentativas exageradas de provar que ainda era o líder que fora antes. Como thane atual, Falstad foi o convocado para unir-se ao Conselho dos Três Martelos, mas Kurdran aproveitou a oportunidade, dizendo, em termos nada sutis, que seu amigo não tinha experiência suficiente para assumir tal tarefa. Na euforia pelo retorno do antigo líder, o clã concordou com seus argumentos. Kurdran lembrava vividamente do ressentimento e da raiva nos olhos do thane após tudo o que foi dito e feito, como se ele tivesse considerado que os vinte anos de bravo governo de Falstad não tiveram importância alguma.

Agora Kurdran entendera a tolice de sua atitude. Pela primeira vez, ele desejou que Falstad pudesse tomar seu lugar na cidade. Não que Kurdran desejasse que o novo thane passasse por toda a tensão que permeava Altaforja, mas por acreditar que Falstad poderia cumprir a tarefa melhor do que ele.

“Não” , Kurdran disse para si mesmo.

Pedir a ajuda de Falstad, mesmo depois de tudo o que aconteceu, seria um sinal de fraqueza.

Ainda havia um meio de impedir que Altaforja arrancasse tudo aquilo que lhe era caro, e ele se deu conta disso.

Ainda havia uma coisa que a cidade não havia lhe arrancado.

* * * * *

A Sala do Trono estava vazia quando Kurdran caminhou até o trono de Muradin. Ao lado do trono de pedra, estava o grande baú de ferro onde as três peças do martelo de Modimus estavam guardadas. Cada membro do conselho recebera uma grande e pesada chave para abrir o baú.
Kurdran colocou a chave na tranca.

Abriu lentamente o baú e retirou o cetro de seu clã. Parecia maculado e inútil, sem as penas de grifo e os cordões de grama seca que antes o adornavam e foram arrancados na preparação para a reforja.

– Eu sabia que você iria pegá-lo de volta – falou uma voz, cheia de veneno.

Kurdran se virou. Moira estava no início da rampa que levava aos tronos, ainda usando seu traje formal, segurando Dagran nos braços. Um facho de luz atravessava a Sala do Trono, vindo da porta entreaberta de seus aposentos, nos fundos da sala.

– Eu não vou fazer parte desta farsa.

Moira subiu a rampa graciosamente. – Você me lembra Dagran agarrando um de seus brinquedos e ficando enlouquecido quando eu tento tirá-lo dele.

– Você não entende o que isso significa para mim... e nunca vai entender.

A herdeira de Altaforja caminhou até o trono de Kurdran e olhou para ele de cima a baixo.

– Eu ainda me pergunto por que você veio aqui – falou ela. – Você e seu clã não pertencem a Altaforja. E, ao que parece, a cidade também não quer vocês aqui.

– Pediram para que eu viesse aqui.

– Não fui eu que pedi.

Era verdade. Quando Moira chegou em Altaforja com seus Ferro Negro, ela tomou a cidade de assalto e fechou os portões. Um dos visitantes que ficou preso durante o período foi o príncipe Anduin de Ventobravo. Reagindo a isso, o pai dele, rei Varian, invadiu Altaforja com uma equipe de assassinos da AVIN, com intenção de matar Moira por seus atos traiçoeiros. Mas, por fim, ele poupou a vida dela e resolveu criar o Conselho dos Três Martelos para manter a paz. Ao fazê-lo, Varian nomeou Falstad como representante do clã Martelo Feroz.

Por um momento, os dois anões apenas se entreolharam, até que Moira quebrou o silêncio: – Eu me pergunto como um anão como você, que já venceu tantas batalhas, deve se sentir ao ser derrotado.

– O que você quer dizer?

Moira colocou Dagran no chão, perto do trono de Muradin, e a criança escalou o trono de pedra, ignorando o diálogo que estava acontecendo.

– Deve ser uma sensação estranha e terrível – continuou Moira.

