quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Inteiro



“Tudo que existe, tem vida”. Essas palavras se tornaram um mantra na mente dele, um reforço constante do entendimento recém adquirido. Mais importante do que isso, elas eram uma epifania, a chave para acessar todo um novo universo de conhecimento. E a epifania era motivo pelo qual ele estava aqui.


Nobambo encontrou conforto nas palavras enquanto cruzava lentamente a floresta de cogumelos gigantes do Pântano Zíngaro, cujos esporos reluziam em tons de verde e vermelho em meio à névoa da manhã. As pontes de madeira que se estendiam sobre as águas pantanosas rangiam conforme Nobambo as atravessava. Passados não mais que alguns momentos, ele chegou ao destino e vislumbrou a radiante base de um cogumelo muito maior do que os demais. Sobre o chapéu daquele fungo colossal, Telredor, o assentamento dos draeneis, aguardava a sua chegada.

Nobambo prosseguiu apreensivo, apoiando-se pesadamente na bengala e amaldiçoando a dor nas juntas à medida em que subia na plataforma que o carregaria ao topo. Estava preocupado, pois ainda não tinha certeza de como os demais reagiriam. Houve uma época em que a espécie dele sequer era autorizada a entrar nos assentamentos dos que não foram afetados.

“Eles simplesmente rirão de mim.”

O viajante inspirou profundamente o fresco e enevoado ar do pântano e pediu-lhe coragem para enfrentar o desafio por vir.

Quando a plataforma parou, Nobambo atravessou lentamente a entrada em arco, os pés arrastando-se pelos vários degraus até chegar à pequena praça do assentamento, onde a assembleia já havia se reunido.

Nobambo olhou os semblantes severos de vários draeneis que o encaravam com expressão de superioridade e desprezo.

Ele era, afinal de contas, um krokul, ou “degradado”.

Ser degradado significava ser excluído e vilipendiado. Não era correto nem justo, mas era a realidade que se impunha a ele. Muitos de seus irmãos e irmãs não afetados não conseguiam compreender como o declínio dos krokul pôde ocorrer e, no caso de Nobambo, como alguém tão talentoso e abençoado pela Luz poderia ter decaído a esse ponto.

Apesar de Nobambo não saber exatamente como isso aconteceu, ele sabia quando. O krokul se lembrava com espantosa clareza o momento exato que marcou o início da sua ruína pessoal.

Os céus choraram quando os orcs impuseram o cerco a Shattrath.

Havia muitos e longos meses que a chuva não agraciava as terras de Draenor mas, agora, quase que em protesto contra a batalha iminente, nuvens negras se aglomeravam no firmamento.

A chuva começou a cair suavemente sobre a cidade e sobre o exército perante as muralhas até que, por fim, uma tempestade constante desabou enquanto ambos os lados observavam e esperavam.

“Deve haver mil deles”, Nobambo especulou soturnamente de seu refúgio no alto das muralhas internas. Para além dos muros externos, sombras espreitavam em meio às árvores iluminadas por tochas na Mata Terokkar. Tivessem os orcs planejado mais cuidadosamente, teriam desmatado as cercanias, mas, naqueles dias, os orcs davam pouca atenção a estratégia. Para eles, havia apenas a emoção da batalha e a gratificação imediata do derramamento de sangue.

Telmor havia caído, assim como Karabor e Farahlon. Muitas das outrora majestosas cidades dos draeneis jaziam em ruínas. Shattrath era tudo que restava.

Ao poucos, os orcs se posicionavam, o que fez Nobambo pensar em uma grande serpente que se prepara para o ataque... um ataque que, certamente, resultaria no fim dos defensores de Shattrath.

Não que devêssemos sobreviver, de qualquer forma.

Nobambo sabia bem que ele próprio e os demais que aqui haviam se reunido naquela noite estavam se lançando em sacrifício. Eram voluntários que ficariam para trás e lutariam uma última batalha. A inevitável derrota agradaria tanto os orcs que eles tomariam os draeneis por dizimados e extintos. Aqueles que buscaram refúgio em outro lugar sobreviveriam para lutar mais uma vez em um momento de maior equilíbrio entre as forças.

“Que assim seja, então. O meu espírito continuará vivo e se tornará um com a glória que é a Luz.”

Encorajado, Nobambo ergueu-se, forte e atlético, preparado para os eventos vindouros. A grossa cauda balançava ansiosamente enquanto ele distribuía o peso igualmente entre as pernas leoninas e firmava os cascos no chão talhado em pedra. Respirou fundo, apertando as mãos em torno do cabo do seu cristalino martelo abençoado pela Luz.

“Mas não irei pacificamente.”

Ele e os demais Vindicantes, os guerreiros sagrados da Luz, lutariam até o fim. Nobambo olhou para os lados e viu seus irmãos posicionados em intervalos ao longo da muralha. Assim como ele, eles permaneciam impassíveis e resolutos, já em paz com o destino que os aguardava.

Do lado de fora, as máquinas de guerra chegavam: catapultas, aríetes, balistas... Máquinas de cerco de toda espécie passavam brevemente pela luz das tochas. Os pesados aparatos estalavam perigosamente conforme se posicionavam diante das muralhas.

Tambores soaram – esporadicamente, de início, mas logo mais e mais intensos até que toda a floresta estava viva com o ritmo que começou suave como a chuva para, então, tomar as proporções de um trovão contínuo. Nobambo sussurrou uma prece, pedindo forças à Luz.

Havia muito movimento e barulho à frente, em meio às nuvens lamacentas que ecoavam o frenético rufar dos tambores lá embaixo. Por um segundo, Nobambo se perguntou se, quem sabe, a Luz responderia à sua prece com uma exibição de poder e fúria que erradicaria todo aquele selvagem exército com um único e magnífico golpe.

De fato, houve uma exibição, mas não dos poderes da Luz.

As nuvens trovejaram, rodopiaram e estouraram, rompidas por grandes projéteis flamejantes que rumavam à terra com velocidade meteórica e força de pulverizar ossos.

Um rugido ensurdecedor tomou os ouvidos de Nobambo quando um dos objetos passou perigosamente perto, destruindo escoras próximas e atingindo-o com os destroços arremessados. Como se estivesse aguardando esse sinal, a multidão avançou sobre a cidade, fazendo ressoar pela cidade gritos de guerra sanguinolentos com um único propósito: destruir tudo pelo caminho.

A intensidade da chuva aumentava à medida que as muralhas mais externas ruíam por conta das gigantescas pedras lançadas pelas catapultas. Nobambo sabia que as muralhas exteriores não resistiriam. Elas foram construídas com certa pressa: as seções da parede estendidas sobre as depressões do solo do círculo externo foram adicionadas no ano anterior, uma defesa necessária devido ao constante extermínio daquele povo e à subsequente conclusão de que esta cidade seria a sua última fortaleza.

Vários ogros monstruosos avançaram para tentar romper uma parte da muralha já comprometida pelo impacto do ataque meteórico. Mais duas dessas feras gigantescas lançavam um enorme aríete contra os portões principais da cidade.

Os irmãos de Nobambo atacaram o inimigo seguidamente, mas, sempre que os draeneis abatiam um atacante, mais dois tomavam o seu lugar. A parede danificada começou a ruir completamente. Uma horda de orcs enlouquecidos vociferava contra os oponentes, atropelando uns aos outros em um torpor sedento de sangue.

Era chegado o momento. Nobambo ergueu o martelo aos céus, fechou os olhos e esvaziou os ouvidos da opressiva cacofonia da batalha. Sua mente se fez presente, e seu corpo foi encoberto pelo familiar calor da Luz. O martelo brilhou. O guerreiro focou suas intenções e direcionou seus poderes sagrados e purificadores sobre os ogros.

Um clarão ofuscante iluminou brevemente toda a batalha, acompanhado pelos urros dos orcs estupefatos pela Luz Sagrada que os transpassava e queimava, atordoando-os, silenciando-os e detendo-os por tempo suficiente para que vários guerreiros draeneis se concentrassem em derrubar um dos ogros gigantes.

O alívio momentâneo obtido por Nobambo foi atropelado pelo som de madeira sendo despedaçada: o último e bem-sucedido golpe do aríete contra os portões principais. O guerreiro assistiu aos defensores do Bairro Inferior avançarem sobre a massa de orcs e ogros e serem eliminados rapidamente. Nobambo pediu, mais uma vez, o auxílio da Luz, mas a oposição era, simplesmente, forte demais. Logo após curar um draenei ferido, viu o mesmo guerreiro enfrentar ataques brutais e repetidos passados apenas alguns segundos.

Mais ogros deslocaram-se para a parte enfraquecida da muralha externa e, agora, estavam conseguindo atravessar. Os defensores, em número muito menor, estavam cercados por todos os lados.

Os orcs estavam enlouquecidos, entorpecidos pela sede de sangue. À medida em que eles tomavam o círculo externo, Nobambo reparou nos olhos inimigos, brilhantes e acesos com uma fúria vermelha que era, ao mesmo tempo, hipnotizante e assustadora. Nobambo e os demais Vindicantes mudaram de tática, passando da cura para a purificação. Mais uma vez, a cidade foi banhada por um resplendor brilhante e levas de atacantes foram atingidas pela Luz. O brilho vermelho nos olhos inimigos diminuiu momentaneamente enquanto os orcs cambaleavam adiante para serem eliminados pelos guerreiros draeneis que restavam.

