quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Busca por Pandaria Parte 2



— Deixa eu ver se entendi. Você está me dizendo que eu não posso falar com o Rei Magni por que ele virou uma pedra?
Diante do Conselho dos Três Martelos, na sala do trono da labiríntica cidade enânica subterrânea de Altaforja, Li Li Malte do Trovão se espichou o mais alto que pôde, apertou seu cajado com força e, jogando o queixo para diante, fez a melhor expressão de ultraje que conseguiu.

— Mas que história da ca-rochinha! — exclamou ela.
— É a verdade! — contestou o anão no centro do salão. — Você pode ir a Velha Altaforja e ver por si mesma! Meu irmão realizou um ritual de comunhão com a terra um pouco antes do Cataclismo. — Muradin Barbabronze fechou a mão em punho. — E esse foi o resultado.
— É preciso ousadia para chamar o Conselho dos Três Martelos de mentiroso — comentou Moira Thaurissan, numa voz deliberadamente mansa. — Se seu comportamento indica o temperamento do seu povo, não posso dizer que estou triste por ainda não tê-los conhecido.
— A recíproca é verdadeira, dona — disparou Li Li, entredentes, para em seguida dirigir-se aos três membros do conselho. — Pelo que entendi, vocês não podem me ajudar.
Muradin sacudiu a cabeça e disse:
— Temo ser impossível. O que Magni prometeu a você, ele já não pode confirmar, e o conselho se encontra dividido a respeito de você.
— Muito bem. Creio que é melhor eu ir embora. — Dizendo isso, Li Li se virou para partir.
— Tenha modos, minha jovem — advertiu Moira. Li Li fez uma pausa e, num movimento fluido, se voltou, dobrando o braço na altura da barriga e se curvando exageradamente.
— Ó grande Conselho dos Três Martelos, vossa habilidade merece o mais alto encômio! Vós provastes ser mais duros que a rocha em que o Rei Magni se tornou, e eu me sinto honrada por ter sido por vós tão ostensivamente ignorada.
O brado de indignação de Moira foi parcialmente abafado pela áspera gargalhada de Falstad Martelo Feroz, e quando Muradin finalmente conseguiu fazer os dois pararem de discutir, Li Li já há muito abandonara o salão.
* * *
A Taverna Pedra de Fogo se revelou um exemplo da hospitalidade enânica melhor do que a sala do trono. Fregueses tagarelas tomavam as mesas, gargalhando e bebendo juntos. Mas Li Li preferiu sentar sozinha nos fundos. Embora ela fosse uma figura incomum, os outros a deixaram quieta com seu copo de cerveja.
— Acho que não foi uma boa ideia mandar a Garça embora antes de falar com o conselho —disse para si mesma. — Mas eu não esperava que o rei de Altaforja tivesse se transformado em pedra.
Ela bebeu a cerveja, aprovando o sabor, e se apoiou no cotovelo, traçando desenhos distraidamente na mesa. Perdida em pensamentos, não ouviu passos se aproximando por trás até que uma sombra a encobriu.
Li Li não levantou o rosto.
— Cai fora, por favor. Estou ocupada.
Uma gargalhada familiar foi a resposta.
— Ocupada demais para tomar um trago com seu tio? Que pena.
Li Li pulou e se virou rapidamente. Chen estava à sua frente, de mochila às costas e cajado nas mãos.
— Tio Chen! — Ela o abraçou. — Hum, foi mal pela resposta.
Chen riu, apertando a sobrinha em seus braços, e se sentou.
— Deixa pra lá. Aposto que você consegue adivinhar por que eu estou aqui.
Li Li suspirou e se sentou.
— O papai mandou o senhor vir me buscar.
— Sim, mas eu não vou fazer isso. Eu li sua carta, e não deixei de notar que a pérola que Wanyo trouxe desapareceu. —Li Li tentou manter uma expressão neutra. Chen ergueu uma sobrancelha e insistiu. — Bem?
Li Li respirou fundo, sabendo-se sem saída, e contou ao tio o que ela vira na pérola antes de sair em sua jornada até Altaforja.
Chen tomou um gole de cerveja, pensativo.
— Eu estava certo de que você tinha decidido encontrar Pandária, já que tínhamos falado disso. Essa pérola lhe concedeu uma visão mesmo?
Li Li fez que sim com a cabeça entusiasticamente.
— Foi por isso que eu a peguei. Ela não teria me mostrado a visão sem um bom motivo!
Chen olhou para ela com o canto do olho e disse:
— Eu não confio numa pérola mágica aleatória que Wanyo pegou de um murloc... mas eu confio no seu julgamento, Li Li.
— Que bom, tio Chen!
— Muito bem. E o que fazemos agora?
Li Li se mexeu na cadeira.
— Bom, as coisas não aconteceram bem como eu estava planejando e... hum, eu não tenho um plano B.
Chen sorriu.
— Você disse que a pérola concede visões, não é?
A palma de Li Li fez plá quando bateu na testa dela.
— É claro. Por que eu não pensei nisso antes? — Ela bebeu o resto da cerveja e se levantou — Venha. A pérola está no meu quarto.
* * *
Li Li sentou-se na beirada da cama, segurando a grande joia e deixando o brilho suave induzi-la ao transe. Ela piscou, fechando os olhos para a opalescência pálida da pérola, e então abrindo-os para se ver em pé na beirada de um cais, encarando o mar azul brilhante. Uma grande ilha se elevava no meio da enseada, com uma estátua dilapidada de um goblin maneta em seu topo. Li Li se virou para olhar os arredores. Deques e casas de madeira improvisadas se dispunham num formato de U ao longo da baía. Nos espaços entre os prédios, Li Li viu folhas de palmeira de verde profundo e densa folhagem de selva.
— O que você viu?
A voz de Chen trouxe Li Li de volta para a realidade física do quartinho em Altaforja. Ela depôs a pérola outra vez em sua mochila, perto da cama, escondendo-a sob dobras de tecido.
— A Angra do Butim.
— O quê? — Chen se sentou ao lado dela. — Você tem certeza? Não seria mais fácil sair de Ventobravo?