– Do que você está falando? – perguntou Kurdran, cada vez mais agitado.

Um sorriso se abriu no rosto de Moira. Era o mesmo sorriso ensaiado que Kurdran vira tantas vezes, mas, na situação atual, sinalizava algo sinistro. Uma compreensão assustadora começou a lhe ocorrer.

– Eu fiquei preocupada quando você se uniu ao conselho. Tratava-se de um anão com vontade férrea, forte e resoluto, que sacrificou tudo para proteger o nosso mundo. Mas quando você chegou, eu percebi como você se apegava tanto a este pedaço de ferro velho. Uma visão estranha... como se, de alguma maneira, todo o seu orgulho estivesse depositado em um objeto.

Kurdran mal podia ouvir as palavras de Moira. Sua mente estava acelerada. Os estranhos rumores sobre os Martelo Feroz. A tensão crescente levada ao máximo por causa do pergaminho falsificado encontrado na biblioteca. Até mesmo o fato de Moira defender seu clã. Tudo serviu para criar a fama dos Martelo Feroz como não conformistas e, metodicamente, destruir a reputação deles. No fim, Altaforja passou a ter um novo objeto de animosidade no lugar dos tradicionalmente odiados, que eram os Ferro Negro.

A simplicidade do plano inundou Kurdran com uma sensação de incompetência, por ter sido vencido por um inimigo inferior. Este era o tipo de comportamento diabólico que poderia ser esperado de Moira, mas ele não confiou nos próprios instintos.

– Então foi você que colocou o pergaminho na biblioteca? Ou foi aquele rato do Drukan que fez o trabalho sujo?

A herdeira de Altaforja simplesmente sorriu e acariciou Dagran, ignorando a pergunta: – Eu coloquei guardas na porta da biblioteca. Pode ter certeza de que uma coisa dessas nunca mais acontecerá.

– Responda! – rugiu Kurdran, sacando seu martelo da tempestade e apontando-o para Moira.

Moira olhou para ele, impassível, e retrucou:

– Você matou dragões com esse martelo, certo? Inúmeros orcs também, não é? Mal posso imaginar o que faria comigo.

– Eu rebentaria o seu crânio antes que você pudesse gritar.

Moira respondeu às gargalhadas:

– E com o meu sangue ainda fresco no chão, meu povo se rebelaria e queimaria esta cidade.

Você e seu clã de brutamontes seriam os primeiros a serem jogados no fogo.

– Se você tiver pelo menos uma gota de honra no sangue, vai admitir o que fez.

– É o fim, Kurdran. Você é um anão de ação, não de palavras. E aqui em Altaforja, são as palavras que importam. Aqui não é Terralém, onde o vencedor é o que derrama mais sangue.

Quem vence aqui é quem conquista mais seguidores. E você falhou completamente nesse quesito. Talvez Falstad tivesse representado melhor o seu clã, no fim das contas.

– Durante todo esse tempo você mencionou união – falou Kurdran, segurando o martelo com cada vez mais firmeza. – Você nem sabe o que é isso.

O rosto de Moira endureceu, e ela lutou para manter o sorriso.

– Eu sei exatamente o que eu quero – retrucou Moira. – Você nunca desejou fazer a paz com os Ferro Negro. Suas opiniões já estavam formadas quando chegou aqui, embaçadas pelo ódio antigo.

– Então você sacrificou a mim e ao meu clã para que os Ferro Negro não fossem tratados como a escória que eles são? – Kurdran perguntou.

– Eu fiz isso pelo futuro. Para que, quando o meu filho herdar o trono, não precise governar uma cidade que o trata como um pária por causa do sangue que corre em suas veias.

– Ah, se o Magni te visse agora... Imagina a dor que ele sentiria ao ver a filha degenerada destruindo tudo o que ele construiu.

– Não fale comigo se conhecesse o meu passado ou o de Magni. – Moira explodiu de raiva. – Você e o seu clã são convidados nesta cidade. Quanto antes vocês forem embora, melhor! – Moira apertou o braço de seu filho sem perceber e a criança começou a chorar.