Crás!

A muralha tremeu, e os cascos de Nobambo deslizaram sobre a pedra molhada pela chuva. Ele se firmou e, ao olhar para baixo, viu um dos ogros golpeando a base da estrutura com uma clava do tamanho de uma árvore. Nobambo ergueu o martelo em direção aos céus e fechou os olhos, mas a concentração foi logo interrompida por outro ruído...

Crac-CABUM!

Dessa vez, não foi o ogro, mas uma explosão originada de algum lugar fora de alcance que tirou o equilíbrio do guerreiro. Nobambo rolou para o lado e percebeu, ao olhar por cima da muralha, que uma neblina fina e vermelha ondulava pelo Bairro Inferior adentro. Os poucos defensores que restavam começaram imediatamente a engasgar e vomitar. Todos caíram e muitos soltaram as armas. Os orcs bárbaros acabaram rapidamente com os guerreiros adoecidos e se deleitaram com a carnificina.

Quando o massacre terminou, eles olharam para cima, tomados pelo desejo fanático de despedaçar, membro a membro, os defensores da muralha. Muitos orcs subiram nas costas dos ogros em uma tentativa de escalar a superfície com mãos nuas. A agressão e ferocidade sem limites eram atordoantes. A névoa se espalhou por todo o Bairro Inferior e, agora, estava começando a subir, lentamente obscurecendo o caos abaixo.

Nobambo ouviu uma comoção atrás de si. Vários orcs que, de alguma forma, haviam conseguido transpassar as defesas do círculo interno, agora invadiam o nível superior.

Crás!

A muralha estremeceu novamente e Nobambo amaldiçoou o ogro lá embaixo, o qual, sem sombra de dúvida, voltou a se dedicar a golpear a estrutura. Uma segunda salva de projéteis caiu do céus enquanto Nobambo se preparava para enfrentar a nova leva de atacantes.

Ele direcionou a fúria da Luz diretamente para o primeiro orc. Os olhos da fera verde se turvaram, e ela tombou. Nobambo impingiu a cabeça cristalina do martelo diretamente sobre o crânio do orc, tornou a erguer o martelo e, dessa vez, atacou pela esquerda, sentindo, com satisfação, o esmagamento das costelas do orc. Com outro movimento, o martelo percorreu uma trajetória em arco para baixo e atingiu a perna do ogro pelo lado, despedaçando-lhe o joelho. A fera uivou de dor e caiu da muralha.

A neblina já havia chegado no nível superior, onde se espalhou e recobriu o chão como um tapete. Nobambo e seus colegas Vindicantes continuaram lutando enquanto a névoa subia, chegando, primeiro, na altura do peito para, então, cobrir-lhes o rosto – irritando os olhos e queimando-lhes os pulmões.

Nobambo ouvia os gritos dos companheiros moribundos mas não conseguia vê-los em meio à densa névoa vermelha. Felizmente, os ataques sofridos não o abateram. Ele cambaleou um passo para trás, tentando controlar a ânsia de vômito. A sensação era de que sua cabeça estava prestes a explodir.

De dentro da névoa, o guerreiro ouviu um horrível grito de batalha que o petrificou até os ossos.

Uma sombra se aproximou. Nobambo lutava para enxergar enquanto seu corpo se retorcia em espasmos. Ele tentava desesperadamente prender a respiração quanto, dentre a névoa, surgiu um horror tatuado e de olhos vermelhos... Um orc gigantesco coberto pelo singular sangue azul dos draeneis, arfando e girando um maléfico machado de duas mãos. O cabelo da cor dos corvos estava grudado no pescoço e nos ombros do bruto, ao passo que o maxilar fora pintado de preto muito escuro, dando ao rosto a aparência de uma caveira.

Atrás dele, ondas de orcs corriam para o nível superior. Nobambo sabia que o fim estava próximo.

Crás!

A muralha estremeceu uma vez mais. O orc, que parecia produto de um pesadelo, atacou.

Nobambo se inclinou para trás. A lâmina inimiga abriu uma ferida profunda ao longo do peito do guerreiro, destruindo sua armadura e adormecendo-lhe o lado esquerdo. Nobambo respondeu com um golpe de martelo que esmagou os dedos da mão direita do orc, inutilizando-lhe o punho e o machado. Então, para horror de Nobambo, a criatura aterrorizante sorriu.

O orc o agarrou com a mão boa, as fornalhas de seus olhos fixas em Nobambo, perfurando-o.

Nobambo foi forçado a inspirar. Enquanto inalava a névoa, sentiu o verniz da sua vontade sendo-lhe arrancado. Era como se alguma forma de magia sombria e demoníaca estivesse atuando, como se uma parte de sua própria essência estivesse sendo obliterada... E contra esse ataque Nobambo não teve resposta.

Crás!

Nobambo vomitou sangue no rosto e no peito do orc. O guerreiro fechou os olhos e exasperadamente, desesperadamente, saudou a Luz, suplicando pela neutralização do orc por tempo suficiente para que pudesse se defender. Ele pediu ajuda...

Mas, pela primeira vez desde o primeiro contato com a Luz, desde quando foi agraciado pelo seu brilho...

Não houve resposta.

Aterrorizado, Nobambo abriu os olhos e encarou o olhar maníaco do orc. A criatura escancarou a bocarra e gritou, abafando todo e qualquer outro som, quase rompendo os tímpanos de Nobambo, que se sentia come se houvesse entrado em algum tipo de sonho terrível e silencioso.

A fera se inclinou e cabeceou o rosto de Nobambo. O guerreiro tombou para trás com os braços agitados sob a tempestade inclemente, o olhar fixo nos olhos flamejantes do inimigo enquanto caía cada vez mais... mais, mais e mais por entre a neblina, até colidir contra algo grande que rugiu com o impacto do corpo do guerreiro.

Ainda aprisionado no pesadelo silencioso, Nobambo viu o orc desaparecer do alto da muralha.

Próximo dali, a estrutura arruinada cedeu e derrubou uma enorme seção das muralhas superiores, bloqueando a chuva e o céu e aprisionando Nobambo em um mundo de escuridão silenciosa.

Enquanto estava ali, o guerreiro nos que se esconderam, aqueles que ele esperava que conseguissem escapar do massacre, aqueles que amava e respeitava, aqueles pelos quais ele deu a própria...

Vida. De alguma forma, ele ainda se atinha à vida.

Nobambo emergiu do fosso negro da inconsciência e viu-se aprisionado em um confinamento sufocante e cego. A respiração era custosa, mas ainda estava vivo. Ele não fazia ideia de quanto tempo havia passado desde... desde a queda da muralha, desde que...

Tentou se concentrar. Com certeza, durante o tumulto da batalha, ele simplesmente não conseguiu concentração suficiente para alcançar a Luz, mas agora, agora ele conseguiria fazer contato. Não havia dúvida de que conseguiria...

Nada.

Não houve resposta.

Nobambo nunca havia se sentido tão perdidamente só e sem esperança. Se a Luz estava fora de alcance, o que haveria de ser do seu espírito se morresse ali? Será que a Luz não o receberia?

Estaria a essência dele condenada a uma eternidade de perambulação pelo vazio?

Levou uma vida honrada. Ainda assim... seria isso alguma espécie de punição?

Mesmo enquanto a mente procurava respostas, ele esticou a mão e, imediatamente, tateou a rocha fria. Aos poucos, foi percebendo que estava deitado em uma posição muito estranha, que uma massa tenra e grande estava imprensada a seu lado e que a perna esquerda estava certamente quebrada.

Nobambo rolou para a direita e respirou fundo, tentando ignorar a dor nas costelas e na perna.

Sem poder recorrer à Luz, ele não tinha como se curar, então teria que conviver com a dor por ora. Ao menos a sensibilidade do lado esquerdo do corpo voltou. E... ele podia ouvir os ruídos abafados causados pelos seus movimentos, o que significava que a audição também estava normal.

Como conseguia respirar, isso significava que o ar o alcançava de algum lugar. À medida que os olhos se acostumavam à sombra, ele avistou uma pequena abertura, não de luz, mas apenas um tom de escuridão mais claro do que as trevas que o cercavam. Nobambo se esticou e alcançou, com a mão, um objeto cilíndrico familiar: a haste do seu martelo.

Com a pouca força que lhe restava, Nobambo agarrou o cabo e empurrou-o em direção à abertura. Alguns destroços dos entalhes cederam, revelando um vão estreito criado pelos gigantescos blocos de pedra que caíram.

Imediatamente, o guerreiro foi recebido pelo som de gritos abafados, lamentos de puro terror, vindos de certa distância. Usou o martelo para puxar a parte de cima do torso pelo buraco e para dentro do espaço restrito. Enquanto fazia isso, ouviu um gemido vindo das profundezas dos escombros.

Com uma explosão de força, Nobambo se puxou passagem adentro, contendo a vontade de gritar ao passar a perna quebrada pela quina serrilhada das pedras, o que fez doer todo o corpo.

Os lamentos continuavam. As pedras que o cercavam se moviam, despejando areia e pó pelas rachaduras. O guerreiro se arrastou rapidamente em direção e um caminho irregular, onde uma luz fraquíssima era visível.

