quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Busca por Pandaria parte 4



Além da proa da robusta embarcação tol'vir, estendia-se o mar azul sem fim. O Sol da tarde deixava um rastro brilhante na superfície da água, refulgindo como uma joia. Li Li inclinava-se na direção do vento, e o cheiro salino fazia com que ela se lembrasse dos dias cálidos nas praias de Shen-zin Su. Chen estava sentada à popa, repousando uma das mãos sobre o leme. Desde que deixaram Uldum, tinham traçado um curso para o sudeste.

Li Li voltou-se para o tio.
— Você não está empolgado? Finalmente estamos a caminho! Até a pérola está cooperando. Eu verifiquei três vezes, e ela sempre me mostra navegando.
Ela riu e deu um soquinho no ar.
— Próxima parada: Pandária!
Nenhum deles queria arruinar o bom humor, de forma que ambos preferiram não lembrar que a pérola ainda não mostrara como poderiam penetrar a névoa que cobria o lendário lar do seu povo. Seria melhor se preocupar com aquilo quando chegasse a hora.
Li Li assumiu o primeiro turno de vigília quando a noite caiu. A noite estava clara feito cristal e as estrelas eram pontos brilhantes contra o céu de veludo. As luas gêmeas de Azeroth brilhavam fantasmagoricamente, flutuando sobre o horizonte leste. Li Li encolheu as pernas e pôs um cobertor sobre os ombros para se proteger do frio ar marinho. Suas pálpebras ficaram pesadas e ela sentiu-se embalada pelo balançar sereno do barco e pelo som da água batendo no casco. Decidiu que não havia por que lutar contra o cansaço e fechou os olhos para dormir.
O impacto súbito de ser arremessada de cara no chão a acordou violentamente. Atordoada, Li Li ficou onde caíra, toda entortada.
Chen a sacudiu.
— Li Li, levante-se!
O barco chacoalhou outra vez, e ele caiu de joelhos.
— Uma tempestade se aproxima — disse Chen. — É melhor recolher as velas. Eu já prendi nossas coisas. — Na escuridão, Li Li não via sua expressão, mas a voz de Chen tinha um tom ansioso. Embora o barco Ramkahen fosse bem construído, seu tamanho reduzido o tornava bastante frágil em meio a uma tempestade em mar aberto.
O barco balançou forte outra vez. As ondas tinham crescido a ponto de ficarem perigosas. Li Li fez uma careta e se levantou. A sudoeste, ela via as nuvens encobrindo as estrelas, e clarões ocasionais de relâmpago iluminavam a superfície do oceano.
— Ok. Vamos.
A tempestade chegou com ventos fortes e uivantes, soprando borrifos de chuva gelada. As ondas crescidas se encapelaram ao redor dos pandarens, ameaçando engolir o barco. Chen e Li Li deram tudo de si para guiar a embarcação tol'vir pelos recessos paralelos às ondas, percorrendo um traiçoeiro curso com obstáculos.
Um raio estalou no céu, explodindo na água ao lado do barco e errando o mastro por pura sorte. O ribombar do trovão era como o bombardeio de canhões. Li Li se arrepiou. Aquela passou perto.
O barco sacudiu. Li Li e Chen calcularam mal o curso e atingiram a base de uma onda. O barco se inclinou em um ângulo agudo como um carrinho em uma curva. Chen se agarrou à corda mais próxima, segurando-se com força enquanto seus pés deslizavam no convés de madeira lisa. Atrás dele, Li Li gritou. Chen sentiu o coração subir à garganta.
— Li Li! — rugiu ele, lutando para se firmar. Ela também se segurava desesperadamente a um cabo, e Chen orou para que a pandarena não escorregasse. Ele não podia soltar a própria corda até que o barco estabilizasse. A onda sacudiu por instantes sem fim, e a pequena embarcação tol'vir chegou perto de adernar várias vezes.
Por fim, a crista da onda ficou para trás e a embarcação começou a se estabilizar. Quando o convés ficou na horizontal, Chen firmou o pé e voltou-se para ajudar a sobrinha. Li Li se esticou na direção dele, mas o barco sacudiu e a atirou contra a amurada. Chen gritou o nome dela e estendeu o braço o mais que pôde.
— Li Li!
Era tarde demais, e não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos dela se apagaram, ela perdeu a consciência e a corda escorregou de entre seus dedos. Li Li caiu na água.
Li Li!" — Chen gritou uma terceira vez, mas as ondas estalaram entre sua sobrinha e o barco, e, quando a água acalmou-se, já não podia vê-la.
* * *
Em Shen-zin Su, o céu não dava sinais de tempo ruim. O Sol se escondera atrás do horizonte, e os últimos vestígios de luz evanesciam no céu azul escuro. No centro da ilha, à entrada da grande Biblioteca, Chon Po se postava, segurando duas folhas de papel.
A biblioteca era o local favorita de sua filha. Enfiada entre as pilhas de livros e cartas, Li Li lia por horas, devorando todas as informações que podia encontrar. Aquele hábito fizera dela uma sonhadora e tinha-lhe incutido ideias grandiosas na cabeça, mas também lhe dera propósito e garra.
— Não se preocupe, Po. — Mei colocou a pata em seu braço e sorriu de forma encorajadora. — Pode mandá-las.
As cartas de Chen e Li Li tinham chegado no dia anterior voando numa corrente de magia (um antigo truque pandaren cujas origens tinham-se perdido no tempo). Chon Po ficara acordado a noite inteira, escrevendo a resposta.
Po deu um grande suspiro e assentiu. Com bastante cuidado, dobrou os papéis na forma do pássaro — decidiu-se por um grande albatroz — que iria carregar as mensagens pelo oceano. Ao terminar, segurou o pássaro e soprou nele gentilmente, espalhando sobre as folhas uma pitada do mesmo pó encantado que Li Li sempre carregava. Em meio a uma explosão de cor, o pássaro de papel bateu as asas e alçou voo. Foi difícil deixá-lo partir.
Chon Po ficou olhando até que o pássaro sumisse no céu azul, esperando que as cartas encontrassem a filha e o irmão em segurança.
* * *
O mar tornara-se uma criatura viva, uma força com vontade própria. As ondas se encrespavam ao redor de Li Li como dedos, fazendo-a girar. Era uma boa nadadora e tentava resistir, buscando ar quando subia à superfície, debatendo-se, tentando flutuar. Mas a corrente a arrastou. Ela lutou mais, e o ciclo se repetiu. Não demorou muito para que começasse a se cansar.
Seus músculos ardiam. Os membros estavam pesados. Quando a torrente de energia inicial que lhe impulsionara os movimentos começou a diminuir, sua determinação começou a dar lugar ao pânico.
Eu vou morrer afogada.
A compreensão a atingiu com a força das ondas que Li Li combatia. Chen se fora; quem sabe quão longe ela já não estava do barco? A terra firme estava a dias de distância. A tempestade era inexorável, imune à razão ou à força.
O instinto a compeliu a buscar a superfície, a lutar pela sobrevivência, mesmo que ela soubesse em seu íntimo que não havia mais nada a fazer. O desespero a inundou, salgado e amargo como o próprio oceano.
Então foi assim, não foi, mamãe?
Os olhos de Li Li ardiam com a água salgada e as lágrimas. Tentava se obrigar a ser valente, a aceitar seu destino, mas o terror não a largava.
Mamãe! Pensou, incapaz de gritar. Mamãe, Mamãe!
O oceano a cuspiu, e ela flutuou na crista de uma onda. Li Li arquejou outra vez, agarrando-se a cada precioso segundo enquanto a onda começava a se desmanchar. Pelo canto do olho, viu algo diferente do resto da água: uma forma escura e sólida. Virou a cabeça, tentando ver, e bateu em algo duro e ainda mais irresoluto que o mar. Sua cabeça chocou-se violentamente contra o objeto, e ela perdeu a consciência.
* * *
—… Nunca vi um desses. Eu lembraria.
— Eu vi uma vez, no vale Gris, há muitos anos.
— Ela pode ser uma espiã da Horda.
— Acho que é possível.
Li Li tentou abrir os olhos, mas eles pareciam ter sido colados. Tentou rolar para o lado, mas seu corpo inteiro protestou de dor. Gemendo, reclinou-se novamente entre os cobertores e travesseiros.
De alguma forma, percebeu que estava viva.
Abriu os olhos. Houve uma explosão dolorosa de cor, e ela fechou-os outra vez.
— Atropa, ela acordou, por Eluna! O capitão...
— Já vai — respondeu a outra voz.
Li Li piscou, hesitante, e encarou um saudável rosto de cor roxa emoldurado por cabelos violeta-escuro à altura dos ombros. Os olhos da mulher não tinham pupila e brilhavam com uma suave luz prateada. Uma elfa noturna.
— Céus, nós achamos que você ainda ia dormir por horas — disse a elfa noturna. — Deve haver água em algum lugar por aqui.
O rosto desapareceu. Li Li passou a mão atrás da cabeça e tocou um ponto dolorido, sentindo a textura áspera das bandagens de algodão. Mesmo aquela pouca pressão fez com que agulhas de dor picassem seu crânio. Ela piscou e retirou a pata.
— Pronto, deixe eu ajudar você — disse a elfa noturna, passando um braço esguio pela cintura de Li Li. Ela ajeitou os travesseiros atrás da jovem pandarena e lhe deu um copo de água. Li Li bebeu em um só gole, sentindo-se grata, e estendeu a mão pedindo mais. Quando se sentiu satisfeita, olhou de um lado para o outro, com cuidado para não sentir a dor no pescoço.