– Eu sempre esperei que... – Kurdran calou-se no meio da frase. Um pensamento horrível passou pela cabeça dele. Deu um passo na direção de Moira, com o martelo a centímetros do rosto dela.

– Você matou Sky’ree. Você mandou aqueles imundos do seu clã iniciarem o incêndio.

– Não – defendeu-se ela, indignada. – Não venha me acusar de algo que foi sua culpa. Eu puni severamente os Ferro Negro que entraram na briga, mas pelo que eu fiquei sabendo, foi você que deu o primeiro golpe.

A culpa tomou conta de Kurdran. Desde o incêndio mais cedo naquele dia, ele tentara esquecer que poderia ter evitado a briga. O anão deixou amolecer o braço e baixou o martelo.

– Vá embora de uma vez com essa coisa – disse Moira, olhando o cetro dos Martelo Feroz. – Ou fique.

A herdeira botou Dagran no colo e desceu a rampa sem olhar para trás.

– Nós começaremos a reforjar o martelo de uma forma ou de outra. Amanhã, os clãs serão unidos por um Ferro Negro – exclamou Moira, entrando no quarto e batendo a porta atrás de si.

A verdade das palavras de Moira, em tudo o que ela disse, tinha um peso enorme. A inimiga que Kurdran procurava finalmente se mostrara, mas ele não podia fazer nada para enfrentá-la sem colocar a cidade em risco. Estava tão indefeso quanto a estátua cristalina que um dia fora o rei Magni. E, de uma vez só, todo o sentimento de derrota inundou-lhe a alma.

O suor começou a escorrer-lhe pelo corpo. A cada respiração, o anão parecia inalar vapor quente, em vez de ar. Kurdran colocou o cetro em uma abertura de sua armadura, perto do braço.

Com o item escondido, saiu da sala em direção aos portões de Altaforja, sentindo como se as paredes de pedra da cidade estivessem se fechando em torno dele.

* * * * *

Kurdran respirou o ar frio profundamente. O suor que cobria seu corpo ficou gelado pelo ar da noite, fazendo-o estremecer.
À distância, através da cortina de neve, várias silhuetas iluminadas pela luz do portão descarregavam uma carruagem. Uma das silhuetas olhou para Kurdran e começou a caminhar na direção dele.

Era Muradin.

– Eu estava te procurando – disse o Barbabronze, limpando a neve das ombreiras. – Sinto muito pela Sky’ree. Ela morreu do mesmo jeito que viveu, sem medo de nada. Lutando pelo que era mais importante, a família dela. O futuro dela.

– O futuro dela morreu junto com ela – disse Kurdran, exalando vapor pelas narinas em meio ao ar gelado.

Muradin refletiu por um instante e respondeu:

– Sim, mas eu preferiria morrer pelo meu povo em uma luta que eu sei que não posso vencer do que não lutar. Mas acho que você não sabe o que é isso, não é?

Kurdran apertou os olhos com a afronta, mas ele se sentia fraco depois do encontro com Moira e simplesmente respondeu:

– Eu estou lutando pelo meu povo desde que cheguei em Altaforja.

– Não confunda teimosia com bravura. Não são a mesma coisa – respondeu Muradin.

– Tu não entende. É igualzinho à Moira.

– Quando tu se juntou ao conselho, eu pensei comigo mesmo “taí um anão que vai dar um jeito nessa cidade”. Em vez disso, você só piorou as coisas. – Muradin suspirou e abaixou a cabeça.

– Sim, por que eu tive que fazer tudo sozinho. Tu me recebeu de braços abertos, mas logo da primeira vez que eu briguei pelo que eu acreditava, virou as costas.

– Quantas vezes eu falei que esse negócio do martelo não valia a pena? Eu parei de gastar saliva quando tu mostrou que não ia me ouvir – respondeu Muradin.