— É, seria, mas eu vi Angra do Butim, sem dúvida. — A pandinha gemeu e, se atirando de costas na cama, cobriu os olhos com o braço. — A Angra do Butim fica a nunca quilômetros de distância!
Chen estalou a língua baixinho, encarando a parede à frente. Após alguns instantes, bateu as mãos e se levantou.
— Vamos, Li Li. Parece que temos uma boa caminhada pela frente. A vida é uma aventura, lembra-se?
Li Li levantou o braço do rosto só um pouquinho para espiar Chen. Seus olhos brilhavam de um jeito sapeca, e ela teve vontade de dar uma rasteira nele. Não que ela achasse que o pegaria de surpresa, mas foi um bom pensamento ainda assim.
— Tá bom, tá bom. — Ela se sentou. — Vamos logo então.
* * *
Eles pegaram o Metrô Correfundo para Ventobravo, o inverso da viagem que Li Li fizera com Bô em sua primeira jornada a Azeroth. Ela se viu incapaz de sentir a mesma empolgação que sentira da primeira vez, sentindo agudamente a perda de Bô ao revisitar os locais onde eles haviam estado. No metrô, os dois tinham lutado com um goblin que, depois eles souberam, trabalhava para a naga e o orc responsáveis pela morte de Bô. Em retrospecto, Li Li desejava ter podido reconhecer o perigo que ameaçara ela e Bô. As coisas talvez pudessem ter sido diferentes.
Li Li se forçou a afastar a mente desses pensamentos. Não fazia sentido ficar pensando em coisas que não podiam ser mudadas.
Já Ventobravo havia mudado, mais do que ela imaginava. Além da nova construção no Distrito dos Anões onde o metrô chegava, ela pôde ver os telhados chamuscados, prédios queimados e barbacãs de pedra esfaceladas em meio às torres mais altas. Havia sinais de dano provocado por fogo por toda a cidade. Chen puxou um mercador ocioso de lado para perguntar o que acontecera.
O mercador franziu o cenho para eles.
— Asa da Morte — respondeu.
Chen pressionou o mercador para obter mais informações.
— Asa da Morte, o grande dragão?
— É. — O mercador deu de ombros. — Eu nunca tinha ouvido falar dele, acho que ele estava escondido. Isso é o que o pessoal entendido fala. Mas é, ele voltou, incendiou o Parque, destruiu metade da cidade. — Ele tremeu com a lembrança. — Foi o dia mais aterrador da minha vida, vendo aquela fera no céu cuspindo fogo em cima da gente. Achei que era o fim do mundo.
— Obrigado — agradeceu Chen, e comprou uma bijuteria para agradecer a atenção do mercador.
— Eu sei que você já leu sobre dragões em meus diários, Li Li — comentou Chen enquanto se afastavam. — As grandes e horríveis ondas que vimos em Shen-zin Su há algum tempo devem ter sido os sinais do retorno de Asa da Morte. — O pandaren olhou para o céu, e Li Li se perguntou se ele esperava ver o antigo e lendário Aspecto passar voando acima de suas cabeças.
Li Li acenou concordando. Ela sabia um pouco a respeito de dragões, mas Chen sabia mais, com certeza, e as notícias sobre Asa da Morte pareceram preocupá-lo bastante.
Eles permaneceram alguns dias em Ventobravo, reunindo os suprimentos necessários para a viagem. Era um longo caminho em direção ao sul, e não haveria cidades grandes até que chegassem à Angra do Butim. Quando juntaram tudo de que precisavam, tio e sobrinha partiram, deixando a agitação da cidade atrás de si.
Embora o dano sofrido por Ventobravo fosse extenso, a Floresta de Elwynn parecia em sua maior parte a mesma, e nada pareceu incomum a Li Li na trilha em que eles seguiam. Já a Selva do Espinhaço estava bem diferente. Enquanto pisavam a trilha estreita e gasta no meio da selva, os sinais do retorno de Asa da Morte eram evidentes por toda parte, de trechos corrompidos de floresta a novas colônias da Horda e da Aliança. Em alguns pontos a estrada ficava realmente traiçoeira, de forma que foi com alegria que eles chegaram finalmente a Angra do Butim. Governada pelo Cartel Bondebico, a pequena cidade se encarapitava na ponta do Cabo do Espinhaço com a postura desafiante dos eternos desvalidos. Todo tipo de gente inescrupulosa e aventureiros deslumbrados procuravam Angra do Butim para fazer fortuna ou escapar das leis rígidas das cidades maiores. Li Li e Chen pisaram nas frágeis passarelas de madeira com alívio e alegria.
— Eu amo a vida na estrada, mas será bom dormir numa cama hoje à noite — disse Chen, suspirando de satisfação. Li Li sabia que Angra do Butim era um dos locais favoritos dele em toda Azeroth.
— A estrada por aqui bem precisava de uma melhoria —bufou Li Li. — Será tão difícil assim botar uma mísera placa dizendo "CUIDADO: O caminho desaparece num redemoinho gigante e mortífero"?
Chen ficou sério rapidamente.
— Asa da Morte realmente fraturou o mundo.
— Mas Angra do Butim parece intacta.
— Acho que seria preciso mais do que alguns redemoinhos mortíferos gigantes para fazer os goblins abandonarem aquele lugar — brincou Chen, piscando e sorrindo outra vez. — Vamos, Li Li. Tem uma caneca de grogue goblin horrível me esperando.
* * *
A Taverna do Lobo do Mar não chamaria a atenção de nenhum arquiteto, a não ser como um catálogo de danos estruturais. O lugar era velho e tinha um ar improvisado e inacabado, com andares e camas adicionados de qualquer jeito sempre que o fluxo de visitantes ultrapassava a capacidade da estrutura. Em Angra do Butim, segurança e estabilidade não eram a maior preocupação dos proprietários — afinal, o comprador que se cuide.
Assim, mesmo que a taverna não fosse o lugar ideal para o turista honesto, era o refúgio perfeito para a arraia miúda, os desvalidos, pequenos criminosos, marinheiros hedonistas e membros ligeiramente escusos da sociedade. Havia muitos lugares ali para se esconder e observar.