— Onde eu estou?
— Você está a bordo do navio Elwynn, da Aliança. Você é muito sortuda. — A elfa sacudiu a cabeça. — Eu estava de vigia e vi você bater no casco durante a tempestade. Um xamã pediu a um elemental da água para erguer você até nós.
Li Li se recostou contra o travesseiro, sentindo o coração palpitar.
— Eu não estou morta.
— Por sorte, não — respondeu a elfa. — Qual o seu nome?
— Eu me chamo Li Li Malte do Trovão. Quem é você?
— Meu nome é Lintharel. Eu sou uma druidesa, uma kaldorei a serviço da Aliança.
A porta da cabine se abriu, e um humano grisalho entrou, seguido por outra elfa noturna. Ela era quase idêntica a Lintharel, e inclusive tinhas as mesmas tatuagens roxas em forma de gotas de chuva no rosto. Eram irmãs, claramente.
— Eu sou Marco Heller, o capitão deste navio — declarou o homem, assim que passou pelo umbral da porta. — Tenho algumas perguntas a fazer.
— Já? — perguntou Lintharel, franzindo o cenho. — Eu pensei que você só quisesse saber se ela tinha acordado. Ela ainda está ferida!
— Por que você não vai lá fora e pega mais algumas bandagens, então? — perguntou o capitão Heller, embora o pedido tivesse o tom de uma ordem. — Acompanhe-a, se quiser, Atropa.
— Eu não vou a lugar algum. — respondeu Atropa, cruzando os braços. Lintharel lançou um olhar frustrado na direção do capitão antes de sair. Li Li ouviu seus passos ecoando pelo corredor enquanto a elfa se afastava.
O capitão puxou uma cadeira para perto da cama de Li Li e sentou-se, observando a pandarena com atenção. Depois de um instante de silêncio, começou a fazer várias perguntas.
— Quem é você? De onde você é? O que você está fazendo nessas águas?
— Eu me chamo Li Li Malte do Trovão. Sou uma pandarena da Ilha Errante. Eu estava velejando com meu tio quando a tempestade nos atingiu. Eu caí na água! — As perguntas davam nos nervos de Li Li. — O que está acontecendo aqui?
Os olhos do capitão Heller brilhavam perigosamente.
— Estou me perguntando se você é uma espiã da Horda.
— O quê? — A acusação ofendeu Li Li. — Isso é ridículo! Meu tio e eu somos amigos do rei Magni Barbabronze! Você comeu um baiacu ou alguma coisa que encheu sua cabeça de ar quente?
O capitão Heller franziu o cenho, mas não disse nada.
Li Li continuou:
— Se eu fosse uma espiã da Horda, eu não teria tentado abordar seu navio me jogando no oceano no meio da tempestade, rezando para acabar trombando com vocês. Isso é muito estúpido.
— Nem mesmo se vocês já estivessem navegando por dois dias consideravelmente perto de nós?
— Eu... o quê? — Li Li piscou, surpresa. — Tem um navio da Horda também?
O capitão ignorou a pergunta de Li Li. Ele se voltou para Atropa, que parecia ter derretido no canto da sala.
— Qual sua opinião? — perguntou ele.
— Eu acho que ela está dizendo a verdade — respondeu Atropa, e seus olhos brilhantes se estreitaram. — Ela realmente não sabe de nada.
— Ah, obrigada! — respondeu Li Li. — Que gentileza sua, dona.
— Eu concordo com você, Atropa — respondeu o capitão, levantando-se. Ele olhou para Li Li.
— Você é uma convidada neste navio, por obra e graça minha e dos povos da Aliança. Se precisarmos, você será requisitada a lutar ao nosso lado. Você tem alguma objeção?
— Eu não tenho medo de lutar — respondeu Li Li, encarando o capitão de forma desafiadora.
— Ótimo. — O capitão Heller saiu sem dizer mais nada, e Atropa o seguiu.
Li Li se reclinou na cama, exausta. Sentia saudades de Chen e esperava que ele tivesse saído ileso da tempestade. Mas mesmo que ele tivesse conseguido, devia achar que ela estava morta. O coração de Li Li doeu. Desejou que houvesse um modo de mandar-lhe uma mensagem, mas sua bolsinha com pó mágico tinha ficado no barco tol'vir. Não havia nada que ela pudesse fazer no momento, então fechou os olhos e procurou dormir.
* * *
A tempestade deixara atrás de si um dia claro de brisa suave, e o oceano ao redor do barco estava sereno. Chen não conseguia apreciar nada daquilo. Li Li tinha sumido, sem deixar rastros. A única coisa que o lembrava da existência dela eram seus pertences, guardados no compartimento sob o convés. Ele sentia um buraco no peito.
Ele ficou sentado, olhando ao longe, sem ver nada. Em seu colo, segurava a pérola, a primeira coisa pela qual procurara depois da tempestade. Tudo o que ela lhe mostrava eram os últimos momentos de Li Li, passando em repetição infinita. Ele não aguentava mais olhar.
A exaustão acabaria com Chen mais cedo ou mais tarde se ele não descansasse, mas, ao fechar os olhos, a visão de Li Li sendo atirada ao mar só se intensificava. Em seus ouvidos ecoava a memória de sua voz gritando impotente, como se ele pudesse barganhar com o oceano o retorno da sobrinha.
Foi essa melancolia incomum que permitiu que a belonave se aproximasse às suas costas despercebida, até que o marulhar da água ficou alto demais para que ele o ignorasse. Chen se voltou para ver. Em qualquer outra ocasião já estaria de pé, pronto para negociar ou lutar. Mas já não se importava. Nada mais tinha importância.
O navio cresceu ao se aproximar. Chen vislumbrou as velas vermelhas com marcas negras sobre o convés e escondeu a pérola rapidamente em sua capanga.
— Atenção! — Uma voz ecoou pela água. — Ao passageiro no barco não identificado: sua presença aqui não era esperada. Prepare-se para ser detido e interrogado pela Horda!
* * *
Chen estava sentado numa cabine diante do capitão do navio, um orc robusto chamado Aldrek. Ele cruzou os braços verdes cheios de cicatrizes e olhou com atenção para Chen.
— O que você está fazendo nessas águas? Marinheiros solitários não se aventuram por aqui — bradou o orc.
Chen esfregou o rosto, cansado. Não tinha energia para aturar um interrogatório. Só queria acabar com aquilo rápido.
— Meu nome é Chen Malte do Trovão. Sou um pandaren da Ilha Errante. Eu estava velejando com minha sobrinha quando fomos pegos pela tempestade da noite passada, que nos tirou do curso. Minha... — Chen sentiu um nó na garganta e lutou para controlar a voz. — Minha sobrinha caiu no mar.
O capitão não respondeu.
— Eu sei por que você está me interrogando. Eu não sou um espião da Aliança. Eu lutei ao lado de Thrall, Cairne e Vol'Jin contra o grão-almirante Proudmore há muitos anos. Se alguém a bordo participou dessa batalha, com certeza irá confirmar o que digo.
— Karrig, um dos nossos xamãs, lutou em Theramore — disse Aldrek. Ele acenou para um dos guardas. — Vá trazê-lo aqui para ouvirmos o que ele tem a dizer.
Aldrek encarou Chen por mais algum tempo antes de falar novamente.
— Uma coisa eu sei: se você for um espião, você fez um excelente trabalho se disfarçando de marinheiro cansado quase enlouquecendo de exaustão. — Abriu um largo sorriso, exibindo as presas impressionantes.
O guarda retornou, acompanhado de um orc encurvado de meia-idade, cujo longo cabelo negro estava armado num coque trançado.
— Ah, Karrig! — Aldrek bateu as palmas das mãos. — Este indivíduo diz ter lutado em Theramore contra o grão-almirante Proudmore. Você o reconhece?
— Tinha um pandaren lutando ao nosso lado lá. Chamado Malte do Povão ou algo assim.
— Trovão. Malte do Trovão — corrigiu Chen. Ele olhou para o capitão Aldrek, que gargalhou.
— Parece que você se livrou dessa — disse o capitão. — A Horda tem uma dívida de gratidão com você! — Aldrek estalou os dedos para o guarda.
— Vá buscar Nita — ordenou. Voltando-se para Chen, acrescentou:
— Ela é uma druidesa. Uma taurena enorme assim. Ela o deixará pronto para outra rapidinho. Bem-vindo a bordo do Punho do Chefe Guerreiro! — Aldrek bateu nas costas de Chen, mas o pandaren mal deu sinal de ter sentido. Ele só conseguia pensar em Li Li, e seu corpo inteiro parecia anestesiado.
* * *
Quando se sentiu bem o suficiente para caminhar, Li Li começou a perguntar a todos a bordo do navio da Aliança Elwynn se eles tinham visto o barco tol'vir. Ninguém tinha. Desanimada, inclinou-se na amurada do convés e viu a grande belonave da Horda velejando à frente deles, a estibordo. Ela se perguntou se haveria alguma maneira de fazer contato com a embarcação, para verificar se alguém havia visto Chen, embora tentar comunicar-se com a Horda fosse talvez confirmar as suspeitas iniciais do capitão Heller de que ela era uma espiã. Li Li franziu o cenho. A menos que ela e Chen tivessem ido parar bem longe do curso inicial, os navios estavam nas águas costeiras de Tanaris, que eram neutras. A Horda e a Aliança deveriam poder navegar por ali sem incidentes. Por que o capitão estava tão nervoso?