A julgar pelo volume do gemido entre os escombros, agora mais alto, Nobambo supôs que se tratava de um ogro tentando desesperadamente se soltar. O guerreiro ficou de costas e arrastou-se sobre os cotovelos até o ar noturno, enquanto o ogro fazia outro esforço para se soltar. Agora, Nobambo conseguia ver todo o monte de entulho. O ogro urrou enfurecido mais uma vez, e toda a pilha cedeu por completo, projetando uma nuvem de poeira em todas as direções e interrompendo abruptamente o grito.

Outro urro se seguiu imediatamente, mas agora de alguma distância, e acima deles: o som de uma fêmea aterrorizada.

Nobambo se virou e viu algo que jamais esqueceria, não importa o quanto tentasse, daquele dia em diante.

Todo Bairro Inferior, iluminado pela lua e por tochas, havia se tornado um depósito de cadáveres de draeneis. E, apesar de a chuva ter parado, as montanhas de corpos ainda estavam molhadas de vômito, sangue e toda espécie de detritos.

O coração de Nobambo retorceu-se ao identificar crianças em meio aos mortos. Apesar de jovens, muitas delas se ofereceram bravamente para ficar com os pais, pois os orcs desconfiariam de uma cidade draenei sem crianças e caçariam todas até a extinção. Uma parte de Nobambo torceu e rezou com toda a força para que essas crianças pudessem ser protegidas, para que elas ficassem seguras nos esconderijos apressadamente escavados nas montanhas.

Uma esperança tola, ele bem sabia, mas se ateve a ela ainda assim.

Haveria algo mais desprovido de sentido do que a execução de crianças?

Mais uma vez, seus ouvidos foram atacados pelos gritos de uma fêmea, acompanhados por provocações e escárnio. Os orcs estavam celebrando, deleitando-se com a vitória. Ao olhar para cima, localizou a origem do ruído: bem acima, projetando-se sobre os Picos da barreira, os draeneis ergueram o Terraço dos Aldor. E lá estavam os orcs, torturando uma pobre draenaia.

“Tenho de detê-los.”

Mas como? Sozinho, com uma perna quebrada, um contra centenas... abandonado pela Luz, armado com nada além de um martelo. Como ele poderia dar um basta na loucura que ocorria lá em cima?

“Preciso descobrir uma forma!”

Exasperadamente, Nobambo engatinhou sobre os cadáveres, escorregando nos fluidos, ignorando o fedor pútrido e as vísceras expostas. Arrastou-se até o círculo externo do Bairro Inferior, em direção à base dos picos, onde a muralha encontrava a montanha. Ele encontraria alguma forma de escalar até lá. Ele encontraria...

A gritaria cessou. Nobambo olhou para cima e viu silhuetas à luz da lua que carregaram uma figura imóvel até a beira do mirante e a balançaram, atirando a massa sem vida às profundezas.

O corpo aterrissou com um baque surdo não muito longe de onde Nobambo estava, paralisado.

O guerreiro prosseguiu, procurando qualquer sinal de vida da draenaia... “Shaka!”, percebeu ao chegar perto o bastante para distinguir os traços dela. Ele a vira muitas vezes antes, apesar de terem se falado em poucas e breves ocasiões. Sempre a achou encantadora. Agora, lá estava ela, surrada e machucada pelas agressões, a garganta cortada, exangue. Ao menos, o sofrimento dela havia acabado.

Outro grito veio de cima, a voz de outra fêmea. A raiva ferveu dentro do guerreiro. Raiva, frustração e um desejo incontrolável de vingança.

“Não podes fazer coisa alguma.”

Desesperadamente, Nobambo agarrou o martelo com força e tentou, mais uma vez, convocar a Luz. Com a ajuda de tal força, talvez fosse possível fazer alguma coisa, qualquer coisa... Mas, novamente, o silêncio foi a única resposta.

Algo dentro dele o impelia a sair de lá o mais rápido possível, a se esconder com os demais, a viver... para, um dia, cumprir um propósito maior.

“Isso é covardia. Preciso descobrir um jeito. Tenho que conseguir.”

Mas, no fundo, Nobambo sabia que a batalha havia terminado. Se, de fato, algum destino maior o aguardava, ele tinha que ir embora de imediato. Não conseguiria nada além de uma morte sem significado, se tentasse chegar ao topo. Gritos angustiados tornaram a dominar o ar da noite.

Nobambo olhou para uma parte da muralha externa que estava parcialmente destruída. Era um obstáculo perigoso, mas não insuperável – e que não estava sendo vigiado.

“Esta é a hora. Faça tua escolha.”

Era uma oportunidade. Uma chance de viver e, algum dia, fazer a diferença mais uma vez.

“Tens de conseguir. Tu tens de continuar.”

Aquele longo gemido soou novamente mas, dessa vez, foi interrompido misericordiosamente.

Então, o som das vozes de orcs, do outro lado da muralha interna, chegou a ele. Elas soavam como se estivessem vasculhando em meio aos cadáveres, em busca de algo ou alguém. O

tempo havia acabado.

Nobambo pegou o martelo. Mesmo lhe custando tempo e esforço consideráveis e a pouca força que lhe restava, conseguir transpassar os corpos à frente e passou pelo vão na parede.

Enquanto cambaleava vagarosa e dolorosamente, para a Mata Terokkar, gritos femininos voltaram a retumbar no topo do Terraço dos Aldor.

– Certamente tua sobrevivência é um sinal, uma mensagem da Luz, que abençoa cada um de nós à sua própria maneira. Quando chegar a hora, tu a encontrarás novamente.

– Espero que seja verdade, velho amigo. Eu, simplesmente... Não me sinto o mesmo. Algo mudou dentro de mim.

– Não digas bobagem. Estás cansado e confuso, e após tudo por que passou, nem podemos culpar-te por sentir-te assim. Descansa um pouco.

Rolc saiu da caverna. Nobambo se recostou e fechou os olhos...

Gritos. Apelos exasperados das fêmeas.

Os olhos de Nobambo se abriram. Já estava ali havia vários dias, em um dos acampamentos montados pelos que se esconderam antes da batalha. Contudo, não conseguia escapar dos comoventes gritos das mulheres que deixou para morrer. Elas chamavam por ele toda vez que seus olhos se fechavam, implorando por ajuda, por salvação.

“Você não teve escolha.”

Mas isso seria verdade mesmo? Ele não tinha certeza. Nos últimos tempos, Nobambo tinha cada vez mais dificuldade em pensar direito. Os pensamentos eram turvos, desconexos. O draenei suspirou profundamente e se levantou do cobertor estendido sobre o chão de pedra, gemendo por causa das juntas doloridas.

Nobambo saiu entre a névoa do pântano e abriu caminho por entre o solo alagado e repleto de juncos. O Pântano Zíngaro era um território inóspito mas, por ora, seria seu lar.

Aquele pantanal sempre fora evitado pelos orcs, e com razão. Toda a região estava coberta por uma camada rasa de água salobra. Grande parte da flora e da fauna era venenosa se não preparadas adequadamente. Muitas criaturas do pântano comeriam qualquer coisa que não as devorasse primeiro.

Enquanto avançava por entre cogumelos gigantes, altos como torres, o sobrevivente ouviu gritos: um tumulto se formara perto do acampamento.

Nobambo correu para ver o que estava acontecendo. Três draeneis espancados, dois machos e uma fêmea, estavam sendo acudidos por membros do acampamento, logo após a guarda do perímetro. Outro, inconsciente, estava sendo carregado por eles.

Nobambo lançou um olhar questionador para um dos guardas, que respondeu à pergunta silenciosa:

– Sobreviventes de Shattrath.

Alarmado, Nobambo seguiu o grupo de volta às cavernas, onde os sobreviventes foram cuidadosamente deitados sobre cobertores. Rolc tocou o draenei inconsciente, mas não conseguiu acordá-lo.

A fêmea, aparentemente atordoada, murmurava:

– Onde estamos? O que aconteceu? Não estou sentindo... Alguma coisa está...

Rolc se aproximou e fez ela se calar:

– Acalma-te. Estás entre amigos agora. Tudo vai ficar bem.

Nobambo fazia-se perguntas. Tudo realmente ficaria bem? Já acontecera de grupos de orcs caçadores descobriram um acampamento e o exterminarem. E esses quatro, como sobreviveram? Quantos horrores essa fêmea teria presenciado? O que teria levado o draenei inconsciente a tal estado catatônico? Além disso, a aparência deles e o jeito como agiam...

Nobambo se perguntava se os ferimentos deles transcendiam o físico: eles pareciam exauridos, desprovidos de espírito.

Eles pareciam como ele próprio se sentia.

Muitos dias depois, os sobreviventes haviam se recuperado o suficiente para que Nobambo se sentisse confortável para perguntar-lhes sobre Shattrath.

A fêmea, Korin, falou primeiro. A voz dela falhava ao relatar a experiência: – Tivemos sorte. Ficamos nas profundezas da montanha, em um dos poucos esconderijos que não foram descobertos... ao menos em sua maior parte.

Nobambo estava intrigado.

– Em um certo ponto – continuou a sobrevivente – os monstros de pele verde nos encontraram.