Para crédito de Muradin, Kurdran lembrou-se das várias vezes nos últimos dias em que Muradin falou com ele em particular, sobre desistir do cetro. Mas as conversas pareciam mais ataques pessoais do que conselhos.

– Tu não vê, piá? – Muradin prosseguiu. – Aquele pedaço de ferro velho é só um arreio prendendo você. Prendendo a cidade toda. Quanto mais você briga por ele, mais apertado o arreio fica.

– E se eu não seguir em frente com a reforja amanhã? – perguntou Kurdran. Conforme as palavras saíam, sentia o cetro pressionando as costelas, escondido sob a armadura.

Muradin franziu a testa e olhou para Kurdran com desdém. – O Magni admirava os contos das tuas batalhas com Sky’ree em Terralém. Eu fico feliz por ele não estar aqui para ver o tolo que você é na verdade.





Kurdran inicialmente pensou em contar a Muradin sobre o confronto com Moira. Agora, no entanto, ele se perguntava se Muradin não estaria em um complô com a filha de Magni. Ainda assim, havia um ar de retidão em Muradin que aplacava as suspeitas de Kurdran e tornava as palavras do Barbabronze ainda mais dolorosas.

– Aquele certo manteve o coração do meu clã vivo em Terralém! – explodiu Kurdran.

– O coração do seu clã está em ti! – Muradin levantou a voz, acompanhando Kurdran. – Estava na Sky’ree. E está em todos os Martelo Feroz que estão na cidade, pelejando enquanto você discute. Eu estou tentando levar essa cidade para a frente, e não encher tudo com besteiras sobre pedaços de ferro velho.

– Levar pra frente? – Kurdran perguntou indignado. – O martelo já não era o modo certo de tocar a cidade para a frente quando a gente achava que ele era real, muito menos agora que eu e você sabemos que é uma farsa.

– Deixa isso pra lá, meu amigo. Tudo que é bom vem com sacrifício. Tu sabe disso melhor do que todos nós. – Muradin respirou fundo e colocou a não no ombro de Kurdran, que empurrou o braço do Barbabronze.

– Era pra isso que tu tava atrás de mim? Para me dizer como cuidar do meu clã?

O rosto de Muradin contorceu-se de fúria. Ele virou-se para olhar as silhuetas trabalhando nas sombras. Os outros anões continuavam a descarregar as caixas, ignorando o diálogo dos dois.

Quando virou-se de volta, Muradin deu um tapa forte no rosto de Kurdran, jogando-o para trás.

– Não, eu só queria ver com meus próprios olhos o que é verdade e o que é mentira do que estão dizendo por aí.

Muradin já estava caminhando de volta para a carroça quando o choque do tapa passou em Kurdran, que permaneceu parado no portão, olhando para a noite.

O cetro dos Martelo Feroz parecia estranhamente pesado. Muitas de suas memórias de Terralém estavam ligadas a ele. Mas, antes desse período, ele tinha poucos laços com o item. Na verdade, lembrava de quase tê-lo deixado para trás quando partiu para o mundo dos orcs. O cetro ficava pendurado na parede, acumulando poeira, e, num rompante, Kurdran decidira colocá-lo na bagagem antes de partir.

Imediatamente, ele se sentiu um tolo por tirar o cetro da Sala do Trono. O que ele pretendia fazer? Deixar a cidade e abandonar seu dever como membro de conselho, manchando não só a própria honra como também a de Falstad e do resto do clã?

Kurdran remoeu a questão enquanto passava pelos portões, voltando para a quentura de Altaforja. Enquanto caminhava pelo anel externo da cidade, uma voz o chamou: – Kurdran!

Eli correu na direção dele, carregando um pacote embrulhado num pelego.

– Eu não estou de bom humor – Kurdran murmurou.

– Sim, sim. Eu sei como você está. Mas vê isso! – disse Eli, quase tropeçando.