Li Li se esforçou para bolar um plano que lhe permitisse mandar uma mensagem até o navio da Horda sem ser arremessada ao mar. Como não teve nenhuma ideia brilhante, acabou desistindo e descendo sob o convés, onde encontrou alguns membros da tripulação ao redor de uma mesa, jogando cartas. Entre eles, reconheceu as elfas noturnas Lintharel e Atropa. Li Li puxou uma cadeira e sentou-se ao lado delas.
— Eu quero cartas — anunciou Li Li. Atropa a olhou de esguelha, mas Lintharel riu e obedeceu.
— É mais fácil aprender jogando — disse ela. Acenou para os outros jogadores, um par de anões. — Essa é Li Li, a passageira inesperada que pegamos na noite passada.
— Ah, a não espiã! — exclamou uma anã, sorrindo. — Eu sou Trialin, e esse é meu irmão, Baenan.
— Irmão mais velho! — emendou Baenan. — E o paladino da Luz mais importante do navio, a seu dispor! — Ele estufou o peito com orgulho.
— Ah, para com isso, seu marrento — disse Trialin, revirando os olhos.
— Então eu estou na mesa dos irmãos — brincou Li Li — sem meu irmão aqui. E dessa vez ele seria bem útil, até… — Ela sentiu uma pontada aguda de dor ao pensar em Shisai. E se perguntou como ele estaria, em casa, em Shen-zin Su.
Será que ele sente a minha falta?
— Não é uma mesa de irmãos — corrigiu Lintharel, sorrindo. E, fazendo um gesto para si mesma e para Atropa, disse:
— Nós não somos irmãs.
— Ah. — Aquilo surpreendeu Li Li.
— Mas elas se parecem mesmo — disse Trialin à pandarena. — Quase todo mundo comete esse erro.
— Tharel é toda a família que eu tenho agora — respondeu Atropa. O sorriso de Lintharel tornou-se melancólico.
— E jogar que é bom, cadê? — Baenan esmurrou a mesa, o que despertou as kaldorei de sua melancolia. Li Li olhou disfarçadamente para as cartas, fingindo saber o que fazia. Lintharel explicou as regras enquanto jogavam, e, embora Li Li não fosse muito boa, depois de algumas rodadas ela já não estava perdendo o tempo todo.
— Mas então... — disse Li Li, tentando soar inocente. — O que há com esse tal navio da Horda? Eu pensei que as águas perto de Tanaris fossem neutras. Por que está todo mundo preocupado com ele?
Os companheiros de Li Li se entreolharam e ela notou que fizera uma pergunta perigosa. Esperara mencionar a possibilidade de contatar o navio da Horda para obter informações sobre Chen. Era evidente que fora uma má ideia. Por fim, Atropa rompeu o silêncio.
— Tecnicamente, você está certa — disse, descartando.
— Mas…? — insistiu Li Li.
Mas acontecimentos recentes nos deram motivo para suspeitar de qualquer presença da Horda fora do território deles — respondeu Atropa.
— Eles estão perto demais de Theramore — murmurou Baenan. — Se eles querem ficar em paz, é melhor que voltem para o lugar de onde vieram. Nenhum deles é digno de confiança.
— Eu trabalhei ao lado de muitos membros da Horda no Monte Hyjal — disse Lintharel, baixinho. — O arquidruida Hamuul Runa Totem é um tauren, e um dos maiores líderes do Círculo Cenariano. Não dá para julgar um povo inteiro pelas ações de algumas pessoas.
Baenan sacudiu a cabeça.
— Mocinha, eu queria concordar com você. Os druidas do Círculo Cenariano podem ser exceção, assim como os xamãs da Harmonia Telúrica. Mas olhe só pra você mesma: você voltou de Hyjal para continuar servindo à Aliança. E seus amigos da Horda fizeram o mesmo lá. Eles são seus inimigos agora, e você é inimiga deles.
As mãos de Lintharel apertaram as cartas.
— Eu sirvo à Aliança porque essa é a vontade da alta-sacerdotisa Tyrande e do arquidruida Malfurion, e eu sou leal a eles. — Franziu o cenho. — Mas a divisão entre a Horda e a Aliança é falsa.
— A divisão pode até ser falsa, mas as armas deles são de verdade! — replicou Baenan. — O chefe guerreiro Grito Infernal não quer a paz. Olhe para o seu lar no Vale Gris! Ele é uma ameaça, e seus amigos druidas são cúmplices do governo dele. — Ele bateu com as cartas na mesa: tinha vencido a rodada. — Nada que seja da Horda é digno de confiança, e você tem que aceitar isso.
* * *
A luz vinda da escotilha da enfermaria informou a Chen que já era o final da manhã. Ele se sentia fisicamente restaurado, mas seu espírito ainda estava exaurido. Perdera muitas pessoas queridas ao longo dos anos. Algumas perdas doíam mais que outras.
Chen sempre considerara Li Li a filha que jamais tivera, o único membro da família que se parecia com ele. Ele apertou os olhos com a palma das patas, e as lágrimas deixaram rastros molhados no pelo do seu rosto.
— Céus, será que já não tem água salgada demais no mar? Você ainda tem que fazer mais?
Chen se ergueu de súbito. Um elfo sangrento de aparência entediada estava encostado na parede da enfermaria, com os braços cruzados.
— Veja só a que ponto eu cheguei — lamentou o elfo. — Servindo de babá para os pacientes.
A ira era um bom escape para a tristeza. A onda de raiva que o dominou empurrou Chen para fora da cama, em direção ao elfo. Ele tinha bastante experiência com intimidação.
— Eu tomaria cuidado com a língua se fosse você — rosnou. — Duvido que você já tenha lutado com alguém do meu povo, e você não vai querer isso.
Antes que o elfo tivesse chance de responder, alguém entrou na sala. Era Karrig, o xamã. Ele bateu fortemente no chão com o grande cajado que carregava.
— Talithar! — gritou. — Você não consegue passar uma hora sem arranjar encrenca. Saia daqui, elfo safado!
O elfo lançou um olhar de puro desprezo a Karrig, mas não disse nada e deixou a enfermaria, erguendo o belo queixo.
— Cretininho delicado — murmurou Karrig. — Um herói da Horda como você deve ser tratado com respeito! — Sorriu generosamente para Chen. — É uma honra tê-lo a bordo.  — Ahm, obrigado — respondeu Chen, sentindo-se um pouco desconfortável por ter sido chamado de herói. Suas lembranças sobre o período em Theramore pintavam um quadro mais complexo.
— Eu vim buscar você — disse Karrig. — O capitão Aldrek quer uma palavrinha.
Chen assentiu e o seguiu até os aposentos do capitão, onde Aldrek estava sentado na ponta de uma escrivaninha grosseira, com os dedos entrelaçados.
— Karrig falou bastante sobre suas aventuras em Theramore — disse Aldrek. — Tenho certeza de que termos encontrado você é um sinal dos espíritos.
— Por quê? — perguntou Chen. Alguma coisa no tom de Aldrek o deixava inquieto.
— Porque eu acho que você pode ajudar nossa causa — respondeu o capitão orc. — Assim que nos livrarmos do navio da Aliança que está nos seguindo...
— Não sei o que eu posso fazer a respeito, capitão — disse Chen educadamente. Aldrek pareceu surpreso.
— Ah, não! Não, não se preocupe com eles. Nós decidimos estabelecer comunicação com eles por agora. — Ele fez um gesto despreocupado com a mão. — Eu tenho planos de longo prazo para você.
— Perdão?
Aldrek se inclinou na direção de Chen.
— Sabe, nossa missão aqui é de reconhecimento, mas...
— Reconhecimento do quê, exatamente? — interrompeu Chen. Aldrek e Karrig sorriram.
— Isso eu não posso informar. Não ainda. Mas, já que você foi soldado da Horda na primeira batalha de Theramore, imagino que ficaria honrado em lutar numa segunda batalha também.
Aldrek se reclinou e esperou para ver o efeito que a declaração teria. Chen lutou para manter a expressão neutra.
— Isso... isso seria uma experiência e tanto. É isso o que você está planejando?
Aldrek bateu do lado do nariz e sorriu matreiramente.
— Não. Nós só estamos fazendo o reconhecimento, não é?
— Certo — respondeu Chen, lembrando-se de piscar para o capitão. — Só... trabalho de batedor.
Aldrek assentiu. — De batedor, é. Nós queremos que o navio da Aliança entenda isso.
— Como você sabe — interrompeu Karrig —, a aquisição de recursos tem sido muito difícil desde que a Horda chegou em Kalimdor. Não é fácil manter uma cidade grande no meio do deserto.
— Eu conheço alguns dos problemas de Orgrimmar — disse Chen.
— Então você compreende a nossa obrigação! — Aldrek bateu com o punho na palma da mão. — Precisamos obter recursos adequados para nossas famílias, para nossos filhos. Orgrimmar não pode correr riscos.
Chen decidiu ficar calado. O que Aldrek e Karrig estavam dizendo era inquietante, assim como o brilho fervoroso no olhar deles quando falavam de Orgrimmar e seu futuro.
Interpretando seu silêncio como consentimento, o capitão Aldrek relaxou na cadeira.