A batalha que ocorreu foi... Eu nunca tinha visto coisas assim. Quatro dos homens que se ofereceram para defender o grupo foram massacrados, mas também mataram muitos orcs.

Finalmente, restaram apenas Herac e Estes. Eles mataram as criaturas que restaram, feras selvagens. E aqueles olhos, aqueles olhos terríveis... – Korin estremeceu ao lembrar.

Estes acrescentou:

– Houve uma explosão. Momentos depois, um gás pútrido invadiu o nosso esconderijo, sufocando-nos, causando um enjoo como nenhum outro que já tínhamos sentido.

Nobambo lembrou da névoa vermelha artificial e logo reprimiu a lembrança. Herac interrompeu Estes:

– Sentíamos como se estivéssemos morrendo. Quase todos desmaiamos. Quando acordamos, já era manhã. Os níveis superiores estavam desertos. Conseguimos chegar nos Picos da Barreira e, de lá, seguimos viagem para Nagrand, onde fomos encontrados muitos dias depois.

– Quantos de vocês estavam lá? – perguntou Nobambo.

– Vinte, talvez mais. Principalmente mulheres, algumas crianças. Outros chegaram alguns dias depois, como o draenei que está inconsciente na caverna... Akama, ele disse que se chamava assim. Nos disseram que ele foi exposto a mais gás do que qualquer outro sobrevivente. Rolc ainda não sabe ao certo se... – Herac deteve-se e permaneceu em silêncio.

Estes prosseguiu:

– Acabamos sendo separados e enviados para diversos acampamentos no Pântano Zíngaro e em Nagrand. Uma precaução, para que, se um dos acampamentos fosse descoberto pelos orcs, não fôssemos todos mortos.

– Havia algum sacerdote ou Vindicante dentre vocês? Algum portador da Luz?

Os três menearam a cabeça negativamente, e Herac explicou: – Não posso falar por Akama, mas Estes e eu éramos simples artesãos, sem familiaridade com qualquer tipo de arma. Foi por isso que nos mandaram para as cavernas, para sermos a última linha de defesa.

Korin dirigiu-se a Nobambo:

– Quando escapaste, mais alguém conseguiu ir contigo? Houve mais sobreviventes? Ouvimos os orcs nos níveis inferiores, mas não queríamos correr o risco de sermos descobertos, então fugimos.

Nobambo pensou nas pilhas de corpos no Bairro Inferior... Ouviu as súplicas vindas do Terraço dos Aldor, tentou expulsar da mente os gritos das fêmeas torturadas.

– Não – respondeu. – Não sei de mais ninguém.

Estações se passaram.

Velen, o profeta líder dos draeneis, visitara os sobreviventes havia dois dias... ou seriam quatro?

Ultimamente, Nobambo estava tendo dificuldade em lembrar de algumas coisas. Velen viera de um dos acampamentos vizinhos.

A localização exata dele era um segredo guardado a sete chaves, dado o risco de alguém ser sequestrado e torturado. Ninguém poderia revelar informações que não conhecesse. De qualquer forma, Velen falara com eles sobre o futuro que os aguardava, sobre a importância de permanecerem discretos por muito tempo, possivelmente por anos, para observar e aguardar o que aconteceria com os orcs.

De acordo com Velen, os orcs haviam dado início à construção de algo que parecia tomar todo o tempo e todos os recursos deles. O projeto tinha, aparentemente, desviado a atenção dos monstros esverdeados da caça aos draeneis, ao menos por ora. O que estavam construindo, não muito longe da principal cidadela órquica nas terras calcinadas, parecia ser algum tipo de portal.

Velen parecia saber muito mais do que havia contado, mas ele era, afinal de contas um profeta, um vidente. Nobambo pensou que o nobre sábio devia saber muitas coisas, coisas que ele e outros simplesmente não entendiam por faltar-lhes a sabedoria necessária.

Mais tarde, Nobambo assistia a Korin entrar na água com uma lança de pesca quando reparou que algo nela parecia diferente. Ele tinha a impressão de que o físico dela havia mudado nas últimas semanas. Os antebraços estavam ligeiramente maiores; o rosto dela parecia sem energia; e a postura dela havia se deteriorado. Por mais improvável que isso soasse, a cauda parecia ter encolhido.

Herac e Estes se aproximaram, e Nobambo podia jurar ter notado transformações similares neles. Ele olhou para baixo, para os próprios antebraços. Estaria ele imaginando coisas, ou eles pareciam inchados mesmo? Ele não se sentia bem desde... desde aquela noite. Mas imaginou que se recuperaria com o tempo. Agora, estava ficando cada vez mais preocupado.

Korin se aproximou e disse, entregando a lança para Nobambo: – Por hoje, chega. Preciso me deitar.

– Você está bem?

Korin tentou sorrir, mas faltava-lhe convicção. – Estou só cansada – respondeu.

Nobambo sentou no topo das montanhas que se debruçavam sobre o Pântano Zíngaro e fechou os olhos. Sentia-se extremamente cansado, e estava ali para ficar só. Fazia dias que não via Korin. Ela, Estes e Herac haviam se enfiado em uma caverna. Nobambo perguntou aos demais membros do acampamento como estavam os amigos, mas deram-lhe de ombros, ignorantes da situação. Quanto ao draenei chamado Akama, ele permanecia sem reação, quase morto apesar dos esforços de Rolc.

Algo estava muito errado. Nobambo sabia: ele havia percebera as mudanças em si próprio e nos outros sobreviventes, inclusive em Akama. O restante do acampamento também sabia. Os companheiros pareciam se dirigir a ele cada vez menos, inclusive o Rolc. E, noutro dia, quando Nobambo havia retornado ao acampamento com alguns peixes pequenos, disseram-lhe que já tinham o bastante e que ele próprio deveria comê-los... como se o mal que afetava ele e os outros, qualquer que fosse, pudesse ser transmitido pela comida manipulada por ele.

Nobambo estava enojado. Tudo que fez pela raça não significara nada? Ele passou a gastar horas e horas no alto das montanhas, contemplando quietamente, forçando a mente a se concentrar, tentando desesperadamente conseguir o que permanecia inatingível: acessar a Luz.

Era como se uma porta lhe tivesse sido fechada, como se a parte da mente dele que era capaz de contactá-la tão facilmente não mais funcionasse ou, pior ainda, não existisse mais.

Até atividades simples como essas faziam a cabeça dele doer. Ultimamente, estava ficando cada vez mais difícil articular os pensamentos. Os braços continuaram a inchar, um inchaço que não ia embora, e os cascos começaram a se estilhaçar. De fato, pedaços deles haviam caído e não tornaram a crescer. E, enquanto isso, os pesadelos... os pesadelos persistiam.

Ao menos, as patrulhas órquicas haviam se tornado menos frequentes. Os relatórios dos batedores davam conta de que, seja lá o que fosse que os orcs estavam construindo, estava quase tudo completo. E parecia se tratar de alguma espécie de portal, exatamente como Velen previra.

“Bom”, pensou Nobambo. “Espero que os orcs passem por aquilo e apareçam no inferno.”

O combalido draenei se ergueu e, lenta e deliberadamente, tomou o caminho de volta ao acampamento, grato por poder apoiar-se no martelo, o qual havia se tornado tão pesado ao longo das últimas semanas que era preciso carregá-lo de cabeça para baixo, usando-o, sobretudo, como bengala.

Horas depois, Nobambo chegou ao destino e decidiu falar com Rolc. Juntos, eles poderiam convocar uma reunião para tratar da questão da intolerância crescente exibida por...

Nobambo parou na entrada da caverna de Rolc. Korin estava lá, deitada sobre um cobertor.

Estava tão transformada que já não se parecia como uma draenaia, mas como um arremedo da raça. Ela estava adoecida e esquálida. Seus olhos estavam amarelados, e seus antebraços estavam muitíssimo inchados. Os cascos estavam destruídos a ponto de não restar nada além de duas protuberâncias ósseas, e a cauda não passava de um cotoco diminuto. Apesar da aparência frágil, ela se debatia nos braços de Rolc.

– Eu quero morrer! Eu só quero morrer! Não aguento mais essa dor!

Rolc a segurava com firmeza. Rapidamente, Nobambo inclinou-se para perto dela.

– Não sejas tola! – Nobambo olhou para Rolc. – Não podes curá-la?

O sacerdote deu de ombros para o amigo. – Eu tentei!

– Solta-me! Deixa-me morrer!

Um brilho emanou das mãos de Rolc, o que acalmou Korin, subjugando-a gentilmente até apaziguar a agitação e, finalmente, cessá-la por completo. A draenaia começou a chorar copiosamente e se encolheu em posição fetal. Rolc fez um movimento com a cabeça, indicando que eles deveriam sair da caverna.

Uma vez lá fora, Rolc olhou fixamente para Nobambo. – Fiz tudo que eu sabia. É como se o corpo dela, assim como sua vontade, tivessem sido degradados.

– Deve haver algo que possa... Alguma forma de... – Nobambo lutava para comunicar seus pensamentos adequadamente. – Temos de fazer alguma coisa! – afirmou, finalmente.