O cuidador de grifos colocou o embrulho no chão de pedra e ajoelhou ao lado dele. Kurdran ajoelhou também e subitamente se interessou pela coisa, enquanto Eli a desembrulhava.

– É dela – disse Eli. Um largo sorriso se abriu no rosto do anão.

Kurdran olhou mais de perto, sem acreditar. No meio do pelego havia um ovo, sujo de fuligem.

– Como...? – Kurdran estava sem palavras.

– O ovo estava com um dos outros grifos. Ele estava escondido em um poleiro na Grande Forja.

Deve ter pegado o ovo durante o incêndio. Nenhum dos outros grifos estava chocando – explicou Eli. – Eu estou procurando você desde que descobri isso.

Então, Kurdran lembrou-se de que, em meio ao caos do fogo, das penas e dos gemidos terríveis, um dos grifos decolou rapidamente do lado de Sky’ree, com as patas junto ao peito. Ele olhou para cima e viu os olhos de Eli se encherem d’água. O tratador de grifos tentou se recompor rapidamente.

– Não conte pros outros sobre isso. Se eles souberem que eu tava chorando, vão me azucrinar.

– Não ia ser a primeira vez que tu fica choramingando. – Kurdran soltou uma gargalhada poderosa. Ainda assim, a alegria estava manchada pela raiva. Foi um acontecimento milagroso e inesperado, mas se ele tivesse escolha, teria trocado o ovo por Sky’ree sem pensar duas vezes.

– Isso não é a Sky’ree... – murmurou Kurdran.

– Bah, um pensamento desses vai te envenenar. Deixa isso pra lá, ou então tu vai passar a vida toda procurando uma coisa que nunca vai existir. – Eli segurou o braço de Kurdran. – Esse aqui nunca vai ser a Sky’ree – continuou ele, com uma expressão mais séria do que Kurdran jamais vira. – Mas é o sangue dela. Uma prenda dela para ti. E eu garanto que, um dia, esse ovo vai ser um grifo tão fantástico quando a mãe.

– Tu tá certo... – disse Kurdran, engolindo seco.

Hesitante, Kurdran botou a mão sobre o ovo. Estava quente, mas de algum modo, era diferente da quentura de Altaforja. O calor se espalhou pelo corpo de Kurdran, que sentiu-se como se estivesse novamente sob o céu das Terras Agrestes, sendo banhado pela luz do sol. Naquele momento, tudo ficou claro. Ele sabia o que tinha que fazer, independente das consequências, para honrar o rei Magni e cumprir seu dever como membro do Conselho dos Três Martelos.

* * * * *

A Grande Forja estava lotada de anões quando Kurdran chegou. Praticamente a cidade inteira estava lá para ver a reforja do martelo de Modimus. Até alguns gnomos, draeneis e outros membros da Aliança estavam lá para o evento, mas afastados dos anões que se juntavam próximo à Grande Bigorna, no coração da forja.
Uma fileira de guardas de Altaforja isolava a área ao redor da bigorna, e somente Moira, Muradin e um ferreiro Ferro Negro permaneciam no interior. Vários dos anões presentes estavam armados e tensos, com raiva acumulada. Os Martelo Feroz estavam reunidos perto da entrada da Sala do Trono, longe de seu lugar de costume, no ninho de grifos. Após o incêndio, eles tiraram todos os companheiros alados da cidade. O aviário, já limpo e com palha nova, agora acomodava os grifos de Altaforja.

Kurdran caminhou até a forja abarrotada. Um grande clamor soou ao redor dele no caminho.

Dentre os sons indistintos, Kurdran ouviu várias vezes a palavra “ladrão”. Ao aproximar-se do centro do salão, viu Moira atrás dos guardas, discursando para o público.

– Nós temos suspeitas de quem roubou o cabo do martelo de Modimus – disse Moira. – Uma investigação acontecerá. No entanto, nós não permitiremos que estes acontecimentos perturbem o nosso trabalho. Começaremos a reforja como... – Moira parou no meio da frase ao ver Kurdran passando pela fileira de guardas em torno da Grande Bigorna.