— Eu estou muito honrado de ter você a bordo do navio, Chen Malte do Trovão. Tenho certeza de que você será um aliado valioso para a Horda. Você tem minha permissão para circular livremente pelo navio. Dispensado.
— Obrigado, capitão — disse Chen, saudando-o.
* * *
Chen foi até a cozinha, em busca de uma bebida forte e de comida quente. Tinha quase certeza de que Aldrek e Karrig haviam revelado as intenções da Horda de invadir Theramore. Ele não queria pensar naquilo. Pelo menos a comida do navio era decente.
Alguém se juntou a Chen à mesa, sentando-se no banco à sua frente. Era Nita, a taurena que cuidara dele na noite anterior. Ela sorriu; tranças grossas emolduravam-lhe o rosto bondoso. Dobrou os dedos grossos à sua frente na mesa.
— Como você está se sentindo hoje, Chen Malte do trovão? — perguntou.
— Muito bem, graças à sua perícia. Você é uma druida muito talentosa.
Ela sorriu para ele.
— Obrigada. Sinto muito por não ter estado na enfermaria pela manhã. Infelizmente eu tinha outros deveres para cumprir. Talithar mandou você para cá para almoçar?
— Ahn, não. Ele não foi tão educado assim, na verdade.
Nita pareceu embaraçada.
— Peço desculpas por ele — disse. — Ele é um dos magos no navio... é uma alma atormentada. Virou inimigo da maior parte da tripulação. — Suspirou profundamente. — Eu pedi que ele ajudasse você porque pensei que interagir com alguém de fora do navio fosse ajudá-lo. Acho que eu estava errada.
— Não é sua culpa se ele não sabe se comportar. Mas é muito gentil da sua parte se preocupar com ele.
— É meu dever me preocupar com os outros — disse ela, sorrindo outra vez. — Primeiro por ser uma curandeira, depois porque somos todos filhos da Mãe Terra. Nós somos mais fortes juntos que divididos. — Fez uma pausa e franziu o cenho. — Acho que nosso capitão se esquece disso às vezes.
* * *
A bordo do Elwynn, o capitão Heller convocara uma reunião geral no convés. Ele encarou a tripulação reunida do topo da ponte.
— Como muitos de vocês sabem — anunciou —, eu venho mantendo contato com o líder do navio da Horda.
O coração de Li Li acelerou. Se Heller estava falando com o navio da Horda, ela poderia perguntar sobre Chen.
— A presença deles aqui é preocupante — continuou o capitão — e não podemos deixá-los sem supervisão. Para minha surpresa, eles disseram que compreendem a situação e que querem trabalhar conosco para chegarmos a uma solução pacífica.
A multidão murmurou, espantada.
— O capitão deles concordou em enviar um mensageiro para nós, com a condição de que nós enviemos um para eles também. Eu apoio essa decisão e, por isso, preciso de um voluntário. Essa pessoa precisa ser valente e estar disposta a falar em nome da Aliança. Desnecessário dizer que pode ser perigoso. Ainda assim, se pudermos convencê-los a voltar para Durotar, será uma grande vitória para a a Aliança! Quem servirá nossa causa?
Algumas mãos se ergueram entre gritos entusiasmados, mas apenas um vulto se adiantou corajosamente, subindo até a metade dos degraus onde o capitão estava, postando-se ali ereto do alto do seu metro e meio de altura. Era Baenan, o anão. Li Li ouviu Lintharel respirar fundo ao seu lado.
— Eu irei! Como paladino da Luz, eu ofereço com prazer meus serviços à Aliança!
O capitão Heller assentiu.
— Muito bem. Eu irei informá-los de que já temos um mensageiro e providenciarei a troca.
O capitão sinalizou para um mago draenei postado ao seu lado, que disparou setas mágicas para o alto, desenhando runas numa cascata de luz. Após um longo instante, Li Li viu a mesma demonstração de magia no convés do navio da Horda.
— A troca será efetuada em meia hora! — declarou o capitão Heller. Ele se voltou para Baenan.
— Venha comigo. Eu lhe darei instruções.
Baenan bateu continência com força. Li Li abriu caminho pela multidão. Ao vê-la, Heller fez uma pausa.
— Sim? — perguntou, ríspido.
— Ahn, eu tenho uma pergunta, senhor — disse Li Li, com toda a polidez possível. — Eu estou tentando descobrir se alguém viu meu tio desde a tempestade. Eu queria saber se o navio da Horda mencionou alguma coisa sobre outro pandaren. Ou sobre algum barco pequeno que eles possam ter avistado.
O capitão Heller estreitou os olhos, mas Li Li manteve-se impassível. O pedido era completamente inocente.
— Isso não foi mencionado em nenhuma mensagem — respondeu por fim o capitão —, mas você pode fazer essa pergunta ao diplomata da Horda, quando ele chegar.
— Obrigada, capitão. — Ela acenou para Baenan. — Boa sorte — disse-lhe. Ele assentiu com uma expressão determinada e afastou-se, acompanhando Heller. Os dois desapareceram sob o convés junto com alguns guardas.
O resto da tripulação começou a se dispersar, e Li Li viu Trialin ali perto. A anã ergueu a cabeça, com orgulho do irmão, mas a face estava pálida. Lintharel estava ao lado de Li Li, o rosto tenso, rilhando os dentes. A druidesa fitou o céu e depois fechou os etéreos olhos prateados.
— Você sente a mudança no ar? — perguntou ela. — Haverá outra tempestade esta noite.
* * *
— Você tem certeza de que quer correr o risco? — Aldrek avaliava sua diplomata voluntária, ninguém menos que a druidesa Nita.
— Eu já trabalhei com membros da Aliança como parte do Círculo Cenariano. Isso deve acalmá-los.
Pensativo, Aldrek esfregou o queixo.
— Ótimo. Você pode remar até lá?
Nita podia assumir a forma de um pássaro e voar até o outro navio, mas a Aliança enviaria um barco, e era melhor retribuir o gesto.
— Posso.
Chen fora alçado a um lugar de honra, perto de Karrig e do capitão Aldrek, e vira Nita se oferecer como mensageira. Pensou nas palavras dela: Somos todos filhos da Mãe Terra. Não havia melhor candidata para a tarefa de diminuir a tensão entre os navios.
Enquanto Nita preparava o barco, Aldrek manobrava a grande nau na direção do navio da Aliança. Para que os mensageiros atravessassem com facilidade, ambas as embarcações precisavam estar bem próximas — à distância de tiro. Chen se mexia inquieto e tentava não ser pessimista, mas não podia esquecer o que Aldrek insinuara sobre Theramore. O que a Horda estaria planejando? O quanto a Aliança sabia? Teriam eles todos se encontrado por acaso no oceano, ou será que a Aliança os tinha rastreado e encontrado? Ou será que a Horda é quem os tinha atraído?
O Punho do Chefe Guerreiro parou ao lado do Elwynn. Dois marinheiros ajudaram Nita a descer o barco, e ela partiu. Os remos batiam ritmadamente na água, subindo e descendo cada vez que ela os puxava.
* * *
Os mensageiros passaram um pelo outro a meio caminho entre os navios. Baenan deu uma olhada para a taurena de ombros largos ao passar por ela, notando pela roupa tratar-se de uma druidesa. Sentiu-se melhor. Taurens costumavam ser mais sensatos que orcs, e druidas frequentemente trabalhavam com as duas facções. Talvez houvesse esperança para a missão.
Quando chegou ao seu destino, marinheiros da Horda estavam prontos para recebê-lo. Quando ergueram o barco da água, ele olhou de volta para o Elwynn, delineado elegantemente em laranja e dourado no Sol do fim de tarde. Orou para a Luz para retornar em segurança.
* * *
Li Li esperava à frente da tripulação, determinada a ser uma das primeiras a cumprimentar o diplomata, para poder perguntar pelo tio. Quando a grande taurena subiu no convés, Li Li avançou ansiosamente.
— Bem-vinda a bordo! — disse o capitão Heller, calorosamente, estendendo a mão. Nita a apertou com respeito, e os marinheiros próximos fizeram um cumprimento de cabeça.
— Obrigada, capitão. Espero que possamos chegar a um acordo mutuamente benéfico. — Ela observou a multidão e, ao ver Li Li, as sobrancelhas da taurena demonstraram surpresa.
Li Li não se pôde conter.
— Você me reconheceu! — gritou. — Ahn, quer dizer, você reconheceu minha raça! Meu tio Chen, você viu meu tio?
— Sim, nós o pegamos no barco na manhã após a tempestade — Nita sorriu. — Ele ficará muito feliz ao ver que você está salva.
— Muito, muito obrigada — disse Li Li, quase engasgando de emoção. Não percebera o quão preocupada estava até saber que Chen estava a salvo. Logo ela e o tio estariam juntos novamente.
— Venha por aqui. — O capitão Heller passou à frente de Li Li e apontou para os aposentos do capitão. — Vamos discutir nossos objetivos e tentar um acordo.
Cortês, Nita seguiu o capitão Heller. Seus cascos potentes estalavam no convés do navio. Ao passarem por Li Li, o capitão lhe lançou um olhar severo. Li Li observou os dois sumirem sob o convés e então lançou um olhar para o navio da Horda, percebendo que o barco de Baenan já tinha sido erguido. As discussões tinham começado.
* * *
Baenan chegou a temer que todos nos aposentos do capitão estivessem ouvindo seu coração palpitante. Controlando-se, examinou a sala lotada: muitos orcs, trolls, um tauren, dois goblins (discutindo sobre quem iria ficar na mesa do capitão) e um Renegado mofado e pútrido. E também um dos tais pandarens, notou ele, surpreso — como a garota a bordo do Elwynn. Franziu o cenho. Ela dissera estar viajando com o tio. Seria ele? Se sim, por que ele estava ali junto com a Horda?
Baenan olhou para o capitão Aldrek, que abriu a boca em um sorriso predatório.
— Agora — começou o capitão, suavemente —, vamos discutir esse assunto como pessoas razoáveis.
Baenan engoliu em seco e, por fim conseguiu falar.
— Como você sabe, estamos preocupados com a presença de navios de guerra da Horda tão ao sul...
— Essas águas são neutras — replicou Aldrek.
— É verdade — treplicou Baenan —, mas vocês tiveram que passar por Theramore para chegar aqui, o que...
— Como você sabe que nós não viemos do acampamento Grom'gol na Selva do Espinhaço? — interrompeu Aldrek.
— Vocês vieram? — Baenan perguntou, ríspido.
Aquilo surpreendeu Aldrek, e ele hesitou por tempo suficiente para tornar a resposta óbvia. Seu sorriso endureceu. — Nós estamos aqui sob ordens do chefe guerreiro, em reconhecimento — disse, e o tom de voz parecia um aviso.
— Olhe aqui, eu sou um anão. Nós somos um povo que vai direto ao ponto. Vocês dizem que estão fazendo reconhecimento. Pode até ser, mas nós não temos como confirmar isso. Nós só queremos que nosso lar em Theramore fique em segurança. Deixem-nos escoltar vocês até as águas em Durotar. Essa é a oferta do meu capitão.
O capitão Aldrek irrompeu numa gargalhada e o coração de Baenan se confrangeu.
— E essa é justamente a oferta que eu rejeito — disse o orc. Ele estalou os dedos para um guarda. — Esse anão é nosso prisioneiro.
O primeiro instinto de Baenan foi lutar pela liberdade, mas aquela seria uma má ideia, obviamente. Ele estava sozinho e tinha entregado as armas ao embarcar no Punho do Chefe Guerreiro.
— Eu sabia que vocês eram um bando de covardes mentirosos — murmurou, o que lhe valeu um croque na cabeça de outro orc.
— E, mesmo assim, você confiou em nós — disse Aldrek, com uma expressão de desprezo. — Prenda-o no porão e deixe alguém vigiando. Convoque todos para o convés. Enquanto a Aliança está pensando que estamos negociando, nós vamos preparar os canhões.
Baenan foi escoltado para fora da sala, e Chen teve que se controlar ao máximo para não deixar notarem sua perturbação. Ele quase pulara para defender o anão, mas mudou de ideia rapidamente. Queria saber mais sobre o que estava acontecendo. Embora isso o incomodasse, teria que esperar a hora certa para agir.
* * *
Nita encarava o capitão Heller em seus aposentos. Vários oficiais os flanqueavam com as mãos atrás das costas.
— Capitão — começou —, eu gostaria de oferecer uma explicação sobre a presença do nosso navio...
— Nita — interrompeu Heller —, não estou nem um pouco interessado nos motivos da presença da Horda aqui. Eu só quero que vocês vão embora.
— Essas águas são neutras — argumentou ela. — Nós temos tanto direito de estar aqui quanto vocês.
— Pode ser — prosseguiu Heller, imperturbável —, mas vocês representam uma ameaça. Eu não considerarei que a ameaça foi extinta até que seu navio retorne a Durotar, onde é o lugar dele.
— Eu posso informar isso ao meu capitão, se você quiser — ofereceu Nita.
— Não, eu acho que nós diremos isso a ele pessoalmente. Você ficará aqui como garantia de que nossa mensagem vai ser entendida.
O queixo de Nita caiu. — O quê? Eu virei sua prisioneira?
— Eu cumpro o meu dever — disse o capitão Heller. — Peguem-na.
Quatro oficiais a seguraram pelos braços.
— Isso é um ultraje! — gritou Nita enquanto forcejava por se libertar. — Eu sou uma druidesa do Círculo Cenariano! Eu trabalhei junto com o próprio Malfurion Tempesfúria!
— Que bom. Se eu o encontrar um dia, irei mencionar que conheço você.
* * *
Amarrado desconfortavelmente no porão do Punho do Chefe Guerreiro, Baenan ouvia ruídos distantes que pareciam a marcha de pés apressados e canhões pesados sendo rolados para suas posições. O imundo capitão orc estava preparando um ataque ao Elwynn, e ele não podia fazer nada para impedir. Não havia nada pior que estar indefeso. O anão praguejou contra a Horda.
O capitão Aldrek não deixara Baenan sozinho em sua prisão. Um elfo sangrento soberbo, Talithar, o vigiava, decididamente entediado. Baenan o odiava com cada fibra do seu ser.
— Seu imprestável, capacho da Horda — rosnou. — O capitão Heller vai afundar essa banheira e vocês vão virar comida de naga.
— E você vai junto, se ele conseguir — respondeu Talithar. — É trágico, na verdade. Para você sobreviver, seus amigos terão que perder.
— Se eu morrer, morrerei feliz, sabendo que vocês vão comigo.
— Que nobre da sua parte.
Baenan cuspiu perto dos pés do elfo.
— Vocês, elfos sangrentos, não saberiam o que é nobreza nem se tivessem a definição da palavra tatuada na testa. Patéticos, viciados em magia, até venderam o próprio povo!
Talithar empalideceu, dando a Baenan a satisfação de saber que atingira um ponto sensível. Sabia que não era inteligente provocar seu carcereiro, mas estava zangado demais para se importar.
— É, sim — insistiu —, eu conheci alguns elfos superiores. Eu sei o que vocês fizeram com eles. Eu venho de Loch Modan; eu ouvi as histórias da guria Andarilha...
Em uma demonstração surpreendente de força física, Talithar atravessou o aposento numa única passada e ergueu Baenan no ar, lançando o anão contra a parede. Ele o manteve no alto e o encarou firme.
— Nunca, nunca, fale o nome dela em minha presença. — A voz de Talithar estava calma, mas nela havia um tom sutil ameaçador que arrepiou Baenan. Quisera irritar o elfo, mas a intensidade da reação de Talithar o chocara. Ainda assim, a Horda o capturara sem lhe dar a chance de lutar com armas, então usaria palavras. Aquele mago era o símbolo de tudo o que desprezava.
— Vejo que você conhece Vyrin Velozvento — disse Baenan, por puro despeito. — É alguém especial? Bom, ela odeia vocês agora, e tudo o que vocês representam!
Talithar arremessou Baenan no chão. O anão caiu em cima do ombro com força e preparou-se para sentir a ira do mago, mas Talithar demonstrou um alto grau de controle e não fez mais nada.
Baenan conseguiu se endireitar, sentando-se. Seu ombro doía, mas tinha valido a pena provocar o elfo sangrento. A cabeça de Talithar estava abaixada, e seus punhos estavam apertados com tanta força que ficaram lívidos. Ele ergueu os olhos, e o queixo de Baenan caiu.
O rosto de Talithar estava banhado em lágrimas.
— A esposa geralmente é especial para o marido. — A voz dele transmitia raiva, humilhação e desespero. Ele enfiou a mão na parte da frente das vestes e arrancou uma fina corrente de ouro do pescoço, atirando-a aos pés de Baenan. O colar não tinha pingentes ou joias, apenas dois belos anéis, um de homem e um de mulher, obra de elfos superiores.
— Você acha que eu não sei o que eu sou? Nós, sin’dorei, tivemos que fazer uma escolha: nossa integridade ou nosso bem-estar. Como se isso fosse alguma escolha... Eu escolhi meu bem-estar. Minha esposa escolheu a integridade.
* * *
Chen correu na direção do porão do Punho do Chefe Guerreiro o mais rápido que pôde. Escapar do olhar atento do capitão Aldrek fora difícil, e, para piorar, ainda tivera que procurar suas armas. Ele teve sorte — o barco tol'vir tinha sido erguido e guardado junto com os botes salva-vidas, e a tripulação não mexera em suas coisas. Até a pérola estava onde a deixara, dentro da mochila. Com certeza era um dos benefícios da admiração de Aldrek.
A entrada para o porão estava bloqueada. Chen respirou fundo e chutou a porta, entrando de chofre e brandindo o cajado, que assobiou no ar sem atingir ninguém. Chen parou, avaliando a situação. Baenan, o embaixador enânico, estava sentado no chão, triste, com os membros atados. Igualmente entristecido, Talithar, o vigia, sentava-se encostado à parede oposta.
Chen baixou o cajado. De olho em Talithar, dirigiu-se a Baenan.
— Eu vim ajudá-lo a escapar. Talithar, estou avisando...
O elfo o surpreendeu com uma risada curta e amarga. — Eu não vou deter você. Apenas saiam daqui.
A atitude de Talithar intrigou Chen, mas ele não iria questioná-la. Ajoelhou-se rapidamente ao lado de Baenan e usou uma faca para cortar as cordas. O anão olhou-o com gratidão.
— Você é um daqueles pandarens — disse ele, esfregando os pulsos. — Obrigado por me salvar.
— Você conhece meu povo? — perguntou Chen, cortando as cordas que prendiam as pernas de Baenan.
— Não muito. Mas nós salvamos uma garota pandarena da tempestade...
Chen agarrou Baenan pelo colete e o ergueu.
— Li Li?! — gritou o pandaren. — O nome dela é Li Li?
— É! — confirmou Baenan, furibundo por ter sido erguido no ar duas vezes em meia hora.
— O nome dela é Li Li! Ela disse que foi jogada ao mar durante a tempestade.
— Ela está viva — disse Chen, trêmulo, soltando Baenan. Suas patas tremiam. — Minha sobrinha está viva.
— Viva e bem, a bordo do Elwynn.
— Então não temos um minuto a perder — declarou Chen. — Aldrek está se preparando para a batalha. Vamos.
Chen se virou para partir, mas o anão hesitou, abaixando-se para recolher um pequeno objeto do chão. Para surpresa de Chen, Baenan ofereceu-o a Talithar.
— Isso é seu — disse o anão, constrangido. — Pegue de volta. E... — Baenan fez uma pausa —... sinto muito pelo que eu falei. Foi cruel da minha parte.
Chen piscou. O que estava havendo ali?
— Não — disse Talithar, suavemente. — Ele estendeu o braço e acariciou os dois anéis, então retirou a mão. — Você estava certo. Vyrin me deixou por um motivo. Eu fiz minha escolha. E teve suas consequências.
— É, mas... — Baenan hesitou novamente. — Tem outra coisa. Ela costumava falar de você. Bom, eu não sabia que era você, mas ela falava que tinha sido casada. Ela nunca me falou por que abandonou o marido.
— Ela não odeia você — prosseguiu. — Eu sei que ela está zangada, mas ela sente sua falta.
A expressão de Talithar mudou várias vezes ao ouvir Baenan falar e, por fim, tornou-se uma máscara de melancolia. Mas não apanhou o colar.
— Fique com ele. Mas me faça um favor.
Baenan assentiu com cautela.
— Quando você voltar a Loch Modan, leve os anéis para ela. Diga que eu tenho saudades dela e que nunca deixei de amá-la.
— Pode deixar — disse Baenan. — Eu prometo.
Talithar se levantou.
— Vocês só vão ter uma chance de escapar. Se vocês forem pegos, serão executados imediatamente. Eu farei o que puder para distrair os outros.
— Obrigado — disse Chen. — De verdade.
Talithar sorriu, embora a tristeza não abandonasse seus olhos.
— Vão logo.
* * *
Ao pôr do sol, uma massa de nuvens veio do sul e o ar esfriou. Li Li tremia no convés do Elwynn, esperando ansiosamente pelo resultado das negociações. Lintharel tinha desaparecido, à maneira dos elfos noturnos. Perto de Li Li, Trialin mastigava o dedo, sem dúvida preocupada com o irmão. A pandarena queria muito que tudo desse certo. A situação podia ser resolvida pacificamente se os dois lados estivessem dispostos a deixar o orgulho de lado. Algo tão simples, mas tão difícil de conseguir.
O capitão Heller e Nita enfim reapareceram no convés. Li Li ficou nas pontas dos pés para ver melhor. Seu coração se confrangeu. As grandes mãos de Nita estavam amarradas às costas. As expressões solenes dos guardas indicavam o fracasso das negociações.
O capitão Heller brandiu a espada.
— Essa criatura — anunciou, indicando Nita com a lâmina — atacou meus oficiais e eu assim que nos isolamos do resto da tripulação! Nós a imobilizamos, e agora temos que lidar com essa situação!
— Mentiroso! Eu não fiz nada disso! — Nita disse, zangada, o que lhe valeu um pescotapa de um dos oficiais mais altos.
— Silêncio, escória da Horda! — ordenou Heller.
Uma série de explosões e clarões interrompeu o capitão. Disparou-se magia do convés do navio da Horda, gerando runas brilhantes que iluminaram o céu do anoitecer.
Um dos magos berrou:
— Eles querem que nos rendamos, ou Baenan morre!
Heller rosnou de fúria e praguejou.
— Nós nunca nos renderemos! — gritou, como se pudessem ouvi-lo no Punho do Chefe Guerreiro.
Trialin cobriu a boca com as mãos, reprimindo um soluço de choro. Li Li passou o braço pelos ombros da anã.
Heller encarou Nita.
Você. — Ele fez um sinal para os homens, que empurraram a taurena para a frente. — Se Baenan morrer, você também morre. Sangue por sangue. — O capitão ergueu a espada.
Lintharel pareceu surgir do nada e se intrometeu entre Nita e o capitão, abrindo os braços.
— Não — disse a elfa noturna.
O rosto do capitão Heller se contorceu de raiva. Ele não abaixou a espada.
— Lintharel? — disse Nita, suavemente. Li Li inclinou a cabeça para o lado. Como a taurena sabia o nome de Lintharel?
— Saia da frente, elfa noturna — ordenou o capitão Heller.
— Eu lutei ao lado de Nita no Monte Hyjal — declarou Lintharel. — Conheço poucos camaradas tão honrados ou corajosos quanto ela. Ela não fez nada de errado. Deixe-a ir.
— O povo dela aprisionou Baenan. — Heller rilhou os dentes.
— E você a aprisionou. Se a Horda queria aprisionar Baenan desde o princípio, então estão dispostos a sacrificá-la. Eles devem saber como você reagiria ao ultimato. Ela é tão vítima quanto Baenan.
— Afaste-se, elfa noturna! É uma ordem!
— Ou você também queria aprisionar a mensageira da Horda — continuou Lintharel, erguendo o queixo — e condenar Baenan à morte?
— Cale a boca! — rugiu Heller. A ponta da espada estava a milímetros da garganta da elfa. — Você deve sua lealdade à Aliança. Me desobedecer é traição.
— Trair um amigo também é errado. A quem eu devo mais lealdade, capitão? A uma aliança política ou a uma aliança pessoal?
A questão perdurou no ar como uma nota soada por um gongo. O coração de Li Li subiu-lhe à garganta. Toda a tripulação assistia, sem mover um músculo, sem ousar respirar. Cada som parecia amplificado: as ondas batendo no casco de madeira, o madeirame sacudindo numa rajada de vento. As nuvens estavam mais espessas, tingindo o crepúsculo de um verde inquietante.
Os pelos nos braços e na nuca de Li Li se arrepiaram. O próprio ar estava carregado, chegando a um limite palpável de tensão.
E Li Li compreendeu.
Lintharel, postada entre Nita e os que lhe queriam fazer mal, não era tão vulnerável quanto parecera. Estava apenas conseguindo mais tempo.
Lançando um feitiço.
As primeiras gotas de chuva caíram.
— Lintharel — disse o capitão Heller, em uma voz letalmente calma —, esse é o último aviso.
Li Li agarrou o pulso de Trialin e deu um passo para trás, afastando-se da multidão. A anã, notando a urgência nos gestos da garota, seguiu-a sem dizer uma palavra.
— Eu não vou me afastar — disse Lintharel. Acima dela, o céu rugia.
— Então que seja! Matem...
A última parte da ordem de Heller se perdeu no rugido do vento que soprou furiosamente atrás de Lintharel, empurrando todos que estavam no caminho. No mesmo instante um raio partiu o céu, atingindo o mastro principal do Elwynn como uma bomba, incendiando a vela em meio a uma chuva de faíscas. Fragmentos de madeira do tamanho de adagas choveram sobre o convés. Li Li e Trialin pularam atrás de um caixote. A noite estava iluminada com as chamas.
Lintharel avançou para o espaço desimpedido à sua frente, com os braços abertos numa posição não mais de sacrifício, mas de poder. Seus olhos brilhavam como estrelas, brancos como o relâmpago que ela evocara. O vento resfolegava em redor dela, agitando seus cabelos, puxando o kilt de couro, mas ela parecia não sentir. Li Li observava, atônita. Litharel parecia uma deusa.
— Liberte-a — ordenou ela a um marinheiro que se encolhia no convés. Ele fez que sim, seus olhos arregalados de medo, e começou a rastejar na direção de Nita.
Outra explosão sacudiu o navio inteiro. Todos cambalearam. Em algum lugar, as pessoas gritavam pedindo água e curandeiros.
O Punho do Chefe Guerreiro abrira fogo.
O caos tomou conta da cena. A chuva caía das nuvens. Parte da tripulação atacou Lintharel e Nita, enquanto outra parte foi defender o navio. Por cima do barulho, o capitão Heller gritava ordens, tentando desesperadamente retomar o controle da situação.
Uma salva de tiros de canhão respondeu ao ataque do navio da Horda, e algumas das balas acertaram o alvo. Li Li saltou do esconderijo, com os olhos fixos na pequena multidão que lutava contra a elfa noturna e a taurena.
— Aonde você vai? — perguntou Trialin.
— O que eles fizeram com Nina foi errado — disse Li Li, num tom de desafio. — Eu vou ajudar as duas.
Li Li temera que a raiva de Trialin por causa do irmão faria com que ela tomasse o lado do resto da tripulação, mas, para seu alívio, a anã assentiu.
— Sim. É o cúmulo da covardia atacar um diplomata. — Ela puxou uma espada curta do cinto e a entregou a Li Li. — Você vai precisar de uma arma.
— Obrigada — respondeu a pandarena. Com um grito, as duas entraram no combate.
* * *
Chen e Baenan correram pelo convés inferior, tentando chamar o mínimo de atenção possível. Baenan enfiou a barba sob o colete e usou um capacete para esconder o rosto, numa tentativa mambembe de se disfarçar. O plano de fuga improvisado consistia em chegar ao barco tol'vir, lançá-lo ao mar e pular nele. Era arriscado, mas não podiam ficar mais tempo ali.
O navio tremia a cada impacto dos tiros dos canhões da Aliança. Chen encontrou a escada que procurava, a mais próxima aos botes salva-vidas, e empurrou Baenan para frente, subindo atrás dele.
— O prisioneiro está fugindo! — gritou uma voz atrás deles. Chen reconheceu Karrig. — Traidor imundo! Nós confiamos em você! Matem os dois!
Chen arriscou um olhar para baixo. Contou seis pessoas, incluindo Karrig. O pandaren praguejou. Lutar com eles levaria muito tempo.
— Vão! — gritou outra voz. Talithar apareceu correndo e se arremessou ao pé da escada. — Eu vou detê-los!
Os fugitivos não hesitaram. Articulando silenciosamente palavras de gratidão, Chen subiu o resto da escada, e então ele e Baenan correram.
— Você é uma vergonha para a Horda, Talithar Velozvento! — rugiu Karrig. — Seu elfo traidor imprestável!
— Eu lutei pela Horda nos campos nevados da Coroa de Gelo — respondeu Talithar calmamente. — E com muito orgulho. Mas a Horda não pode exigir toda a minha lealdade.
— Saia da nossa frente — grasnou Karrig — ou morra.
Talithar ergueu as mãos, sobre as quais flutuavam bolas vermelhas de fogo. A luz iluminava o conteúdo do paiol. As paredes eram ladeadas por barris cheios de pólvora, munição extra para os canhões.
— Ah — disse Talithar, com um sorriso tranquilo. — Eu já fiz minha escolha.
* * *
O fogo se espalhara até a vela principal do Elwynn, e a chuva não chegava para combater o incêndio. Alguns marinheiros formavam fila com baldes para conter as chamas, mas seus esforços eram em vão. O navio fatalmente seria engolido pelas chamas.
— Nita — gritou Lintharel —, você tem que sair daqui! assuma uma outra forma e fuja!
— Você salvou minha vida — respondeu a taurena. — Eu não deixarei que você lute sozinha.
— Ela não está sozinha! — gritou Li Li, postando-se entre as duas druidesas.
— É, nós viemos ajudar você! — disse Trialin, girando dois machados com perícia. Lintharel atirava raios amarelos de magia; Li Li aparava os golpes dos marinheiros. A anã, a elfa noturna e a pandarena afastaram os agressores, abrindo um espaço desimpedido.
— Agora é nossa chance! — gritou Li Li para Nita.
— Estarei sempre em dívida com você! — respondeu Nita. Com um único salto, ela rompeu a linha de marinheiros e se atirou ao mar. Momentos depois, um leão marinho esguio desaparecia sob as ondas.
Li Li respirava sofregamente. Ela apertava forte a espada, ficando ombro a ombro com Lintharel e Trialin. A chuva batia em seu rosto e no seu pescoço. Agora que Nita estava livre, eles também tinham que escapar.
Trialin ergueu um machado, acenando para as companheiras.
Um — disse ela —, dois...
Uma enorme explosão sacudiu o Elwynn da popa à proa. O navio estremeceu violentamente, e o casco de madeira gemeu com a força do impacto. Todos foram arremessados ao convés. Uma coluna de fumaça se ergueu no ar, e gotas de piche escaldante caíram do céu, juntando-se às chamas que já queimavam as velas.
— Por Elune e Ysera! — praguejou Lintharel. Li Li rolou para o lado, tentando ver o que tinha acontecido. Fumaça escapava de um buraco no casco do Punho do Chefe Guerreiro, onde ocorrera a explosão.
— Baenan — sussurrou Trialin, perto de Li Li. — Oh, Luz, permita que ele viva…
Lintharel ergueu-se antes dos outros e ofereceu a mão à pandarena, que, ao estender o braço para aceitá-la, viu de relance um movimento súbito. O capitão Heller esgueirara-se atrás de Lintharel com a espada desembainhada.
— Cuidado! — gritou Li Li, mas o aviso chegou tarde demais. O corpo de Lintharel dobrou para trás, seus olhos se arregalaram de choque e dor; o capitão a trespassara de um só golpe.
Lintharel soluçou, e sangue pingava-lhe dos cantos da boca. Seus joelhos bateram contra o convés de madeira e ela caiu desajeitadamente, arquejando.
Heller retirou a espada. A chuva forte já lavava o vermelho da lâmina.
— A punição por traição é a morte — disse ele, calmamente, erguendo a arma para dar o golpe de misericórdia.
Uma sombra moveu-se ao seu lado, aumentando e ganhando forma, e uma lâmina curva e entalhada apertou sua garganta.
Sua face inchou de raiva.
— Traidores!
— Cale-se. — Os olhos de Atropa brilhavam ameaçadoramente, como os de Lintharel. — A punição por ferir minha família também é a morte.
* * *
Forte chuva esperava por Baenan e Chen quando finalmente chegaram ao convés principal. Ninguém pareceu notá-los; todos estavam preocupados demais com a batalha. Mais adiante, o Elwynn estava pegando fogo.
— Temos que chegar lá — declarou Baenan. O pandaren e o anão correram para os botes salva-vidas. Chen viu o barco tol'vir em meio aos outros.
Chen foi arremessado para a frente. O rugido e calor de uma grande explosão o engolfaram, arremessando-o junto com Baenan pelo convés, e eles aterrissaram nos botes salva-vidas.
Chen sabia que não podia perder a consciência Ele forcejou por ficar de joelhos, sentindo cada junta doendo com o esforço. Perto dali, Baenan jazia com o rosto no chão, tendo perdido o elmo com o impacto. Chen notou seu cajado rolando a alguma distância e pulou para pegá-lo, ignorando a dor nas pernas. Pelo menos nada parecia ter se quebrado em seu corpo.
— Baenan! — Ele sacudiu o anão com força. — Agora é nossa chance!
— Aquele elfo tolo dos diabos! — gemeu Baenan enquanto Chen o ajudava a levantar-se. — Nós estávamos no paiol!
— Ele não deve ter sobrevivido — disse Chen, surpreso ao sentir uma pontada de tristeza por alguém que ele tinha ameaçado aquela manhã.
— É. — Baenan olhou para Chen. — O navio inteiro vai afundar em questão de minutos. Hora de partir.
Chamas saíam do buraco aberto no casco do Punho do Chefe Guerreiro. O navio estava inundando rápido e se inclinando, tornando mais fácil para Chen e Baenan lançarem o barco tol'vir.
A explosão causada por Talithar desintegrara qualquer possibilidade de ordem; o único pensamento da tripulação era escapar com vida. Chen agarrou um remo e remou na direção do Elwynn, e suas velas em chamas eram como um sinalizador na tempestade.
Quando se aproximaram do navio da Aliança, um vulto caiu do convés na água, quase acertando o pequeno barco.
— O capitão Heller! — exclamou Baenan.
Chen olhou para o corpo, que flutuou alguns instantes antes de afundar sob as ondas.
— Cortaram a garganta dele.
Eles olharam para o convés de onde o corpo de Heller caíra. Chen prendeu frouxamente o barco tol'vir ao Elwynn, preparando-se para uma posterior fuga rápida.
— Está pronto? — perguntou a Baenan.
— Sim — respondeu o anão, com um brilho nos olhos. — Vamos pegar nossas famílias. E então fugimos.
Os dois pularam juntos da amurada do barco tol'vir e partiram rapidamente para o Elwynn.
* * *
A aurora dourada iluminava apenas os destroços que flutuavam nas ondas onde os dois navios tinham afundado. Ninguém estava ali para ver. Os botes salva-vidas tinham todos se dispersado.
Um pequeno barco levava quatro passageiros, três dos quais se apinhavam na proa e na popa para abrir espaço para o quarto, enrolado no meio da embarcação.
— Eu fiz o que pude — disse Baenan tristemente, sacudindo a cabeça. A exaustão dominava seu rosto. — Atingi meu limite. Eu sinto muito.
Trialin pousou a mão no braço do irmão.
Atropa aninhara a cabeça de Lintharel no colo, acariciando o cabelo da druidesa. Ela inclinou-se e sua testa encontrou a de Lintharel, e lágrimas escorreram por seu rosto.
Os olhos da outra estavam fechados, mas ela sorria fracamente. Não falou, mas apertou a mão de Atropa. Todos estavam em silêncio; sabiam que era apenas uma questão de tempo.
Ninguém notou o ponto escuro no horizonte, aumentando continuamente de tamanho ao se aproximar, até que um grito agudo os assustou. Um grande pássaro marrom desenhava círculos no céu; sua envergadura era quase do tamanho do bote. O pássaro desceu e pousou na amurada. A criatura deu uma olhada rápida para os lados e se transformou.
Era Nita.
A taurena ajoelhou-se ao lado de Lintharel, com cuidado para não desequilibrar o bote salva-vidas. Ela passou os dedos no meio do torso da elfa noturna, cobrindo a ferida. Um brilho esverdeado emanou de suas mãos, banhando Lintharel em luz.
Lintharel inalou violentamente, arquejando e tossindo, e tentou se sentar. Atropa e Nita a seguraram gentilmente.
— Calma, minha amiga — disse a taurena. — Você logo estará bem; não precisa ter pressa.
Lintharel apertou a mão de Nita.
— Obrigada.
Atropa segurou o grosso braço de Nita. Lágrimas ainda brilhavam nos olhos da elfa noturna.
— Eu também fico-lhe muito grata.
— Era o mínimo que eu podia fazer — respondeu Nita. — Eu nadei pelo oceano a noite toda. Há muitos sobreviventes, tanto da Aliança quanto da Horda. Eu farei o que puder para guiar todos para a terra.
— Quando eu recuperar as forças, vou ajudar — disse Lintharel. Ela lançou um sorriso reconfortante a Atropa. — Não vai demorar muito.
Antes de partir, Nita também lançou feitiços menores em Baenan, Trialin e Atropa. Baenan suspirou com alegria ao sentir a dor dos ferimentos sumindo.
— Obrigado, Nita dos taurens. — Baenan esfregou o peito, notando como já não sentia dor. Seus dedos tocaram um objeto sob a túnica.
— Pelo martelo de Muradin! — exclamou ele, puxando o colar de Talithar, de onde pendiam os dois anéis. — Eu esqueci que estava com isso.
— O que é isso? — Trialin perguntou.
— Era de Talithar — Baenan respondeu, suavemente. — Um elfo sangrento que estava no navio da Horda — Ele salvou minha vida. Os anéis são dele e da esposa.
Nita franziu o cenho.
— O quê?
Baenan virou-se para a irmã.
— Trialin, você se lembra de Vyrin Velozvento, do Pavilhão dos Andarilhos?
— Em Loch Modan? É claro que lembro.
— Talithar era casado com ela.
— Eu... não o vi nos botes — disse Nita. Baenan sacudiu a cabeça.
— Nem vai. — Ele fechou a mão que segurava os anéis. — Foi ele quem causou a explosão no Punho para me ajudar a escapar junto com o pandaren. Ele morreu.
— O que vamos dizer a Vyrin? — perguntou Trialin.
— Que seu marido morreu como um herói. — Baenan ergueu a cabeça, decidido. — Qual o caminho mais rápido para chegar à terra? Eu tenho uma mensagem para entregar.
— Siga para o norte e depois oeste — respondeu Nita. — Você não está longe de Tanaris. Eu retornarei assim que for possível para ajudar, se você precisar. Que a Mãe Terra esteja com vocês.
— E que Eluna esteja com você — respondeu Atropa.
Nita abriu os braços e se transformou num pássaro, alçando-se aos céus.
* * *
Mais uma vez, o barco tol'vir balançava sob um céu coalhado de estrelas. Chen apertava Li Li bem forte.
— Eu pensei que tinha perdido você, Li Li. Eu pensei que você tinha morrido.
Li Li enterrou o rosto no ombro do tio.
— Eu também pensei que estava — respondeu, sorrindo fracamente. Chen deu uma risada fraca, embora parecesse mais uma tossida.
A bordo do Elwynn, tudo fora fogo e caos. Ele e Baenan tinham se separado imediatamente. As memórias de Chen eram um borrão. Ele chamara o nome de Li Li, freneticamente, repetidas vezes, e então, como mágica, ela aparecera, correndo do fogo, sangue escorrendo por seu rosto. Eles tinham pulado do navio de volta para o barco, nos últimos minutos. Enquanto Chen e Li Li remavam para longe, viram os derradeiros momentos do Punho do chefe Guerreiro e do Elwynn, cujos destroços em chamas iluminavam o oceano com um brilho alaranjado.
Os pandarens dormiram mal pelo resto da noite. Todo o stress acumulado agora os exauria, e eles perderam a consciência da passagem do tempo, alternando entre sono e vigília.
* * *
Li Li não sabia quantos dias tinham se passado. Dois? Três? Eles estavam sendo seguidos por uma cobertura densa de nuvens, que tornava impossível distinguir a manhã da noite. Apenas quando o céu escurecia por horas eles sabiam que outro dia havia acabado. O tio Chen passava o tempo dormitando sob a vela. Ele fora ferido na explosão do navio da Horda, e ainda levaria dias para se recuperar.
Li Li descansou a cabeça contra o mastro. A vela pendia frouxa do madeirame, mas ela não conseguia se forçar a recolhê-la. Tudo — absolutamente tudo — dera completamente errado. Ela relembrava o instante em que fora arremessada ao mar, ou quando a espada do capitão Heller atravessara o corpo de Lintharel, ou o borrifo tépido do sangue dele em seu rosto quando Atropa cortou-lhe a garganta. A pandarena tremeu. Memórias terríveis, coisas terríveis de se testemunhar.
Li Li percebeu o som de papel amassando ao vento e, ao olhar para o alto, viu um elegante albatroz de papel pairando sobre sua cabeça. Estendeu a mão e o pássaro pousou, ficando imóvel instantaneamente, já sem magia para energizá-lo. Curiosa, Li Li desdobrou o papel, alisando os vincos o melhor que podia. O albatroz era composto de duas cartas, uma para ela, outra para o tio Chen. O coração de Li Li bateu mais forte quando ela compreendeu que eram do seu pai.
Sem querer se intrometer na privacidade do tio, Li Li dobrou novamente a carta dele e a colocou na mochila. Mas leu a que lhe era endereçada:
Querida Li Li, Eu nunca fui muito bom com palavras. Sempre que eu tento falar com você, é como se as palavras não saíssem como eu quero, e nós nunca conseguimos nos entender.
Você puxou mais a sua mãe e a meu irmão do que a mim. Você tem o senso do deslumbramento do meu irmão e a coragem de sua mãe. Isso era uma das coisas que eu mais adorava nela, embora, não tendo essa qualidade, sempre me assustasse muito ao vê-la enfrentar situações que eu teria evitado a todo custo. E também me assusto em igual medida ao ver você tomar decisões parecidas. No passado, eu deixei que esse medo se manifestasse como raiva, e agora sei que isso foi errado.
Você está destinada a tomar decisões diferentes na sua vida das que eu tomei na minha. Já é mais do que hora de eu aceitar isso. Não importa o que aconteça, você sempre será minha filha, e eu sempre terei orgulho de você.
Com amor,
Seu pai
Li Li leu a carta duas, três vezes, gravando cada palavra na memória. Ela se lembrou de quando se perguntara, em Geringontzan, se conseguiria ser verdadeira consigo mesma e, ao mesmo tempo, boa o suficiente para o pai. Chen lhe dissera que sim, e ele estava certo. Os olhos de Li Li ficaram rasos d'água, e ela piscou, sem conseguir desimpedir a visão borrada. De repente, sentiu saudades do pai, com uma intensidade que jamais pensara ser possível.
— Ah, tio Chen — disse ela, triste —, por que a pérola me mandou nessa jornada idiota? Vamos para casa. Eu só quero ir para casa.
Ainda dormindo, Chen suspirou. Uma lágrima escorregou pela bochecha de Li Li, que já estava úmida do ar enevoado. Ela fechou os olhos e apertou os joelhos perto do peito.
Um forte sopro preencheu seus ouvidos, mas ela não sentiu vento algum. Ao olhar para o alto, Li Li viu uma névoa sem fim rodopiando, como um redemoinho. Inclinou-se para a frente e acordou o tio.
— O que está havendo? — perguntou ele, grogue.
— Eu não sei. Eu nunca vi nada parecido.
A névoa girava cada vez mais rápido, atordoando Li Li. E então, de súbito, desintegrou-se, deixando para trás um céu azul brilhante e o orbe fulgurante do sol.
E diante dos dois, estendendo-se pelo horizonte como uma joia, estava uma terra que nenhum dos dois reconheceu.
— Olhe! — gritou Li Li, apontando. — Tio Chen... aquela é...?
— É! — exclamou Chen. — Tem que ser!
Li Li já estava de pé, içando a vela. A brisa tinha voltado a soprar, e eles logo estariam ancorando. Chen correu para ajudá-la, e, juntos, eles conduziram o barco até a costa.
* * *
Uma praia adequada apareceu, e os dois pandarens arrastaram a embarcação para a areia, sentindo as patas trêmulas de empolgação. Chen e Li Li correram para explorar o cenário e logo encontraram uma estrada estreita, mas bastante utilizada. Uma lanterna de aparência familiar balançava gentilmente na brisa, pendurada em um poste entalhado, como que dando-lhes boas-vindas.
Chen quase caiu de joelhos ao vê-la.
— Isso foi feito por pandarens — disse ele, numa voz fraca. — Tenho certeza absoluta.
— Nós chegamos. Nós conseguimos mesmo. Pandária.
Eles subiram uma colina que dava para a praia e lá ficaram, observando o mar. O dia era claro, sem uma nuvem à vista. O oceano brilhante estendia-se até onde a vista alcançava. Chen passou o braço nos ombros da sobrinha e apertou-os carinhosamente.
— Isso quer dizer que o feitiço acabou? — perguntou Li Li. — A névoa se abriu mesmo pra sempre?
— Eu... não tenho certeza — respondeu Chen. — Mas acho que sim.
— Então eles virão. Papai e Shisai e Vovó Mei, e todos os nossos amigos. Eles todos virão.
Sem ser evocada, uma imagem surgiu na mente de Chen. Dois navios em chamas lado a lado, canhões disparando, marinheiros gritando, lâminas tilintando. Uma cena de algumas noites antes, quando ele precipitara-se desesperado do Punho do Chefe Guerreiro ao Elwynn, sem achar refúgio. A pata de Chen apertou o ombro de Li Li com mais força.

— Não apenas nossos amigos, Li Li. Todo mundo.

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