Rolc ficou em silêncio por um momento. – Estou preocupado com eles e contigo. Temos recebido relatórios a respeito de sobreviventes de Shattrath em outros acampamentos que estão passando pela mesma situação. Seja lá o que isso for, não está respondendo a qualquer tipo de tratamento e não está melhorando. O nosso povo teme que, se providências não forem tomadas, estaremos todos perdidos.

– O que estás dizendo? O que aconteceu?

– É só conversa – Rolc suspirou – por enquanto. Tentei ser a voz da razão, mas nem mesmo eu sou capaz de defende-te e os demais por muito tempo. E, com toda franqueza, nem sei se eu deveria.

Nobambo estava amargamente decepcionado com o amigo, a única pessoa em quem ele podia confiar, e que agora sucumbia à mesma mentalidade limitada e paranoica dos outros.

Sem palavras, Nobambo deu-lhe as costas e foi embora.

O estado de Korin piorou, e a decisão que Nobambo temia, aquela mencionada por Rolc, foi finalmente tomada alguns dias depois.

Nobambo, Korin, Estes e Herac foram reunidos perante os membros do acampamento. Alguns estavam com expressões sombrias; uns pareciam tristes; outros, impassíveis. Quanto a Rolc, ele parecia resoluto apesar do conflito, tal como um caçador que prefere não matar, mas sabe que precisa comer e está se preparando para desferir um golpe fatal na presa.

No final das contas, Rolc havia sido escolhido pelo acampamento como porta-voz:

– Isso não é fácil para mim, tampouco para qualquer outro aqui... – Apontou para a assembleia estoica atrás de si. – Mas conversamos com representantes dos outros acampamentos e, juntos, chegamos a uma decisão. Acreditamos que será melhor para todos os envolvidos se os...

afligidos... se juntarem, mas... separados dos demais, que estão saudáveis.

Korin, que parecia particularmente devastada, indagou rispidamente: – Estamos sendo banidos?

Antes que Rolc pudesse responder, Nobambo interrompeu: – É exatamente isso! Não conseguem resolver os nossos problemas, então eles... eles acham que podem nos ignorar! Eles nos querem longe!

– Não temos como ajudar-vos! – exclamou Rolc. – Não sabemos se essa doença é contagiosa, e a capacidade física reduzida, as faculdades mentais debilitadas são um risco que não podemos assumir. Somos muito poucos para nos permitirmos correr riscos!

– E quanto ao outro, o Akama? – Korin perguntou.

– Ficará aqui, sob meus cuidados, até acordar – respondeu Rolc – se ele acordar.

– Quanta gentileza a tua – Nobambo resmungou, sarcástico.

Rolc se pôs de pé, desafiadoramente, perante Nobambo. Apesar da saúde precária, Nobambo se empertigou e encarou Rolc.

– Tu próprio disseste se perguntar se a Luz silenciou-se para punir-te pelo fracasso em Shattrath – disparou Rolc.

– Dei tudo de mim em Shattrath! Eu estava preparado para morrer para que tu, para que todos pudessem viver!

– Sim, mas tu não morreste.

– Mas o que estás... Estás dizendo que desertei?

– Acho que, se a Luz abandonou-te, ela o fez com razão. Quem somos nós para questionar a Luz? – Rolc olhou para trás em busca de apoio dos demais. Alguns desviaram o olhar, mas muitos não. – Qualquer que seja o caso, acho que é hora de aceitares tua nova posição na ordem das coisas. Acho que é hora de levar o bem-estar dos demais em consideração...

Rolc se abaixou e arrancou o martelo das mãos de Nobambo.

– E acho que está na hora de parares de tentar ser algo que não és.

“Foi um erro vir aqui. Nada mudou. Você ainda é krokul? Você permanece degradado.”

Não. Eles iriam ouvir. Ele os faria ouvir. Havia, afinal de contas, a epifania. Nobambo desviou os olhos do grupo para a fonte no centro da pequena praça. Daquela água, ele pediu clareza.

O degradado sentiu os pensamentos ganhando foco. Agradeceu à água e, apoiando-se fortemente em sua bengala, forçou-se a confrontar o mar de olhares de desaprovação. Houve um momento de silêncio desconfortável.

– Isso é uma tolice – alguém sussurrou.

De início, ao tentar falar, a voz de Nobambo soou pequena e rouca, distante até mesmo para os seus próprios ouvidos. O degradado limpou a garganta e recomeçou, com mais potência: – Eu vim aqui para... falar com vocês sobre...

– Estamos desperdiçando nosso tempo. O que um krokul tem a dizer para nós?

Mais vozes de discordância engrossaram o coro. Nobambo fraquejou. Seus lábios se moviam, mas a voz não saía.

“Eu estava certo. Isso foi um erro.”

Nobambo virou de costas para ir embora e olhou dentro dos olhos plácidos do profeta, o líder dos draeneis, Velen.

– Vais a algum lugar? – O vidente olhou para Nobambo, criticando-o.

***************

Nobambo sentou no alto de uma montanha de onde se podia avistar as terras calcinadas. Elas não haviam mudado muito nos últimos... Quanto tempo fazia desde a primeira vez que ele se aventurara aqui? Cinco anos? Seis?
Quando ele e os demais foram exilados para o novo acampamento dos krokul, como eles finalmente começaram a ser chamados, Nobambo estava frustrado e deprimido. Foi ao ponto mais distante possível na única direção que lhe foi permitida. Sempre quisera investigar os picos na fronteira do Pântano Zíngaro, mas na base dessas montanhas ficavam os acampamentos dos que não foram “afetados”, uma região agora proibida para a “espécie” dele.

E assim, ele se aventurou em meio ao calor escaldante até os picos muito acima dos desertos mais desolados de Draenor; desertos que um dia foram clareiras verdejantes, antes da política de ódio e genocídio dos orcs; desertos criados por bruxos e suas magias perversas.

Ao menos os orcs eram um problema menor nessa época. Alguns grupos errantes ainda patrulhavam, e eles ainda matavam draeneis assim que os avistavam. Contudo, os selvagens de pele verde estavam em menor número. Muitos deles partiram através do portal havia anos e não voltaram.

Como resultado, os draeneis começaram a construir uma nova cidade em algum lugar do pântano, como soube Nobambo. “Mas isso não importa”, ele pensou. “É uma cidade à qual nunca serei bem-vindo”.

As mudanças em Nobambo e nos demais continuaram. Apêndices surgiam onde, antes, havia pele lisa. Manchas e verrugas e estranhas protuberâncias cresciam pelo corpo todo. Os cascos, uma das características mais particulares dos draeneis, já não existiam, substituídos por coisas que, agora, lembravam pés malformados. E tais alterações não se restringiam ao físico. Seus cérebros lutavam mais e mais para manter as funções superiores. E alguns, alguns se perderam por completo, tornando-se cascas ocas que perambulavam sem rumo, conversando com plateias que só existiam em suas mentes. Alguns desses Perdidos simplesmente acordavam um dia e partiam para nunca retornar. Um dos primeiros a fazer isso foi Estes. Agora, restava a Korin apenas um dos companheiros com os quais ela viveu aqueles momentos sombrios em Shattrath.

“Basta”, pensou Nobambo. “Pare de enrolar. Faça o que você veio fazer”.

O krokul procrastinava porque parte dele sabia que esta vez não seria diferente das outras. Mas, ainda assim, ele o faria, assim como ele havia feito todo dia ao longo das últimas semanas...

porque, de alguma forma, uma parte dele ainda tinha esperança.

Ele fechou os olhos, expulsou todos os pensamentos externos da mente e tentou alcançar a Luz.

“Por favor, só esta vez... permita-me saciar a minha sede da sua radiante glória”.

Nada.

“Insista.”

Nobambo se concentrou com cada grama de foco que lhe restava.

“Nobambo.”

O krokul quase saltou para fora da própria pele, seus olhos arregalando-se enquanto ele se apoiava com a mão. Olhou em volta e, então, mirou o céu.

“Encontrei você!”

Nobambo viu Korin e suspirou profundamente, balançando a cabeça. Korin chamou-lhe a atenção:

– Você já deveria saber que a Luz não voltará a lhe favorecer.

Ela se aproximou e sentou ao lado de Nobambo, parecendo esgotada e algo confusa.

– Como você está? – perguntou o krokul.

– Não pior que o normal.

Nobambo esperava mais palavras, contudo Korin simplesmente observava a paisagem hostil.

Despercebida pelos dois, uma figura os espiava de uma pilha de pedras, observando. Ouvindo.

– Você queria me contar alguma coisa?

Korin ponderou por um momento e finalmente disse: – Ah, sim! Um novo membro chegou ao acampamento hoje. Disse que os orcs estavam... se reagrupando. Preparando-se para alguma coisa. Eles estão sendo comandados por um novo...

como eles chamam? Aqueles que fazem magia negra?

– Bruxo?

– Sim, acho que era isso. Korin se levantou e deu um passo à frente, parando a poucos centímetros da beirada do penhasco. Ficou em silêncio por um longo momento.

Não longe dali, a figura atrás das pedras partiu tão silenciosamente quanto chegara.

Os olhos de Korin estavam distantes, e da mesma forma soava a voz rouca, como se ela não estivesse inteiramente presente. – O que você acha que aconteceria se eu desse mais alguns passos?