– Kurdran! – falou Moira casualmente, como se o encontro deles na noite anterior nunca tivesse ocorrido. – Há um ladrão entre nós.

A herdeira de Altaforja apontou para a Bigorna, onde estava a cabeça de martelo dos Barbabronze e a joia dos Ferro Negro.

– Você poderia explicar o que está acontecendo? – ela perguntou alto o suficiente para que todos ao redor pudessem ouvir.

Sob a máscara de civilidade, Kurdran percebeu Moira saboreando cada momento do que ela julgava ser seu golpe final sobre o representante dos Martelo Feroz.

– Posso sim – respondeu Kurdran, olhando, por um momento, para Muradin. O Barbabronze olhou para Kurdran com desgosto, mas disse nada.

Kurdran caminhou até a beira da Grande Bigorna. Tirou a relíqua de dentro da armadura e levantou-a diante da multidão.

– Altaforja! – gritou ele. – Fui eu quem pegou esta parte do martelo.

A multidão explodiu em gritos, e os anões começaram a pressionar o perímetro de guardas.

Outros foram na direção dos Martelo Feroz que estavam na porta da sala do trono. Muradin caminhou furioso para perto da bigorna e segurou o braço de Kurdran, alertando: – Kurdran! Tu vai causar um levante!

– Tu disse que eu era o único que poderia dar um jeito nessa cidade. E é isso que eu vou fazer.

– Como? – perguntou Muradin.

– Afrouxando o arreio.

Muradin franziu a testa, confuso. Mas, por fim, o Barbabronze pareceu entender o que estava prestes a acontecer. Muradin caminhou na direção do povo e berrou: – Deixem o homem falar!

Quando o barulho diminuiu, Kurdran continuou: – Eu passei muitos anos preso em Terralém, sem nunca saber com certeza se ia conseguir voltar para casa. Durante todo esse tempo, este pedaço de ferro deu esperanças a mim e aos meus companheiros. Ele nos lembrava quem nós éramos e pelo que lutávamos!

Kurdran olhou o artefato. Na noite anterior, enquanto estava ajoelhado ao lado do ovo de Sky’ree, ele finalmente concluíra que o cetro era só isso... ferro velho. Um pedaço de metal temperado havia colocado os anões uns contra os outros e instaurado medo e ódio no coração de Kurdran.

Ele não era nada diferente da multidão furiosa que estava à sua frente. Um anão com medo do desconhecido, hesitante em seguir em frente e desistir de algo familiar. Mas ele havia feito tudo isso ao ir para Terralém. Abriu mão de seu título de thane em prol de Falstad. Abriu mão de anos de sua vida no Ninho da Águia para garantir um futuro melhor para seu povo. Em comparação com isso, o cetro era completamente trivial.

– Mas nós não estamos em Terralém – prosseguiu Kurdran. – Esta também não é a Altaforja dos nossos ancestrais. Então, por que nós estamos tentando montar o martelo para voltar ao passado? Esta é uma nova Altaforja. Nunca vai ser como no passado, e reforjar o martelo de Modimus certamente não vai mudar isso! – Kurdran bateu o artefato contra a bigorna. – Eu e meu clã não ajudaremos a começar uma nova era de anões presos a um martelo!

O movimento da multidão se tornou desordenado. Em meio às sombras da Grande Forja, os anões pareciam um organismo vivo, expandindo-se e contraindo-se momentos antes de estourar.

– Ele vai devolver a peça!

– Os Martelo Feroz estão mostrando quem são de verdade!

Sem dizer mais nada, Kurdran sacou o martelo da tempestade. Em um movimento rápido, ergueu a arma e bateu com força contra o cetro, provocando um clarão. O estrondo fez os ouvidos de Kurdran zumbirem, apesar de ter usado o martelo durante anos. A relíquia explodiu em uma chuva de estilhaços de metal.

Os anões na multidão ficaram congelados de espanto. Seus rostos estavam confusos.

– A nova Altaforja começa aqui. Perguntem a si mesmos se querem começá-la reconstruindo um martelo que pode ser quebrado novamente um dia. Os Martelo Feroz decidiram dar um passo à frente, não para trás. Quem de vocês está conosco?

Quando Kurdran se virou para estender o martelo para os outros membros do conselho, ficou surpreso ao ver Muradin já caminhando na direção da bigorna.

– Os Barbabronze estão! – gritou Muradin, ao segurar o martelo da tempestade com uma das mãos.

Juntos, Muradin e Kurdran olharam para Moira, assim como toda a Grande Forja. Ela estava isolada.

A herdeira de Altaforja olhou ao redor, como se procurasse um meio de escapar. Ao perceber o silêncio que tomava o salão, decidiu dirigir-se à bigorna, com passos hesitantes, como se o corpo e a mente estivessem brigando entre si. Com os olhos fixos em Kurdran, Moira pousou a mão sobre a de Muradin no martelo da tempestade.

Com a mão que estava livre, Kurdran moveu os outros dois artefatos para o centro da enorme bigorna. Como se fossem um só, os membros do conselho bateram a arma de Kurdran. Outro trovão ecoou, e as partes restantes do martelo se desfizeram em pedaços. E, junto a isso, a mentira se foi.

Em seguida, os três anões ficaram parados em frente à bigorna, todos ainda mantendo as mãos no martelo da tempestade, segurando firme. O povo começou a aplaudir e festejar. Durante todo o tempo, Moira ficou olhando para Kurdran, esperando que ele dissesse alguma coisa. Mas ele disse nada.

* * * * *

Na semana seguinte, a tensão entre os clãs esfriou. Ainda existia, mas a ameaça de violência parecia bem distante. Kurdran estava tomando seu segundo caneco de cerveja na Taberna Pedra de Fogo, sentado sozinho em uma mesa no canto do salão. Sua solidão, porém, não era fruto de culpa ou raiva. Ele estava esperando por alguém, ansioso.
“Se ele não aparecer” , pensou Kurdran, “não posso culpá-lo por isso”.

Falstad Martelo Feroz entrou na taverna, com o cabelo ruivo preso em um rabo de cavalo, parecido com o de Kurdran. Passou pela porta, procurando Kurdran no recinto mal iluminado.

Sem sorriso nem cumprimento, Falstad caminhou até a mesa de Kurdran e sentou-se.

– Bom te ver, companheiro – disse Kurdran.

– Bom te ver também – respondeu Falstad em um tom contido.

Passou-se um momento de silêncio desconfortável. Kurdran havia convocado Falstad a Altaforja logo depois da destruição do cetro, sem saber ao certo como seu amigo reagiria ao chamado.

Agora que Falstad havia chegado na cidade, Kurdran estava ao mesmo tempo aliviado e inseguro.

– Tu não precisava fazer isso. Tem mais direito de estar nesse conselho do que eu – disse Falstad.

– Não – respondeu Kurdran. – Tu é o thane dos Martelo Feroz há vinte anos. A única coisa que mudou foi que um anão cabeça dura achou que podia fazer um trabalho melhor do que o teu...

– Eu falei com Eli agora há pouco. Parece que tu já deixou sua marca em Altaforja.

– Tudo o que eu fiz foi limpar a bagunça que eu mesmo fiz. Uma bagunça que nem teria começado se tu tivesse aqui.

Falstad olhou para Kurdran com os lábios crispados. Kurdran se preparou, esperando o amigo repreendê-lo pela arrogância ou até mesmo tripudiar sobre o tumulto provocado em Altaforja.

– Se não quiser fazer isso por mim – disse Kurdran com urgência – assuma seu lugar no conselho pelo bem do nosso clã.

Falstad recostou na cadeira de braços cruzados, olhando fixamente para Kurdran.

– Então tu espera que eu te perdoe e me junte ao conselho... sem nem me oferecer um caneco de cerveja gelada? – Falstad perguntou, abrindo um largo sorriso.

Kurdran soltou uma risada, aliviado, como se um grande peso tivesse sido retirado de seus ombros. Naquele momento, ele reconheceu a enorme sabedoria e capacidade de perdoar de Falstad. Eram traços que certamente levariam o clã Martelo Feroz a realizar grandes feitos, mesmo em meio às incertezas causadas pela formação do conselho.

Depois de pedir uma cerveja para Falstad, os dois ergueram os canecos.

– Pelo conselho! – brindou Falstad.

– Pelo thane dos Martelo Feroz! – respondeu Kurdran.

– E por Sky’ree! – Falstad levou o caneco à boca antes que Kurdran pudesse fazer outro brinde.

Certamente, Eli havia contado a Falstad sobre a morte de Sky’ree. Kurdran apreciou a brevidade da lembrança, pois sabia, assim como Falstad e todos os outros cavalgadores de grifos, que longas condolências não serviriam para aplacar a dor da perda de uma amiga como Sky’ree.

Falstad pousou o caneco na mesa e perguntou:

– Então, o que tu pretende fazer agora?

– Acho que vou para Ventobravo. Eu tive uma boa experiência com os humanos e queria conhecer o rei Varian. Além disso... eu ouvi dizer que tem uma estátua em homenagem à minha morte nas batalhas de Terralém, bem nos portões da cidade – Kurdran sorriu.

– É verdade... Fui eu que escrevi a placa. Foi bem difícil achar alguma coisa boa em você para dizer – disse Falstad, às gargalhadas.

Com o cair da noite, outros anões se juntaram à mesa de Kurdran e Falstad. Conversou-se sobre as grandes mudanças políticas ocorridas nos reinos de Azeroth, assim como sobre as calamidades naturais que transformaram o mundo depois do Cataclismo. Entre os tópicos que mais interessaram Kurdran, estava a discussão sobre os anões do Martelo Feroz espalhados pelo Planalto do Crepúsculo. Eles sempre se mantiveram bravamente independentes do governo do Ninho da Águia. No entanto, recentemente havia chegado notícias de que algo sombrio estava tomando conta das colinas verdejantes das terras do norte.

Quando os anões mudaram de assunto, a mente de Kurdran continuou vagando. Uma semana antes, ele estaria preocupado que sua força poderia ser diminuída aos olhos do clã se abrisse mão de seu título. Hoje, isso pouco importava. Havia algo ligado a esse sacrifício, algo ligado a abrir mão de seus desejos pessoais pelo bem do clã, que enchia Kurdran de vontade. A mesma gana que antes o levara para Terralém e o havia feito destruir o cetro do Martelo Feroz. O destino dele não estava em Altaforja, nem no Ninho da Águia. Era aqui e lá. Uma vida guiada pelos ventos. Na imprevisibilidade, Kurdran encontrava forças para encarar qualquer desafio, para resistir mesmo contra todas as probabilidades e lutar pelas causas com as menores esperanças.

Assim era a força de um Martelo Feroz.

Pela primeira vez desde que chegou à cidade – na verdade, desde que voltou de Terralém –, ele se sentiu livre, como se estivesse voando pelas nuvens com Sky’ree. E em sua mente, ele estava. Kurdran estava ao lado do espírito do grifo, voando pela imensidão azul que parecia infinita. À frente, havia algo indecifrável, vago como uma miragem. No fundo do coração, ele sabia que era a paz para o Ninho da Águia e para os Martelo Feroz. Se estava a um dia, uma semana, ou dez anos de distância, era impossível de saber, e era tolice se preocupar com isso.

Com garra e determinação, acariciou o pescoço de Sky’ree e deixou que os ventos os guiassem em direção ao horizonte.



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