Aquele era justamente um dos passatempos favoritos de Fátia Clávia. De onde ela estava, no segundo andar, ela podia observar as idas e vindas dos fregueses, atenta a qualquer oportunidade que surgisse.
Muitas pessoas incomuns iam a Angra do Butim. Ainda assim, Fátia ficou genuinamente surpresa ao ver dois pandarens entrando pela porta da frente, depositando duas moedas no balcão para Skindle. Ela já ouvira falar daquela raça, mas jamais vira nenhum pandaren, e alguma coisa neles despertou sua curiosidade. Seus cajados e mochilas os identificavam claramente como viajantes. Ela os observou levando suas cervejas para uma mesa vazia no canto do bar, e começou a se aproximar pelas escadas, ávida por descobrir mais sobre os dois fascinantes estranhos.
* * *
Chen rolou gentilmente a caneca metálica entre as mãos, vendo a bebida girar.
— Com certeza é tão ruim quanto eu lembrava —comentou.
— Os pandarens fazem cerveja forte feito pólvora — observou Li Li —, mas eu acho que os goblins fazem a cerveja deles com pólvora.
Chen coçou o queixo, pensativo.
— Li Li, você se lembra de mais alguma coisa sobre a pérola?
Li Li ficou imóvel, com a caneca a meio caminho da boca.
— Eu contei ao senhor e ao papai tudo o que a naga me falou, e o que Wanyo disse confirmou essas coisas.
— Então você estava mesmo bisbilhotando a conversa.
Li Li ficou pasma e protestou:
— Mas que truque sujo!
Chen sorriu.
— Você se entregou sozinha, Li Li. — Ele balançou o dedo para a sobrinha numa reprimenda, mas seus olhos brilhavam.
— Tá, tudo bem, eu escutei a conversa —bufou a pandinha. — E daí?
— Eu estou pensando na pérola. Nós não sabemos nada sobre ela além do fato de que uma naga estava desesperada para pôr as mãos nela, e que ela concede visões. E no entanto aqui estamos nós, seguindo esse artefato.
Li Li entendeu o que Chen quis dizer, mas seus instintos lhe diziam para confiar na pérola.
— Eu não sei —admitiu ela. — Pode ser que a pérola seja perigosa. Mas ela não parece maligna. Não sinto nada de assustador nela.
— No que concerne a magia, sei que posso confiar em seus instintos. Mas as nagas não são lá o bando mais gentil e bondoso. Se uma naga deseja essa pérola, alguma capacidade destrutiva ela tem que ter. — Chen notou a expressão no rosto de Li Li. — Só estou tentando tomar conta de você, como seu pai pediu.
Li Li botou a caneca sobre a mesa um pouco mais fortemente do que o normal e fez careta para a parede. Chen insistiu com cuidado.
— Você ainda está zangada, Li Li?
— Parece até que eu vou cair no mar e me afogar, ou coisa assim.
Chen decidiu que não queria ter outra discussão com a sobrinha.
— Eu sei que você é forte e que não é mais uma criança. Seu pai está preocupado, isso é tudo.
— Ele não gosta nem quando eu saio num barco de pesca. Acho que ele tem muito medo do que aconteceu com a mamãe. Mas se dependesse dele eu ficaria em casa o tempo todo, cuidando do jardim e cozinhando, e nunca faria nada de interessante. — Li Li se inclinou para frente, na direção de Chen. — A pérola me deu uma visão. Essa missão é minha, e quando eu a completar, o papai terá que admitir que estava errado em tentar me prender em casa!
— Os pais podem ser muito frustrantes, não é? —Chen e Li Li olharam para o local de onde a voz tinha vindo e viram uma figura com as mãos erguidas de maneira inofensiva, que continuou:
“Desculpem interromper. É uma taverna cheia e eu acabei ouvindo a conversa de vocês. — A estranha puxou uma cadeira vazia e sentou perto de Li Li. Era uma humana pálida, que largou a mochila no chão ao lado da mesa, cruzou as pernas elegantemente e repousou um braço no encosto da cadeira.
— Meu nome é Fátia. Por aqui o pessoal me chama de Fátia Clávia, a Lâmina. — A humana enfiou um cacho de cabelo ruivo-acastanhado atrás da orelha. — É meio dramático, eu sei, mas não soa tão mal, não acham?
— É um nome afiado — disparou Li Li. Fátia riu.
— Você é esperta! — Fátia sorriu. — Eu ouvi o que você disse antes. Na verdade eu falei sem pensar. Sua história me soa tão familiar.
— Familiar?
— Eu passei por coisa parecida — contou Fátia, olhando para o teto e batendo com a mão na coxa. — Meu pai é um acadêmico empertigado, e queria que eu fosse a mesma coisa. Mas eu não queria isso pra mim, e ele não abria mão de escolher o meu destino para mim. Então eu parti. Isso já faz anos, e foi a melhor decisão que eu já tomei.
— Lamento que você nunca tenha se acertado com seu pai — disse Chen, polidamente.
Fátia deu de ombros.
— A culpa é dele. Se ele tivesse me ouvido, eu não teria fugido dele. — Fátia deu um olhar de lado para Li Li e se encurvou para coçar a panturrilha sob a mesa. Li Li estava encarando a cerveja pensativa, com a testa franzida.
— Ei — chamou Fátia, suavizando a voz. — Desculpe se falei o que não devia. Eu só queria encorajar você um pouco. Você precisa ser você mesma e viver sua própria vida! Se seu pai não consegue entender isso, não é problema seu.
— Ele faz virar problema meu —murmurou Li Li. Chen olhou para ela.
— Um dia ele entenderá, Li Li — afirmou Chen.
— Talvez sim, talvez não —retrucou Fátia. — O meu nunca entendeu. Mas eu não me arrependo das minhas escolhas. — Ela se levantou e pegou sua mochila. — E duvido que você se arrependa. Aproveite sua estadia em Angra do Butim. — A humana se despediu deles casualmente e saiu para se juntar aos outros fregueses da taverna.
— Como é mesmo aquele ditado sobre conselhos de graça? —comentou Chen, vendo-a se afastar.
Li Li se remexeu na cadeira e terminou a cerveja da caneca, fazendo uma careta.
— Mas ela sabe do que está falando. Ela passou pelo mesmo.
Chen olhou para Li Li.
— Foi o que ela disse. Vamos subir.
Li Li pegou o cajado, jogou a mochila sobre o ombro e seguiu Chen. O quarto deles era no segundo andar. A pequena janela inclinada deixava até o espetacular cenário da baía com um aspecto fuleiro.
Li Li se jogou em uma das camas precárias, sentindo as tábuas rangendo com seu peso. Um bom sono lhe faria bem.
Ela trouxe a mochila para perto de si para pegar uma roupa de dormir. O topo da mochila estava frouxo, como se algo estivesse faltando. Com o coração subitamente descompassado, Li Li abriu a mochila e puxou o manto que escondia a pérola. O pano ficou caído em suas mãos, vazio. Esperançosa, espalhou o conteúdo da mochila ao redor, sem querer acreditar no que ela sabia ser a verdade.
— Tio Chen! —gritou, furiosa. — A pérola! A pérola sumiu! Aquela mulher... aquela humana abusada... qual era o nome dela? Cátia Flávia, a Flâmula?
— Fátia Clávia, a Lâmina.
— Isso! Ela roubou a pérola!
Eles correram de volta para o bar. Uma sensação de náusea revolvia o estômago de Li Li. Ela e Chen procuraram por Fátia na multidão. Li Li sabia que as chances de Fátia ainda estar na taverna eram quase nulas, mas ela não queria desistir e continuou a circular pelo aposento. Um velho goblin gordo chamado Skindle a viu passando pela terceira vez enquanto contava moedas no balcão.
— O que você está procurando, garota?
Chen falou antes que Li Li pudesse responder.
— Olá. Você nos viu conversando com uma moça agora há pouco? Morena, perto de trinta anos, se chama Fátia Clávia, a Lâmina. Nós a estamos procurando.
Skindle apertou o lóbulo de sua enorme orelha, e Chen largou duas moedas no balcão. O taberneiro sorriu e guardou o dinheiro.
— Fátia está com os Saqueadores Aguanegra, trabalhando para o Cartel Bondebico. Ela é capitã de um navio, a Noiva de Neptulon. — Vendo a expressão no rosto de Li Li, Skindle continuou. — Não vá lá procurando encrenca. Ela é a melhor lutadora com facas de Angra do Butim. Ninguém em sã consciência irrita ela. Ninguém.
— Obrigado pelo conselho. — Chen jogou outra moeda para Skindle.
— Ei, sem problema. — Skindle aproximou a moeda da têmpora. — O dinheiro fala, se você souber ouvir.
— Vamos —murmurou Chen para Li Li, e ambos saíram da taverna.
* * *
Eles seguiram direto para as docas. Não foi difícil encontrar a Noiva de Neptulon, e logo Li Li e Chen se aproximavam de uma figura familiar, que comandava o embarque de carga no convés do navio. Os dois pandarens subiram a bordo para falar com Fátia.
— Ora ora, o que temos aqui? — Fátia deu um sorriso de satisfação e encarou a dupla com as mãos nos quadris. Seu comportamento agora era bastante diferente da afabilidade desarmante de antes.
— Acho que você sabe por que eu vim — disse Chen.
— Ladra, pilantra! —rosnou Li Li. — Você roubou nossa pérola!
— Não precisa insultar —respondeu Fátia, sacudindo o dedo indicador. — Você tem razão, eu a peguei. Você devia ser mais cuidadosa ao discutir artefatos mágicos em público, especialmente por aqui. — Eu sei que não foi muito legal da minha parte, mas tenho contas a pagar e o Cartel Bondebico não é lá muito paciente, percebe? Mas eu tenho espírito esportivo, e gostei de vocês dois no minuto em que os vi, então vou fazer o seguinte. Sabem este navio aqui? — Fátia fez um gesto abarcando os arredores. — Bom, a pérola está em algum lugar dele. Se vocês a acharem, ela é sua. — A mulher sorriu mais ainda. — Mas já vou avisando... minha tripulação é meio violenta, e eles não gostam de estranhos.
De repente perecia que Li Li e Chen estavam cercados pelos sorrisos perigosos de homens e mulheres que há até alguns segundos pareciam apenas estar trabalhando inocentemente. Num instante, armas surgiram em suas mãos feito garras. Chen sorriu e Li Li ergueu o cajado.
— Vocês são muito corajosos ou muito burros — comentou Fátia Clávia.
— Vocês nunca enfrentaram pandarens antes, não é? — desafiou Li Li.
Fátia desembainhou a adaga, grande feito seu braço.
— Duvido que vocês sejam muito diferentes do resto.
Li Li voou em Fátia, e Chen saltou para conter o resto da tripulação. Fátia aparou habilmente com a adaga o golpe de Li Li, e depois tentou cravar a lâmina na barriga da pandarena. Li Li se defendeu da estocada com um chute no pulso de Fátia. A adaga saiu girando pelo ar. Li Li viu os olhos da adversária se arregalando de surpresa. Agora a capitã sabia contra quem estava lutando.
Fátia pulou para o convés, dando cambalhotas em direção à lâmina perdida. Li Li a seguiu, jogando um pouco de pó encantado em um pirata que tinha pulado do navio vizinho. O pó se transformou em um pequeno bando de pássaros furiosos que começaram a bicar os olhos do pirata, que xingou e tropeçou, prendendo o ombro no cordame.
O cajado de Chen girava ao redor dele em alta velocidade, acertando os marinheiros mais descuidados e arremessando-os longe. Um orc fortão levou um chute no peito e perdeu o equilíbrio, caindo por sobre a amurada no convés lá embaixo. Chen teve que rir. Ele já passara por coisa pior.
Em algum lugar, um sino começou a tocar. Li Li esperou sinceramente que não fosse um pedido de reforços.
Bucaneiros! — um dos marinheiros gritou. — Bucaneiros da Vela Sangrenta! Estamos sendo atacados!
— Vocês já estavam sendo atacados! —gritou Li Li, e bateu com o cajado no peito de outro pirata.
Apesar dessa afirmativa, a tripulação imediatamente deixou Chen e Li Li de lado e correu para assumir posições de combate no navio. Li Li se virou e espichou o pescoço para ver o que estava acontecendo. Saindo de todos os cantos e esconderijos ao redor das docas, piratas armados usando camisas vermelhas emboscavam os bordoeiros goblins de Angra do Butim e corriam para o navio dos Saqueadores.
— Cortem as cordas! — A voz de Fátia soou mais alto que todo o resto. — Tirem-nos daqui o mais rápido possível! O resto de vocês, defendam o navio! A carga tem que ser protegida!
Um Bucaneiro da Vela Sangrenta pulou por sobre a amurada da Noiva de Neptulon bem diante de Li Li, brandindo a espada. Ela plantou um chute em suas costelas e o pirata caiu no convés, estatelado e com as pernas pro ar. Ao redor de Li Li, os Saqueadores sob o comando de Fátia estavam cortando as cordas e fazendo o que podiam para rechaçar os piratas. Os bordoeiros no cais tentavam deter os Bucaneiros, mas eles também tinham sido surpreendidos. Chen se aproximou de Li Li.
— Melhor partirmos enquanto podemos, Li Li.
— Não vou sem a pérola! —rosnou a pandarena. — Ela está no navio! Temos que encontrá-la!
O navio estremeceu sob eles. A tripulação tinha soltado as amarras e lutava para empurrar o grande cargueiro para a baía. Remos se estenderam dos lados do navio e Li Li percebeu que devia haver bem mais da tripulação sob o convés do que ela imaginara. Aos trancos e barrancos a Noiva de Neptulon começou a se afastar das docas de Angra do Butim.
— Vai, vai! —gritou Fátia. Ela ainda lutava com um dos Bucaneiros Vela sangrenta, aparando a espada dele com a adaga. Depois de um momento de luta ela conseguiu chutá-lo por sobre a amurada, e ele caiu na água. Ela correu para o timão e assumiu seu posto de comando. Os outros membros da tripulação desenrolavam as velas, preparando-se para fugir rapidamente do porto.
O vento ficou mais forte quando deixaram o abrigo da baía, e a longa península do Cabo do Espinhaço apareceu. Os remos desapareceram sob o convés; as velas se enfunaram e começaram a empurrar o navio com mais velocidade. Li Li não sabia se ficava aliviada ou nervosa. Por um lado, ela e Chen haviam aguentado uma escaramuça entre duas facções piratas rivais. Mas agora ela e Chen estavam presos no navio de Fátia, sem ter para onde ir. Angra do Butim sumia rapidamente atrás deles, e Li Li se perguntou quanto tempo teriam até que Fátia ordenasse à sua tripulação que os atacasse, agora que o perigo passara.
Fátia gritou uma coisa tão vulgar que até Li Li enrubesceu.
Flutuando nas águas fora de Angra do Butim — fora do alcance dos canhões, claramente à espera de Fátia —, três navios se postavam, suas velas pintadas de vermelho e preto, as cores dos Bucaneiros Vela Sangrenta. Fátia blasfemou outra vez e outros membros da tripulação fizeram o mesmo. Chen mudou o peso de um pé para o outro, inquieto. A Noiva de Neptulon tinha navegado para uma armadilha.
— Preparem os canhões! —gritou Fátia. — Todos aos postos de defesa! Essa luta não vai ser nada fácil!
— Ela não está brincando. —disse Chen, sombriamente.
Assim que eles chegaram perto o suficiente, os Bucaneiros atiraram. A maior parte dos tiros acertou a água, mas alguns acertaram a Noiva. O convés balançou com o impacto, mandando lascas enormes para o alto. Li Li e Chen se jogaram no chão, cobrindo a cabeça com os braços.
— É de matar — reclamou Li Li — vê-los atacando e não poder revidar.
— Batalhas no mar são terríveis — concordou Chen
Fátia e a tripulação conseguiram finalmente devolver a salva de tiros de canhão, e até acertaram algumas balas, mas seus inimigos estavam vindo rapidamente. Quando a tripulação da Noiva conseguisse recarregar os canhões, o navio já estaria repleto de Bucaneiros Vela Sangrenta.
— Às armas! — berrou Fátia, enquanto os navios inimigos se aproximavam cada vez mais da Noiva. — Vamos dar uma tunda que eles não vão esquecer tão cedo!
Os navios Vela Sangrenta abalroaram violentamente a Noiva de Neptulon ao passar pelo navio, e os piratas, pendurados dos cordames, sacudiam todo tipo de armas de ponta. A tripulação da Noiva lutou ferozmente, mas estava em franca desvantagem numérica.
Fátia lutava contra dois inimigos ao mesmo tempo: um goblin zangado sem um pedaço da orelha e uma elfa noturna alta e esguia portando uma adaga quase tão grande quanto a de Fátia. Eles a empurraram pelo convés até ela ficar de costas para Li Li, que rapidamente saiu de lado e deu uma rasteira com o cajado na elfa noturna, que caiu de cara no chão, com o nariz sangrando.
— Aposto que você se arrependeu de ter roubado minha pérola — provocou Li Li.
— Nem um pouco —respondeu Fátia friamente, eviscerando um gnomo Vela Sangrenta que cometera o erro de atacá-la. — Se você não tivesse vindo me procurar, eu teria duas pessoas a menos lutando ao meu lado.
Li Li quis replicar, mas os Bucaneiros estavam cada vez mais perto, e ela teve que se concentrar na batalha. A pandinha chutou e se esquivou, usando o cajado para derrubar e incapacitar os inimigos. Também jogou pó encantado por todo lado, e enxames de mosquitos, abelhas e bandos de pássaros distraíram e atormentaram os piratas, mas a ofensiva dos Bucaneiros não parava. Havia tantos deles, e sempre havia alguém para tomar o lugar dos que tinham tombado.
Lentamente, Li Li percebeu que estava perdendo terreno. Ela e Chen lutaram ombro a ombro, combatendo juntos mesmo sabendo que seriam vencidos. Toda a tripulação da Noiva estava amontoada ao lado de Fátia, Li Li e Chen no centro do convés. Eles apontavam as armas para diante, suando ofegantes, sangue pingando das feridas e cercados por todos os lados. Li Li rilhou os dentes. A luta de verdade ia começar agora.
Uma batida ritmada e firme ecoou nas tábuas de madeira do convés, interrompendo o silêncio pré-carnificina. Um chapéu de capitão apareceu por sobre os Bucaneiros Vela Sangrenta; seu dono era uma cabeça mais alta que todos ao seu redor. Ele veio empurrando até chegar à frente da tripulação, e Li Li deu uma boa olhada nele. Era um draenei enorme, com cascos fendidos grandes feito pratos. Suas extensões faciais se espalhavam sobre seu casaco vermelho como os tentáculos de um polvo azul gosmento. Um tapa-olho cobria seu olho direito, e na mão esquerda ele segurava a maior espada que Li Li já vira.
— Seus diários falavam dos draeneis como um povo pacífico e espiritual! — Li Li sussurrou para Chen.
— Ninguém me avisou desse sujeito — Chen sussurrou de volta.
— Ora, ora. — O sotaque peculiar do draenei vibrou no ar. — Eu sabia que um dos Saqueadores cairia na minha rede. Que sorte a minha que a famosa Fátia Clávia Fiarruna — ora, não faça essa cara, esse é o seu nome, não é? Que sorte a minha que foi você.
— Esse nome me parece familiar —murmurou Chen. — Onde eu o ouvi antes?
— O barão Rezingada a considera muito especial, Fátia, por ser uma duelista famosa —continuou o capitão. — Embora eu saiba que você está com problemas de caixa no momento. Eu posso ajudar você com isso.
— Eu prefiro ser estripada pelo cartel por causa de minhas dívidas do que me juntar a você —rosnou Fátia. — Aliás, quem diabos é você? Eu conheço todos os Vela Sangrenta daqui até Vila Catraca.
O capitão draenei tirou o chapéu da cabeça com um floreio dramático.
— Eu sou o capitão Koslov, e como você percebeu, eu sou novo na cadeia de comando. E a julgar pelo meu sucesso aqui hoje, estou me desincumbindo de minhas funções bem melhor que meus antecessores.
Um clarão cegante de luz azul crepitou na distância em Angra do Butim. O capitão Koslov olhou para trás, encarando a fonte de luz, mas nada mais aconteceu. Ele limpou o pigarro e se voltou para Fátia outra vez.
— Você e todo mundo neste navio tem duas opções —continuou Koslov. — Rendam-se ou morram. Não é simples?
— Você anda não venceu —retorquiu Fátia, ficando em posição de luta e brandindo a adaga.
— Eu vejo que você escolheu morrer —respondeu Koslov, sorrindo. Ele ergueu o braço para dar o sinal de ataque.
Sons parecidos com tiros ecoaram pelo navio, estalando e espocando no ar, e todos correram procurando abrigo. A Noiva do Neptulon começou a sacudir e seu casco começou a se erguer da água. Li Li perdeu o equilíbrio e escorregou desajeitadamente pelo convés enquanto o navio se inclinava, tropeçando em um bucaneiro desacordado. Ela bateu na amurada e se segurou, erguendo-se novamente enquanto o navio se estabilizava aos poucos.
Um longo trecho de mar onde estavam a Noiva de Neptulon e os três navios dos Bucaneiros Vela Sangrenta se transformara em gelo.
Li Li piscou. Ela podia ver a costa da Selva do Espinhaço a leste dali. Era uma floresta coberta de palmeiras e vegetação abundante. Estas eram águas naturais.
O que está acontecendo aqui? —gritou o capitão Koslov.
— É o que eu queria saber —murmurou Li Li para si mesma.
— O que está acontecendo é que você está prestes a se render — ribombou a voz de um homem.
Todos olharam ao redor, intrigados.
Correndo agilmente sobre o gelo, quatro indivíduos em vestes púrpuras se aproximavam dos navios. Liderados por um homem de meia-idade com cabelo ruivo-acastanhado e pele pálida, eles subiram com facilidade pela amurada da Noiva de Neptulon e se postaram no convés.
— Quem são vocês? —perguntou Koslov, furioso.
Pai? — Se o tom de voz pudesse alterar a realidade, a descrença na voz de Fátia teria feito os recém-chegados serem varridos da existência.
O mago que se postava mais à frente deu o mais discreto sorriso.
— A-há, você deve ser Ansirem Fiarruna —zombou o capitão Koslov. — Uma reunião familiar, que tocante. Lamento dizer que vocês irão morrer juntos. Matem-nos!
— Ah, duvido muito! —desdenhou Ansirem.
Os Bucaneiros da Vela Sangrenta atacaram.
Dizer que foi uma batalha seria um exagero; a palavra que ocorreu a Li Li foi "lavada". Os quatro magos eram intocáveis. Com leves gestos eles soltavam raios de energia arcana tão pura que os pelos de Li Li ficaram eriçados.
Os Bucaneiros não conseguiram encostar um dedo nos magos poderosos. Os piratas foram arremessados contra o convés e os mastros e foram atirados por sobre a amurada para patinar no gelo lá embaixo. Os mais sensatos correram, escorregando e caindo até chegar aos seus navios para se esconder sob o convés e esperar a confusão passar. Ao redor da Noiva de Neptulon o céu parecia uma demonstração espetacular de fogos de artifício, clarões coloridos de luz explodindo e chovendo em qualquer um que ousasse atacar Ansirem ou seus companheiros.
Li Li se encostou em um caixote, contente em ficar apenas assistindo ao show. Aquilo sim era magia!
O capitão Koslov sabia o que fazia, pois não ficou por ali muito tempo. Enquanto os magos demonstravam seu formidável poder sobre as forças arcanas, ele pulou do navio e correu pelo gelo, furioso por ter perdido.
Quando o último Bucaneiro retornou ao próprio navio, os magos ergueram as mãos e o gelo que aprisionava os navios derreteu. Li Li viu as tripulações correndo pelo convés e içando as velas a toda velocidade de forma a deixar a Noiva de Neptulon para trás o mais rápido possível. Enquanto eles fugiam, um silêncio curioso baixou na Noiva de Neptulon; os sobreviventes sacudiam a cabeça e aos poucos iam recuperando a compostura.
Fátia Clávia Fiarruna encarou o pai e os magos que o acompanhavam: outra humana, uma gnomida de aparência jovial e um elfo alto.
— Eu... ah... — começou Fátia. Ela suspirou e continuou. — Obrigada. Ahm. Por salvar nossas vidas.
— Você não precisa me agradecer — respondeu Ansirem. — Eu sei que você não gosta de falar comigo, mas a coisa parecia feia dessa vez e eu não poderia apenas ficar parado sem fazer nada.
— Como você soube? — indagou Fátia. — Você nem mora aqui.
Ao ouvir isso, Ansirem deu um sorriso astuto.
— Pelo que eu sei, o ouro é a língua universal de angra do Butim. Eu consegui alguns "amigos" que me deixam a par das notícias. Eu ouvi por eles que alguém estava preparando uma armadilha para você, mas quando eu pude me certificar disso, temi já ser tarde demais.
As sobrancelhas de Fátia Clávia se ergueram quando ela compreendeu. Ela disse:
— Aaah, entendi.
— Bem que eu achei seu nome familiar —interrompeu Chen, se aproximando de Fátia Clávia e do mago. — Eu sabia que já tinha ouvido falar de um Fiarruna. — O panda mirou Ansirem de cima a baixo. — Você é um arquimago do Kirin Tor, não é?
Ansirem concordou com a cabeça:
— De fato. — O mago se inclinou na direção de Chen. — Eu já li sobre sua raça, mas jamais tinha visto um pandaren antes. Você faz parte da tripulação de minha filha?
Chen sorriu francamente, exibindo os dentes.
— Não, mas minha sobrinha e eu fomos vítimas da pirataria dela.
Fátia engoliu em seco, e a expressão no seu rosto era uma estranha combinação de culpa flagrante e raiva. Ansirem olhou para ela com rispidez.
— Fátia...
— Ah, por Neptulon! — gritou Fátia, erguendo as mãos. — Isso não pode estar acontecendo. Papai, eu sou uma pirata! Às vezes eu roubo coisas! Faz parte do trabalho! E não ouse olhar para mim desse jeito, como se o senhor sempre fosse perfeitamente ético em tudo o que faz!
Ansirem abriu a boca para protestar, e então a fechou de novo. A humana que o acompanhava suprimiu uma gargalhada.
— É, ela pegou você, Ansirem —disse a humana.
Ansirem suspirou exageradamente.
— Você sempre vai me lembrar disso, não é, Modera?
— Pode apostar!
— Então, se me dão licença —replicou Ansirem —, vou supor que, desta vez, o seu roubo tem algo a ver com sua dívida para com o Cartel Bondebico, por você ter se recusado a perder uma luta.
— Ei, como é que o senhor... — falou Fátia, mas logo se deteve. — Eu não vou nem perguntar. É. É isso mesmo.
— Foi o que eu pensei. — Ansirem enfiou a mão em uma das mangas do robe e tirou de lá uma joia grande e brilhante quase do tamanho de um punho. — Esta é uma gema mágica. Espero que seja o suficiente para pagar sua dívida.
Os olhos de Fátia Clávia se arregalaram de cobiça. Ela estendeu a mão aberta.
— Oh, com certeza. Gemas mágicas são muito procuradas. O que ela faz?
— Ela parece ajudar o feiticeiro no lançamento de feitiços.
Fátia estreitou os olhos e disse:
— "Parece"?
— O mago que a criou era apenas um estudante na época, e ele não era o melhor da classe. Ele queria usá-la para ajudá-lo a passar nas provas. Ele levou bomba do mesmo jeito.
Os três companheiros de Ansirem caíram na gargalhada. Fátia Clávia suspeitou de alguma coisa.
— O senhor confiscou essa gema de algum estudante?
Não mesmo — intercedeu Modera, antes que Ansirem pudesse falar. — Mas sem dúvida os alunos dele devem ter tentado usar artefatos parecidos.
Ansirem revirou os olhos.
— Foi o senhor quem fez a gema, não foi, papai? —entendeu Fátia finalmente.
Ansirem limpou o pigarro, parecendo algo envergonhado.
— Sim. Bom, como eu disse, não adiantou muito. Trapaceiros nunca vencem etc. Eu tive que aprender magia do jeito difícil.
Fátia revirou os olhos da mesma maneira como o pai fizera há alguns instantes.
— Ela é encantada mesmo?
— Ah, é encantada, mas não muito. Funciona tipo metade das vezes apenas. — Ansirem fez uma pausa. — Sugiro que você não mencione isso quando for vendê-la.
Ainda rindo, Modera acrescentou:
— O fruto não cai longe da árvore.
Ansirem suspirou com exagero e colocou as mãos nos ombros da filha.
— Eu não vou fingir que não gostaria que você escolhesse um ofício mais... tradicional — confessou o mago, cujo rosto se abrandou — Mas não importa o que aconteça, você é minha filha, e eu jamais esquecerei isso.
— Ai que brega, pai — bufou Fátia. Mas ela estava sorrindo.
Ansirem se afastou e começou a lançar um feitiço. Com um último aceno para a filha, ele e os outros magos se teleportaram e sumiram.
* * *
De volta a Angra do Butim, Li Li e Chen se sentaram junto com Fátia em seus aposentos na Noiva de Neptulon. Fátia pegou uma caixa de um armário e a estendeu na direção de Li Li.
— Acho que isso é seu. Desculpe por... — Fátia se deteve e sacudiu a cabeça. — Praga, pareço o meu pai falando... — Ela suspirou e continuou: — Bom, eu não preciso dela pra pagar minha dívida, pode pegar de volta.
Li Li tossiu e Chen cruzou os braços.
— Tá, tá. Eu não devia ter pegado ela. Que coisa!
— Assim é melhor —disse Li Li, feliz, e pegou a caixa. Ela olhou dentro dela e ali estava a pérola brilhando serena, aninhada em veludo. Satisfeita, Li Li a botou de volta na mochila, onde era seu lugar.
Fátia parecia um tanto desconfortável.
— Como compensação por eu ter pegado sua pérola, e como agradecimento por nos ajudar a enfrentar os Bucaneiros Vela Sangrenta, eu tenho uma oferta pra vocês. Eu sei que vocês dois querem ir para o sul. Esse ataque bagunçou as coisas aqui em Angra do Butim, e vai demorar algum tempo até navios particulares voltarem a navegar. Eu tenho que ir até Geringontzan para me encontrar com um representante do cartel para pagar minha dívida, e se vocês quiserem, eu levo vocês de graça. Eu tenho alguns contatos lá e posso ajudar vocês a encontrar alguém para servir de guia por aquelas terras.
— Nada mau, nada mau! — admirou-se Li Li. — Acho que você realmente se sente mal por ter roubado a gente, hein?
— Não force a barra —respondeu Fátia, fria. — E então?
— Parece ótimo — concordou Li Li. — Eu nunca estive em Geringontzan. O que você acha, tio Chen?
— Já faz tempo que não ando em um navio pirata Já está na hora de fazer isso de novo.
— Os consertos devem terminar em um dia ou dois. — A pirata se levantou, oferecendo a mão a Li Li, que a aceitou.
— Vejo você lá — confirmou Li Li.
* * *
A viagem a Geringontzan se mostrou monótona. Li Li estava um tanto inquieta por estar de novo no mar, embora a vida a bordo do navio fosse bem diferente da vida em Shen-zin Su. Sua mente voltava à cena que ela testemunhara entre Ansirem Fiarruna e sua filha. Li Li examinava a cena continuamente, e seus pensamentos se recusavam a aquietar. Isso a distraiu até que a costa desolada e arenosa de Tanaris aparecesse na distância.
À medida que seu destino se aproximava, Li Li foi em direção ao timão do navio, onde Fátia amarrara a roda do timão, mantendo o curso firme para Geringontzan.
— Devemos chegar ao entardecer — disse Fátia, disse Li Li se aproximava.
Li Li concordou com a cabeça e disse:
— Ei —Ela hesitou e então continuou. — Eu quero perguntar uma coisa.
Fátia olhou para ela com curiosidade.
— O quê?
Li Li botou a mochila no chão e tirou a pérola de dentro dela.
— Segure isto por um instante e me diga o que você vê.
Fátia parecia cética, mas concordou e pegou a pérola, segurando-a com ambas as mãos como Li Li fizera na Biblioteca-mor em Shen-zin Su. Os olhos da pirata se desfocaram, e ela permaneceu parada no convés balouçante do navio, encarando a superfície da pérola. Depois de um minuto ou dois, ela piscou e se sacudiu. Olhou por cima da cabeça de Li Li, encarando a distância com uma expressão pensativa no rosto.
— O que você viu? —perguntou Li Li, pegando a pérola de Fátia e recolocando-a na mochila.
Fátia encarou Li Li.
— Então você sabia que ela prevê o futuro?
Li Li deu de ombros e disse:
— Ela concede visões. Não sei se são verdadeiras ou não.
— Eu me vi no timão de um navio. — Não muito diferente deste aqui, mas de alguma forma eu sabia que ele era meu. Legitimamente meu. — A mulher ficou em silêncio, olhando para Li Li. — Não era dos Saqueadores Aguanegra nem do Cartel Bondebico. — Ficou quieta por mais um momento. — Meu próprio navio. — E não disse mais nada, perdida em pensamentos. Li Li pegou a mochila e a colocou nas costas. Ao descer as escadas, olhou para Fátia. A jovem sorria serenamente, encarando o mar azul.
* * *
Aquela noite, seguros em Geringontzan, Li Li e Chen deitaram em suas redes na estalagem. Li Li se espantava com o tempo que estava levando para ela se acostumar com o chão estável sob os pés. Suas pernas pareciam borracha, e tudo estava tão parado!
— Você está tão quieta, Li Li — observou Chen, olhando para a sobrinha. — O que está havendo?
Li Li não respondeu imediatamente. Ficou deitada na rede e cruzou os dedos atrás da cabeça.
— Tio Chen, quando aqueles magos nos salvaram dos Bucaneiros da Vela Sangrenta, não pareceu meio estranho?
— O quê? Que quatro membros poderosos do Kirin Tor se teleportaram para Angra do Butim, pularam no navio e destruíram nossos inimigos? Nem um pouco. Tenho certeza de que isso é perfeitamente normal.
— Muito engraçado — disse Li Li. Ela praticamente podia ouvir o sorriso de Chen. — Eu quis dizer na hora em que o pai da Fátia disse que ela sempre seria filha dele e que ele jamais esqueceria isso. Não importava o que acontecesse.
— O que tem isso, Li Li? — perguntou Chen, em voz baixa.
— O senhor acha... — A garganta de Li Li se fechou de repente. — O senhor acha que foi de verdade? — Um novo pensamento apareceu em sua mente antes que ela pudesse evitar. Será que meu pai pensa o mesmo de mim? Ou será que ele pensa que eu não tenho salvação? — Ela se sentou repentinamente e perdeu o equilíbrio, quase caindo da rede.
Chen a segurou e, ajoelhando-se, segurou seus braços para o alto. Li Li desviou o olhar, sentindo a picada das lágrimas.
— É só um cisco —murmurou.
— Li Li, olhe para mim. — A pandarena levantou a cabeça. — Eu não tenho dúvida alguma.
Lágrimas rolaram pelo rosto de Li Li e Chen a abraçou forte, deixando marcas úmidas nas bochechas dela.
— Obrigada, tio Chen —sussurrou.
— Seu pai ama você mais do que qualquer coisa no mundo. Aposto minha vida nisso. 25
Li Li acenou concordando e enterrou o rosto no ombro do tio, enquanto a noite caía suavemente em Geringontzan e o deserto de Tanaris.

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