Nobambo hesitou, sem saber ao certo se ela estava ou não brincando: – Acho que você cairia.

– Sim, o meu corpo cairia. Mas, por vezes, acho que espírito... voaria? Não, não é essa a palavra.

Qual é a palavra?... Subir e subir, como se eu estivesse voando?

Nobambo pensou e respondeu:

– Flutuar?

– Sim! O meu corpo cairia, mas o meu espírito flutuaria.

Dias depois, Nobambo acordou com a cabeça doendo e o estômago vazio. Decidiu sair e ver se restava algum peixe da refeição da noite anterior.

Enquanto saía da caverna, ele notou que os demais estavam reunidos, olhando para cima, protegendo os olhos. Ele saiu debaixo de um cogumelo gigante, ergueu os olhos e também foi forçado a protegê-los, boquiaberto.

Uma fenda aparecera ao longo do céu avermelhado da aurora. Era como se um rasgo tivesse sido aberto na malha do mundo, permitindo a intrusão de luzes estonteantes e de alguma espécie de energia crua e inacreditavelmente poderosa. A fenda ondulava e dançava tal como uma imensa serpente de pura luz.

O chão começou a tremer. A pressão se acumulava na cabeça de Nobambo, ameaçando explodir-lhe os ouvidos. A eletricidade estalava no ar, os pelos do corpo de Nobambo se arrepiaram e, por um breve e enlouquecedor instante, parecia que a própria realidade estava se desfazendo.





Enquanto Nobambo assistia ao terrível espetáculo, por um breve segundo os degradados reunidos se separaram em várias imagens espelhadas: algumas mais velhas, outras mais jovens, algumas não degradadas, mas sim bastante saudáveis e não afetadas. E, então, a ilusão se foi. O chão se moveu como se Nobambo estivesse sobre um carro que, de repente, começara a se mover. Ele e os demais foram lançados à lama e ali ficaram enquanto o tremor continuava.

Após alguns momentos, o tremou diminuiu gradualmente até finalmente parar. Korin estava com os olhos arregalados e fixos na fenda, que agora se fechava, e só conseguiu sussurrar: – Nosso mundo está chegando ao fim.

O mundo deles não acabou. Mas chegou perto disso.

Quando, no dia seguinte, Nobambo retornou ao seu lugar de costume no alto das montanhas, avistou um horizonte enlouquecido. Fumaça se espalhava pelo céu, lançando uma nuvem negra sobre a terra. O ar queimava-lhe os pulmões. Na base do penhasco, uma fissura gigante se abrira e emanava vapor. Nobambo se inclinou e viu um brilho fraco no fundo da fissura.

Grandes pedaços de terra foram arrancados do solo desértico e flutuavam inexplicavelmente no ar. Partes do céu pareciam como que janelas para... algo. Nobambo tinha a impressão de conseguir vislumbrar outros mundos através das aberturas, alguns distantes, outros próximos, mas não sabia dizer se eram reais ou alguma ilusão provocada pela catástrofe.

E, por todo canto, em todo lugar, imperava um silêncio quase absoluto, como se as criaturas da região tivessem morrido ou fugido para algum esconderijo remoto. Mesmo assim, Nobambo sentia que não estava só. Por um breve instante, pensou ter apanhado um movimento furtivo com o canto do olho. Olhou ao redor, em parte esperando encontrar Korin.

Nada. Apenas um truque da sua mente perturbada.

Nobambo olhou mais uma vez para a paisagem horrenda à frente e se perguntou se o futuro próximo traria o fim de tudo que ele conhecia.

Mas o tempo passou e a vida, tal como estava, seguiu adiante. Relatórios chegavam ao acampamento sobre regiões inteiramente destruídas. Mas o mundo sobrevivera.

Sofrido, deformado e atormentado... Assim o mundo sobrevivera, como os degradados. Eles comiam nozes e raízes e os poucos peixes que conseguiam encontrar no pântano. Ferviam a água e se abrigavam de tempestades diferentes de todas já vistas, mas sobreviveram. À medida que as estações passaram, os animais retornaram. Alguns de espécies que não existiam antes.

Mas, sim, a fauna retornou. Quando os degradados tinham a sorte de uma caçada bem-sucedida, comiam carne. Eles sobreviveram.

Ao menos, a maioria deles. Há alguns dias, Herac desaparecera. Ele andava distante e confuso havia muitos meses e, apesar de Korin não comentar o assunto, tanto ela quanto Nobambo sabiam que ele estava perto de se juntar aos perdidos. Herac era o último dos protetores de Korin em Shattrath, e Nobambo lamentava a perda por que ela passara.

E, apesar de não falar a respeito, Nobambo se perguntava se também poderia perder o controle da própria sanidade e partir pelo desconhecido para nunca voltar, tornando-se pouco mais do que uma memória, se tanto.

O krokul continuou a vigília diária, peregrinando ao remoto topo da montanha, de alguma forma mantendo a esperança de que, um dia, se ele cumprisse o castigo e fizesse por merecer tal graça, a Luz voltaria a brilhar sobre seu espírito.

Todos os dias, Nobambo voltava decepcionado ao acampamento.

E, todas as noites, ele sofria com o mesmo pesadelo terrível.

Nobambo via-se em frente a Shattrath, batendo os punhos contra os portões fechados enquanto os gritos dos moribundos se estilhaçavam na atmosfera da noite. Sua mente consciente sabia que isso não passava de mais um sonho, outro pesadelo, e se perguntava se, desta vez, tudo se passaria igual a todas as outras.

O krokul batia repetidamente contra a madeira até as mãos machucadas começarem a sangrar.

Lá dentro, crianças e mulheres morriam de forma lenta e horrível. Um a um, os gritos cessavam até restar apenas um último lamento atormentado. Ele reconhecia aquele choro: era a voz que ecoara pela Mata Terokkar quando ele escapou da cidade.

Mas esse lamento logo cessava também, e nada restava além do silêncio. Nobambo se afastava dos portões, olhando para o próprio corpo frágil, deformado e imprestável. Ele tremia e chorava, aguardando o inevitável despertar.

Um rangido ecoou enquanto os portões se abriam lentamente. Nobambo olhou para cima com os olhos arregalados. Isso nunca acontecera antes. Isso era novo. Qual seria o significado disso?

As enormes portas revelaram um Bairro Inferior vazio, as paredes e as muralhas internas iluminadas por uma única e grande fogueira.

Nobambo entrou, atraído pelo calor das chamas. Olhou ao redor, mas não havia corpos, nenhum sinal da carnificina além de algumas armas abandonadas em torno da fogueira.

Um trovão soou levemente e Nobambo sentiu uma gota de chuva no braço. Deu mais um passo à frente e os portões gigantes se fecharam atrás dele.



Então, ouviu ruídos, algo se arrastando do outro lado da fogueira, aproximando-se. Ele não carregava arma alguma, nem sequer a bengala, e saber que se tratava de um sonho em nada aliviou-lhe a sensação de perigo. Preparou-se para agarrar um tição da fogueira quando viu uma draenaia se aproximar da luz.

A chuva persistia.

Nobambo sorriu de início, feliz em ver que um deles havia sobrevivido, mas o sorriso logo se foi quando viu que ela ostentava um corte sangrento na garganta e hematomas pelo corpo. O braço esquerdo dela estava dependurado e inútil. Ela o encarava com olhos vazios, mas havia algo mais no semblante dela... algo de acusação. À medida que a draenaia se aproximava, Nobambo percebeu que se tratava de Shaka. Logo, outras se juntaram a ela, multidões delas, cambaleando adiante, pelos dois lados, com os olhos vitrificados e os corpos terrivelmente mutilados.

O vento se intensificou, atiçando o fogo. A chuva se tornou um temporal. Uma a uma, as mulheres se abaixavam para pegar as várias armas dispostas pelo chão de terra e avançavam. Nobambo agarrou uma tocha da fogueira.

“Eu queria ter salvado vocês! Não havia nada que eu pudesse fazer”, ele queria gritar, mas as palavras não saíam. Sentia os movimentos lentos e restritos.

O vento tornou a soprar forte e apagou a tocha que Nobambo carregava. As mulheres chacinadas se aproximavam com as armas erguidas enquanto o vento lambia as chamas da fogueira até ela também se apagar, deixando Nobambo na escuridão total.

Ele esperou, ouvindo... tentando escutar os sons da aproximação delas em meio à tempestade.

Subitamente, uma mão gélida se fechou em torno do pulso de Nobambo, que gritou...

E despertou, sentindo-se exausto, mais cansado do que ao deitar. Esses sonhos lhe eram custosos.

Nobambo decidiu que o ar da manhã haveria de lhe fazer algum bem. Talvez Korin estivesse acordada e eles pudessem conversar.

Nobambo saiu e foi até onde alguns dos demais estavam reunidos para a refeição matinal.

Perguntou se algum dos novos membros sabia onde estava Korin.

– Ela partiu.

– Partiu? Para onde? Quando?

– Há alguns instantes. Ela não disse para onde. Ela estava estranha... disse que ia... Qual é mesmo a palavra?

O degradado parou momentaneamente, pensou e, então, fez que sim com a cabeça ao lembrar.

– É isso. Ela disse que ia flutuar.

Nobambo correu o mais rápido que as pernas permitiam. Mas, quando conseguiu chegar nos picos, seus pulmões estavam em chamas. Ele tossia e expelia muco verde e espesso, e suas pernas tremiam descontroladamente.

No platô que levava ao penhasco, Nobambo viu Korin de pé perante o abismo, olhando para baixo.

– Korin! Pare!

Ela olhou para trás, esboçou o mais sutil dos sorrisos e, então, olhou para a frente e deu um passo silencioso ao vazio, desaparecendo em meio a uma densa nuvem de vapor.

Nobambo aproximou-se do abismo e olhou para baixo, mas viu nada além daquele brilho fraco muito distante.

“Você chegou tarde demais.”

Mais uma vez, ele falhara, assim como falhou em salvar as mulheres de Shattrath. Nobambo cerrou os olhos com firmeza e chamou a Luz com a mente: “Por quê? Por que você me abandonou? Por que você continua a me atormentar? Não fui seu servo fiel?”

Ainda nenhuma resposta. Apenas uma brisa gentil enxugando-lhe as lágrimas do rosto.

Talvez Korin estivesse certa. Nobambo sabia, no fundo, exatamente por que ela fez o que fez: não queria acabar como os perdidos. Talvez ela tenha encontrado a única saída.

Este mundo não tinha mais coisa alguma para ele. Parecia tão fácil dar esses últimos passos, lançar-se abismo adentro e dar um basta ao sofrimento.

Perto dali, uma figura saiu de trás de um monte de pedras e se preparou para chamar...

Mas, mesmo agora, renegado pelo próprio povo, ignorado pela Luz, atormentado pelas almas daqueles que não conseguira salvar... Nobambo percebeu que desistir não era uma opção.

A brisa, então, virou ventania, espalhando nuvens de vapor e soprando com tanta força que Nobambo foi afastado do precipício. Em meio a isso, ele ouviu claramente uma única palavra: – Tudo...

Nobambo se esforçou para ouvir. Por certo sua sanidade chegara ao fim. Por certo isso era uma ilusão da sua mente.

A figura próxima às pedras tornou a se esconder, continuando a observar silenciosamente.

O vento se intensificou cada vez mais. – Tudo que é...

Mais palavras. Que loucura era essa? Isso não era coisa da Luz. A Luz não “falava”: ela era um calor que permeava o corpo. Isso era algo novo, algo diferente. Uma rajada de vento atravessou o platô, forçando Nobambo a se sentar.

– Tudo que existe... tem vida.

Depois de implorar por todos esses anos, Nobambo finalmente recebera uma resposta, uma resposta que não viera da Luz...

Mas do vento.

Nobambo já ouvira falar de práticas órquicas que lidavam com os elementos: terra, vento, fogo e água. O povo dele testemunhara alguns dos poderes desses “xamãs” antes da campanha assassina dos orcs, mas tais coisas eram totalmente estranhas para os draeneis.

Ao longo dos vários dias seguintes, Nobambo retornou ao pico onde ouvira o vento sussurrando garantias de que não estava só, promessas e a irresistível sugestão de que uma fartura de conhecimento o aguardava. Por vezes, a voz do vento era calma e apaziguadora; outras, era insistente e invasora. Enquanto isso, uma dúvida persistia na mente de Nobambo: talvez ele estivesse enlouquecendo, afinal de contas.

No quinto dia, ao sentar-se novamente à beira do penhasco, Nobambo escutou um estrondo que pareceu-lhe um trovão, embora o céu estivesse limpo. O krokul abriu os olhos e percebeu uma enorme coluna de fogo brotando da fissura no solo e elevando-se para além do cume da montanha. As chamas se espalharam, e naquele bruxulear de fogo Nobambo enxergou formas nebulosas metamorfoseando-se contra a luz. O fogo falou, ribombante como uma tempestade: – Vá às montanhas de Nagrand. Por entre os picos você encontrará o lugar... onde sua verdadeira jornada se iniciará.

Nobambo pensou alguns instantes antes de responder: – Para chegar lá, terei que atravessar as terras dos incólumes, por onde não posso passar.

O krokul sentiu o rosto afogueado, conforme as chamas inflamavam-se ainda mais: – Não questione a oportunidade que lhe está sendo dada!

O fogo arrefeceu e continuou:

– Caminhe com a cabeça erguida, pois você não mais está sozinho.

Não muito longe dali, o observador agachou-se atrás de um esconderijo. Embora não fosse possível escutar os elementos, as labaredas e as imagens bruxuleantes eram claramente visíveis. Se Nobambo pudesse olhar nos olhos do vigia naquele instante, teria visto puro assombro.

Nos dias seguintes, Nobambo cumpriu a árdua travessia sentindo o vento soprando-lhe às costas e sussurrando-lhe o tempo todo. Descobriu que os xamãs órquicos comungavam com os elementos, mas que tal união rompeu-se quando os orcs voltaram-se para a magia negra.

O krokul poderia ter aprendido mais, contudo nem sempre conseguia entender a mensagem por inteiro, como se a comunicação estivesse filtrada ou restrita.

Por diversas vezes Nobambo pensou ouvir passos atrás de si, e sempre que procurava a origem do ruído tinha a impressão de que alguém ou alguma coisa escondia-se. Perguntava-se se seriam os elementos ou mero fruto de sua imaginação.

Ao chegar ao acampamento dos incólumes, o sol já havia se posto há tempos. No entanto, a aproximação certamente fora percebida, pois dois guardas o aguardavam nos limites do território.

– O que queres aqui? – indagou o guarda mais forte.

– Meu propósito é apenas chegar às montanhas.

Outros membros do acampamento surgiram, observando Nobambo com desconfiança.

– Nossas ordens são claras: é proibida a presença de krokuls nos campos. Terás de ir a outro lugar.

– Não quero permanecer no seu acampamento, apenas atravessá-lo – Nobambo retrucou dando um passo à frente.

O guarda empurrou Nobambo:

– Eu avisei que...

Um ensurdecedor trovão interrompeu-o, e nuvens negras tomaram o céu claro, despejando um dilúvio. O vento gentil que impulsionou Nobambo agora soprava com fantástica violência, empurrando os guardas para trás. Surpreendentemente, o vento e a chuva desviavam-se de Nobambo e açoitavam apenas os guardas, que caíram na lama.

O krokul observou tudo com os olhos arregalados de espanto: – Então isso é o que acontece – refletiu em voz alta, sorrindo – quando se tem os elementos como aliados.

Os membros do acampamento correram para as cavernas. Os guardas paralisaram-se de medo.

Nobambo prosseguiu lentamente apoiando-se no cajado, atravessou o acampamento e, por fim, chegou ao sopé das montanhas, deixando para trás draeneis estarrecidos, amedrontados e confusos.

A criatura que vinha seguindo Nobambo saiu do esconderijo atrás de um cogumelo gigante. Não ousaria avançar pois, afinal de contas, era um krokul.

Os acontecimentos que Akama acabara de testemunhar plantaram-lhe uma semente na alma.

Desde que acordara do longo sono, sentira apenas desespero e um perturbador medo do futuro.

No entanto, o que Nobambo acabara de fazer, a visão dos elementos levantando-se em defesa de um krokul, despertaram sentimentos que Akama temia estarem extintos há muito tempo.

Esperança.

Com novo entusiasmo, Akama voltou, calmamente, para o pântano.

Horas mais tarde, exausto, Nobambo escalou até o alto das montanhas, onde começou a ver sinais de flora verdejante. Seu passo diminuiu, devido ao cansaço, mas o vento o impulsionou, e a terra sob seus pés pareceu conferir-lhe forças. A chuva não cedeu, mas dava a impressão de molhar toda a terra menos Nobambo, e formou córregos onde o krokul aplacava a sede.

Ao aproximar-se do cume, Nobambo começou a escutar vozes simultâneas: uma grave e persistente, seguida pelo sussurro familiar do vento e pelo estrondo ocasional do fogo.

As vozes chocavam-se caoticamente, ansiosas por se comunicarem, em uma cacofonia que forçou o krokul a deter-se:

– Basta! Não consigo entendê-los ao mesmo tempo.

Nobambo reuniu a pouca força que lhe restava e chegou ao topo de uma montanha que se abria para uma paisagem luxuriante. Ali descortinava-se a Draenor de outrora: fértil e serena, um belo refúgio coberto de jardins, cachoeiras e vida em ebulição.

– Perdoe-os. Há muito não sentem a influência apaziguadora de um xamã. Estão todos raivosos, confusos e ainda atordoados com o golpe que lhes foi desferido.

– O cataclismo! – exclamou Nobambo ao avançar por entre aquele cenário tranquilo. O krokul ajoelhou-se e bebeu de um lago, o que o fez sentir imediatamente rejuvenescido. Percebia a mente ampliada. Os pensamentos tornaram-se parte do ambiente, que, por sua vez, tornou-se parte de Nobambo.

A voz que respondeu ao krokul soava clara e calma, ainda que potente: – Sim. Talvez eu tenha sido o menos afetado, e sempre é assim. É fundamental que eu me adapte rapidamente, pois de mim vêm as bases da vida.

– Água! – concluiu Nobambo, não apenas ouvindo a afirmativa, mas sentindo-a.

– Bem-vindo. Aqui, neste tranquilo refúgio, os elementos coexistem em relativa paz. A comunicação entre nós ficará mais fácil, em especial nas primeiras etapas da sua jornada, enquanto você não aprender a perceber nossas mensagens sem racionalizar. Ainda demorará até que você atinja o verdadeiro conhecimento e a completa compreensão. No entanto, se você não se desviar do caminho, com o tempo poderá nos evocar... mas jamais comandar. E, ainda assim, se houver respeito, e se suas motivações permanecerem altruístas, nunca o abandonaremos.

– Por que vocês me escolheram?



– O cataclismo nos lançou em turbulência e incertezas. Por algum tempo ficamos perdidos. E, em você, reconhecemos o mesmo espírito, confuso e desamparado. Levou tempo até que nos recuperássemos o suficiente para entrar em contato novamente, e esperávamos que você fosse... receptivo.

Nobambo mal podia acreditar. “Mas e a Luz? Estaria renunciando a ela se escolhesse esse novo caminho? Estaria traindo-a? Seria tudo um teste?”

“O risco valeria a pena se...”

– Poderei usar essas habilidades para ajudar meu povo?

– Sim. A relação entre os elementos e o xamã é sincrônica. A influência do xamã nos acalma e une, e nossa influência enriquece e preenche o xamã. Ao terminar seu treinamento, você poderá invocar os elementos em momentos de necessidade. Se julgarmos seu propósito como justo, ajudaremos de todas as formas possíveis.

O verdadeiro entendimento, como a Água garantira, levou anos. Com o tempo, no entanto, Nobambo compreendeu as energias vitais do ambiente. Entendeu que, desde as maiores criaturas de Draenor até um único e aparentemente insignificante grão de areia, tudo está animado por energia vital, e como tal é conectado e interdependente, não importa a localização geográfica nem a polaridade das forças. E mais: Nobambo sentia tal energia como parte de si, forças que faziam parte dele verdadeiramente, como confirmara naquele momento.

Os elementos mantiveram a promessa e concederam ao krokul características da natureza deles. Da Água, recebeu objetividade e paciência: pela primeira vez em anos, pensava com clareza. Do Fogo recebeu paixão, apreço renovado à vida e desejo de superar obstáculos. A Terra lhe concedeu determinação inabalável e vontade férrea. Com o Vento, por sua vez, aprendeu coragem e persistência: como ir a fundo e avançar defronte adversidades.

Uma lição fundamental faltava-lhe, no entanto. Nobambo sabia, sentia que os elementos estavam guardando algo, um conhecimento que ele ainda não estava pronto para receber.

E... restavam os pesadelos. Conseguira algum alívio, mas noite após noite Nobambo via-se esmurrando os portões de Shattrath, atormentado pelos gritos dos moribundos. E, ao entrar na cidade e aproximar-se da fogueira, os mortos acusatórios e Korin apareciam lado a lado.

O xamã sentiu a voz suave da Água:

– Percebemos que você ainda está em conflito.

– Sim. Os espíritos dos mortos de Shattrath ainda me assombram. Os elementos poderiam me ajudar?

– Tal conflito não provém dos espíritos dos que se foram, mas de você próprio. Como tal, terá de resolvê-lo sozinho.

– Essa batalha interior impedirá que eu realize meu verdadeiro potencial como xamã?

Nobambo percebeu um riso emanando dos lagos à volta. De todos os elementos, a Água era o mais alegre. – O seu conflito – respondeu o elemento – se reflete no céu sobre sua cabeça e no chão sob seus pés. Reflete-se em mim e, especialmente, no Fogo. É consequência da eterna luta da natureza para alcançar e manter o equilíbrio.

Nobambo ponderou por alguns instantes e concluiu: – Não importa quão longe eu seja levado pela minha jornada. O verdadeiro saber está no entendimento de que a caminhada jamais se encerra.

– Bom... Muito bom. É chegada a hora de você avançar mais um passo, uma etapa que poderá se mostrar a mais importante de todas.

– Estou pronto.

– Feche os olhos.

Assim Nobambo o fez. Sentiu a terra lhe faltando sob os pés, os elementos retirarem-se e, por um segundo aterrorizante, viu-se novamente em Shattrath, desamparado e sozinho no escuro.

Então sentiu... algo. Algo muito diferente dos outros elementais. Era avassalador: frio, mas não hostil. Diante daquilo, Nobambo percebeu-se muito, muito pequeno. Em seguida, ouviu aquela presença falar em uma profusão de vozes, femininas e masculinas, em uma harmônica sinfonia dentro e em torno de si.

– Abra os olhos.

Mais uma vez, Nobambo obedeceu. E mais uma vez experimentou um sentimento de diminuição, de insignificância, que intensificava-se conforme mergulhava num espaço escuro e infinito, repleto de uma miríade de mundos. Alguns como Draenor, e outros, imensas bolas de gelo e neve. Alguns cobertos de água, outros áridos e estéreis.

Subitamente Nobambo compreendeu... Algo aparentemente muito simples, embora tenha-lhe escapado completamente. Havia inúmeros mundos para além dali. Disso já sabia, pois seu povo havia viajado por muitos mundos antes de estabelecerem-se em Draenor. O que não percebera ainda era que o poder dos elementos estendia-se sobre tudo. Cada lugar possuía os próprios elementos, os próprios poderes a que recorrer.





E a descoberta não se resumia a isso. Ali, no éter, havia um outro elemento que parecia unir os mundos, composto de energia inimaginável. Se conseguisse evocar tal força... Nobambo percebeu, no entanto, que não atingira absolutamente a vivência necessária para comungar com tal elemento misterioso. Sua experiência ali tratava-se apenas de um lampejo, uma dádiva de conhecimento.

Uma epifania.

Os cristalinos olhos azuis de Velen avaliaram Nobambo, que protestava: – Eles não me ouvirão! Isso não é uma boa ideia!

Velen levantou o canto da boca com a mesma expressão que fizera Nobambo perceber que o conhecimento do profeta ia muito além da própria compreensão. – Após tudo por que passaste, tudo que superaste, estás realmente determinado a desistir agora?

– Não posso obrigá-los a me considerarem mais do que um krokul, apesar do que tenho a lhes ensinar.

– Talvez o verdadeiro problema não provenha deles.

“Os elementos disseram o mesmo”, lembrou o xamã.

Desde as conversas anteriores, Nobambo aprendera a não tentar adivinhar os pensamentos do profeta. Permaneceu em silêncio e aguardou.

Velen continuou:

– Consigo escutar os gritos que ecoam na tua mente, os lamentos das draenaias de Shattrath.

Sei do peso em teu coração. Tu questionaste se tua partida era ou não uma ato de covardia.

Nobambo concordou, subitamente tomado de emoção, e o profeta completou: – Uma parte de ti sabia, desde aquele tempo, que era imperativo que sobrevivesses, que mergulhasses no teu destino grandioso. E assim, ao longo de tantos testes, jamais desististe.

Por isso escolhi-te. Por isso, os elementos escolheram-te. Nosso povo chama-te de krokul, de degredado, mas creio que tu representarás nossa maior esperança.

Velen pôs a mão sobre o ombro de Nobambo suavemente e pediu: – Deixa-os ir. Deixa os gritos silenciarem.

Era verdade. Não era um covarde. Parte dele sabia, mas, com tudo que acontecera desde então, aquela porção dele havia se perdido. Nobambo suspirou profundamente. De alguma forma, estava certo de que, ao deitar-se naquela noite, não haveria pesadelos. Sentiu alegria nos elementos, como se eles estivessem... orgulhosos.

– Agora, pelo bem de todos nós, vai. Vai e aceita teu destino.

Nobambo voltou à plataforma. Os draeneis da assembleia conversavam entre si, prestando atenção nenhuma à frágil figura.

O xamã ergueu o cajado, e nuvens se formaram no céu azul, cobrindo com sombras todo o assentamento. Os draeneis silenciaram.

O chamado de Nobambo ecoou pelo pântano:

– Escutem e vejam.

Uma tempestade despejou-se sobre a praça. Relâmpagos saltaram por entre as lâmpadas do lugar, estilhaçando os vidros. Os draeneis, estarrecidos, observavam.

– Você estão aqui para aprender. Para, um dia, manipularem esses poderes, os poderes dos xamãs – Nobambo conclamou a multidão.

– Mas o xamanismo é uma prática dos orcs! – gritou um dos presentes, seguido por outros.

– Sim. Uma prática que eles abandonaram para comungar com demônios. Seguiremos agora a senda dos xamãs, um caminho que nos conduzirá a um futuro em que ninguém matará nossas mulheres... – Nobambo deteve-se,

mas manteve a voz firme –

nem nossas crianças. Um mundo em que krokuls e incólumes trabalharão juntos para realizar um sonho há muito esquecido por nosso povo: liberdade legítima.

Os membros da assembleia entreolharam-se, buscando aprovação nos rostos alheios, avaliando resistências. Por fim, chegaram à mesma conclusão: ouviriam as palavras de Nobambo.

– A jornada começa com estas simples palavras...

Nobambo riu. Nuvens ondularam. Relâmpagos correram e a chuva desabou ainda mais.

– Tudo que existe, tem vida.

Um comentário: