quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Gelbin Mekkatorque: Interrompido



Gelbin Mekkatorque:

Interrompido

Cameron Dayton


– Nós fizemos uma varredura dos andares superiores no setor 17, senhor. Tudo indica que o lugar ficou intocado desde nossa, ahm, partida. Só está tudo fedendo a trogg...

– Ah, sim... aquela mistura adorável de mofo, sarna e macaco azedo. Acaba com o apetite de qualquer um, sei bem disso.


O capitão Zeca Piscamola fez uma careta, empalidecendo ao ouvir seu comandante. O fedor obviamente estava afetando o moral.

– E sua equipe está usando meus Rodinhos Limpa-Narina de Alta Velocidade?

– Sim, senhor. O fedor... bom... dá até pra sentir o gosto, senhor. Não importa o quão bem rodadas estejam nossas narinas. – Piscamola inclinou a cabeça para trás, exibindo um belo par de narinas gnômicas muito bem rodadas. – Dois membros do meu esquadrão pediram transferência para a Patrulha Troll em Sidermar, e meu médico quer saber se oferecemos licença-catinga.

O Grão-faz-tudo Gelbin Mekkatorque suspirou, empurrou os óculos para a testa e passou o indicador e o polegar dos lados de seu nariz proeminente. Os novos óculos doíam, e ajustá-los seria a primeira de milhares de tarefas que ele planejava realizar quando a missão terminasse.

Ele não dormira na noite anterior, e a pele onde as lentes se fixavam estava esfolada e dolorida.

A retomada de Gnomeregan começava a parecer bem mais que uma mera ação militar.

O fedor, por exemplo. Um dos problemas de uma vasta cidade mecânica subterrânea – um dos centenas de problemas – era a ventilação. Em capacidade total, a rede de ventiladores, dutos e filtros necessitava de uma equipe de quinze técnicos trabalhando 24 horas por dia em turnos para manter Gnomeregan limpa e cheirando bem. O futum trogg acumulado de anos coalesceu em camadas de lodo pungente e impenetrável, mais difícil de remover que os próprios invasores.

– Não se preocupe, Capitão. Os geniozinhos da Divisão de Alquimia estão finalizando o protótipo do meu Canhão de Fragrância K-Tingalonj, que nos ajudará a limpar esse fedor das paredes.

Por que você e seus homens não tiram o resto do dia de folga e vão secar umas tulipas na Cervaforte?

O outro gnomo sorriu, bateu continência e assentiu com a cabeça.

Mekkatorque voltou a se concentrar nas plantas espalhadas pela mesa às suas costas e recolocou os óculos com um estremecimento. Algumas seções de Gnomeregan ainda eram disputadas ferrenhamente, enquanto outras tinham caído em suas mãos com surpreendente facilidade. É claro que a ajuda da Aliança havia sido instrumental para isso, mas Gelbin ainda não se convencia. O Salão das Engrenagens parecia quase ter sido... abandonado. Não era do feitio de seu velho inimigo ceder território tão facilmente.

Gelbin foi interrompido por em seus pensamentos por um pigarro. Ele se voltou e viu que o capitão ainda estava ali, torcendo as mãos.

– Perdoe-me, há mais alguma coisa, capitão?

– Bom, sim, senhor Grão-faz-tudo. Se eu posso perguntar...

– Claro que pode. Pode falar.

– Muito bem, senhor. Acontece que o pessoal e eu estávamos imaginando por que fomos mandados para fazer reconhecimento daquele setor. Ele não fica perto das linhas de frente, parece não ter recursos, valor estratégico nenhum. Parece que é só a biblioteca de um velhote biruta mesmo. Senhor.

– “A biblioteca de um velho biruta”...

O capitão Piscamola deu um sorriso cúmplice. – Hah, essa foi a impressão que eu tive, senhor: pilhas de livros velhos, papel amassado, e algo que parecia uma toca de coelho feita de latinhas de torta – – Ah, de fato, creio que a maquete do Metrô Correfundo parece mesmo com isso...

– A... como, senhor?

– Aqueles eram meus aposentos, capitão.

– Seus... aposentos? Ah. Ah. Mil perdões, senhor Grão-faz-tudo. eu não quis – – Não é bem o que você esperava para alguém em minha posição elevada, não é? – Gelbin riu e inclinou-se para diante, dando um tapinha no ombro do capitão. – Não se preocupe com isso, Piscamola. Eu posso ter tido um lugar de prestígio no Paço dos Faz-tudo, mas o meu trabalho de verdade, minhas especulações e invenções, tudo acontecia naquela biblioteca de velho biruta.

Bem, quando sair, por favor avise ao sargento Cobrefuso que estou pronto para fazer o levantamento da área. Obrigado por seu excelente trabalho, capitão.

* * * * *

Gelbin esperou até que sua equipe de segurança dobrasse a esquina e deixou o sorriso morrer em seu rosto. Seus ombros caíram com um sopro profundo que era tanto um suspiro quanto um impropério.
Era difícil. Difícil voltar ao seu estúdio. Seu cantinho. Este era o lugar que ele via sempre que ouvia a palavra lar, mesmo depois de tantos anos fora. Anos vivendo da caridade e tolerância de aliados que, apesar de seus nobres sentimentos, ainda olhavam para ele com pena.





A pena... essa era a pior parte. Para uma raça ambiciosa cujas vidas eram justificadas pelo hábil comando das leis científicas do Universo, a pena era algo intolerável. Era insultuoso ser digno de pena. Gelbin irritava-se com a solidariedade, e ele sabia que seu povo também. Como líder, ele descobrira ser sábio prestar atenção às próprias emoções, pois elas não raro refletiam em alguma medida as inclinações do restante dos gnomos.

Mas não era só isso. Pelo menos não para ele. Ter que manter o sorriso, a jovialidade corajosa e a astúcia gnômica diante de seu povo. Ter que que projetar confiança contínua e constante no aperto do velho Beco da Gambiarra, quando tudo o que ele queria era prostrar-se no chão e...

e...

Trêmulo, Gelbin suspirou, cambaleando para o lado e encostando o ombro contra a parede de metal com um baque surdo. Tantos mortos. Tantos!

Reunindo forças, ele apertou os punhos e expirou. Fechando os olhos, começou a contar números primos até que os sentimentos recuaram mais uma vez até a periferia da sua mente.

Ah, os confiáveis e seguros números primos. Era possível confiar neles sempre. Sempre. Gelbin sabia que um dia ele teria que voltar a encarar esses sentimentos, mas agora não havia tempo.

Os gnomos precisavam do Grão-faz-tudo em sua melhor forma para a retomada do seu lar, e dar sinais de vergonha e remorso só pareceria fraqueza. Um povo nômade à beira da extinção não pode se dar ao luxo de ter um líder dando sinais de fraqueza.

Não outra vez.

Sacudindo a cabeça para afastar os pensamentos, Gelbin avançou e começou a avaliar a condição de sua antiga casa. Ao contrário de seus pares na Aliança, o Grão-faz-tudo não fazia questão de condições de vida luxuosas, preferindo uma residência prática. De que serve um trono quando pensamos bem melhor caminhando? A gasta rede de salões no setor 17 era a representação física dos processos mentais de Gelbin: biblioteca conectada à sala de projetos, por sua vez conectada à forja, conectada à área de montagem. Pesquisa, imaginação, criação e engenharia. Ali, vastos contingentes tinham sido reunidos para, com a ajuda do ferro, marchar para a batalha. Literalmente.

Fora naqueles salões que Gelbin projetara o primeiro mecanostruz, que permitira a seu povo pequenino alcançar a velocidade dos corcéis humanos. Aquele invento fizera sua fama quando jovem, e o colocara no caminho da liderança. O micro-ajustador giromático, o robô de reparos, o Metrô Correfundo, até mesmo o protótipo da máquina de cerco enânica – tudo isso começara como esboços e sonhos em seu estúdio. Tudo criado a partir do caldo primordial da imaginação de Gelbin, para o avanço da raça gnômica.

– O que me leva a perguntar – ele sussurrou - se mil invenções brilhantes podem compensar um engano terrível...

As trevas acolheram suas palavras e as revestiram de dor. Esperando por uma resposta que ele já conhecia, o Grão-faz-tudo notou algo que o fez sorrir. Ele estava falando sozinho. Ele não fazia aquilo desde... bom, desde a época em que vivia nestes túneis. Quem sabe o retorno da neurose não seria um bom sinal? Gelbin coçou sua barba bem aparada.

– Estou encontrando esperança em uma recrudescência psicótica. As coisas devem estar péssimas mesmo.

Movendo-se pela área de montagem, ele passou um dedo em uma bancada empoeirada e estalou a língua. Mesmo à luz bruxuleante – cujo funcionamento, ainda que precário, era outra prova da qualidade da engenharia gnômica – Gelbin soube que seu antes imaculado estúdio iria precisar de uma esfrega geral e irrestrita.

Ele olhou para o mostruário de troféus na parede oposta. O Grão-faz-tudo havia instalado o mostruário a pedido dos aprendizes, e somente porque ele de fato precisava de um lugar onde empilhar as condecorações inúteis. Como tudo o mais, estava sob uma camada de poeira.

A peça principal do mostruário era seu primeiro protótipo funcional de mecanostruz, esguio e altivo entre várias medalhas e fitas. Gelbin sorriu, notando que mesmo os modelos mais avançados, recém-saídos de Altaforja, ainda retinham a mesma ginga de pássaro do original, bem como sua forma arredondada de chaleira. E ele ouvira relatórios de seus agentes em Nortúndria dizendo que os enigmáticos gnomecânicos haviam adotado sua invenção para propósitos misteriosos. O que poderia ser mais lisonjeiro do que ter uma raça de máquinas usando a sua máquina para locomoção?

E embora o mecanostruz fosse a primeira (e provavelmente a mais popular) de suas invenções, o fluxo contínuo de criações práticas, poderosas e únicas que jorrara destes salões havia fortalecido seu povo e provado que os gnomos são um reforço vital para a Aliança de anões, humanos e elfos. Fora ali que Gelbin Mekkatorque passara de mero inventor a Grão-faz-tudo dos gnomos. Fora ali que Gelbin Mekkatorque tivera suas ideias mais brilhantes, que criara suas melhores invenções e recebera as maiores comendas de um povo que celebrava a criatividade e a habilidade de manufatura acima de tudo.





E fora ali que Gelbin Mekkatorque havia aceitado tolamente os conselhos de alguém que ele considerara um amigo. Fora ali que Gelbin Mekkatorque dera a ordem que matara quase todo o seu povo, deixando o sobreviventes sem lar e arremessando-os na mendicância e na ignomínia.

Ele bateu com o punho na parede, levantando uma nuvem de poeira, e as luzes piscaram no alto como a representação visual de sua frustração. O Grão-faz-tudo tremeu, abrindo e fechando as mãos em punho. E então... ele decidiu caminhar para espairecer. Ele saiu da área de montagem e foi até a forja, e depois seguiu até a sala de projetos. Ali ele parou. Gelbin percebeu de súbito, com alguma surpresa, que somente agora, anos após a traição, é que ele dera um primeiro sinal de raiva. E essa reação raivosa, tão pouco característica dele, lhe fez sentir bem.

Talvez fosse a convivência com os anões. Ou talvez voltar para casa, finalmente longe do olhar de benfeitores condoídos e cidadãos preocupados, fosse como um fechar de cortinas, e ele já não precisasse se comportar feito um Grão-faz-tudo. Aqui ele podia ser Gelbin, finalmente.

E Gelbin podia se entristecer; podia se sentir traído; Gelbin podia ficar furioso e penalizado com toda a terrível injustiça dessa história.

Ele grunhiu e golpeou a parede novamente, gostando de sentir a dor nos dedos e de ouvir o clangor que reverberou pelos salões de ferro ao redor. Pelo menos, conviver com os anões tornara seu povo mais forte, mais confortável em seus feitos de proeza física como nunca antes na história registrada dos gnomos. Os anões haviam dominado a arte grosseira do combate corpo a corpo em um mundo repleto de seres bem mais altos, enquanto os gnomos tinham sempre preferido escapar e evitar conflitos. Mas os anos de dificuldade e sobrevivência entre aliados rústicos havia dado aos gnomos um gosto pelo combate. Gelbin jamais vira tantos gnomos manuseando espadas, vestindo armaduras e se impondo diante da Gente Alta.

– Bem – ele murmurou –, isso de tentar se impor não fez muito bem aos nossos números.

A vibração causada pelo seu golpe violento na parede ainda ecoava pela sala, e o Grão-faz-tudo parou para pensar. Algo não estava certo.

Gelbin inclinou a cabeça e recuou um passo. O Setor 17 havia sido escavado nos confins sólidos a noroeste de Dun Morogh: uma área composta principalmente de granito e xisto. Os salões revestidos de ferro nesta ala de Gnomeregan não deveriam responder a impactos com tamanha ressonância. Será que sua memória o estava traindo?

Gelbin bateu os nós dos dedos contra a parede outra vez, de olhos fechados. E a vibração ecoou com o timbre parecido ao de um sino.



Sem tirar os olhos da parede, Gelbin recuou até o centro do salão. Sua velha cadeira de fabricação troll, um móvel de construção adoravelmente primitiva de osso e couro de ráptor, ainda estava no mesmo lugar. A cadeira era uma lembrança da primeira incursão da Aliança apoiada por gnomos em um acampamento da Horda durante a Segunda Guerra, e Gelbin ficara com o objeto de aparência agressiva para se lembrar de duas coisas importantes. Primeiro, que seus inimigos viviam em um mundo construído com a carne e os ossos de monstros. E segundo, que mesmo selvagens dentuços cobertos de limo apreciam um pouco de conforto às vezes.

Embora o Grão-faz-tudo raramente ficasse sentado enquanto trabalhava em suas invenções, ele fazia a cadeira de cama improvisada onde passava suas madrugadas de brainstorming. Seu perfil baixo e grande área de couro forrado, projetado para o traseiro substancialmente maior dos trolls, tornava-a perfeita para sonecas gnômicas. Ele se deixou cair na maciez da cadeira com um suspiro preocupado.

Teria havido alguma nova construção nesta área desde o êxodo? As suspeitas de Gelbin agora eram mais fortes. Ele vasculhou a sala de projetos, procurando sinais de sabotagem: fios soltos, painéis fora de lugar ou pegadas desconhecidas na poeira. Todo este setor fora varrido por sua equipe mais confiável, mas Mekkatorque aprendera a nunca confiar cegamente. Especialmente se Termaplugue estivesse metido na história.

Sicco Termaplugue. O nome ainda fazia seu estômago se torcer, uma tensão que não podia ser convencida a deixá-lo. Gelbin finalmente atinara com uma descrição para esta sensação estranha: era um sentimento ao qual ele estava severamente – assustadoramente – mal-acostumado. Era confusão. Nesta ocasião raríssima, o Grão-faz-tudo Gelbin Mekkatorque se encontrava muito, muito confuso.

Como isso podia ter acontecido?



















Um gnomo de Gnomeregan agindo contra sua ração era algo impossível, um erro, uma aberração inconcebível. Ao contrário dos anões, os gnomos não tinham um histórico de violência interna. O passado deles sempre fora livre de tiranos e facções violentas. de forma geral, gnomos simplesmente não combatiam outros gnomos. Em um mundo de leões, tigres, pelursos e Gente Alta, os gnomos tinham que confiar uns nos outros. Isso era evidente. Por isso gnomos não utilizavam a sucessão agnática, responsável por muito derramamento de sangue entre as outras raças de Azeroth, e tinham abandonado a monarquia há séculos. Os gnomos escolhiam seu líder por consenso geral, baseado em seus méritos. Mérito inteiramente mensurável em benefícios para os gnomos. Agir de forma danosa para com alguém da mesma raça, ambicionar o poder às custas do bem-estar do povo – um anão poderia fazer essas coisas, ou um orc. Os humanos podiam, sem dúvida. Mas como um gnomo poderia ser responsável pela quase completa extinção dos gnomos?

Sicco dissera ter testado os níveis de radiação do gás. Ele dissera ter evidência do efeito letal do gás nos troggs, e mostrara a Gelbin números forjados sobre densidade e peso volumétrico.

O gás deveria ter ficado nos acessos em quarentena e nas seções inferiores de Gnomeregan, envenenando os invasores quando estes emergissem das profundezas enquanto os gnomos esperavam, protegidos nos túneis superiores, longe dali. Na hora, aquilo lhes parecera a única solução para a invasão imprevista, e uma que não necessitaria da interferência da Aliança, então muito ocupada. Os gnomos ajudariam os gnomos. Termaplugue parecia confiante que seu truque funcionaria.

Mas se o gás teve algum efeito nos troggs, foi apenas o de deixá-los mais agressivos. E então o gás subiu até a cidade, atravessando os Filtros Domiciliares Limp-Ar. E matou todos os gnomos que esperavam em suas casas, sufocando-os sob odientas nuvens verdes atrás das portas que deveriam tê-los protegido, como o Grão-faz-tudo prometera. Gnomeregan morreu naquele dia.

Morreu porque Gelbin Mekkatorque confiou que um amigo gnomo sempre seria um amigo de verdade. Ou pelo menos, um gnomo de verdade.

Gelbin se recostou e fechou os olhos. O aperto em seu peito era quase doloroso, e pela milionésima vez ele se perguntou se deveria abdicar do título e deixar que outro fosse o Grão-faz-tudo. Alguém menos confuso. Alguém que não cometeria um erro tolo que custou a vida de tantos...





Dessa vez não seria possível conter o desespero, a densa onda de mágoa se insuflando do local onde por tanto tempo estivera contida. Gelbin respirou em haustos rápidos, contou números primos, apertou o braço da cadeira com força. Mas agora era tarde. A dor venceu suas defesas e irrompeu em seu peito num soluço rouco e engrolado.

E sozinho no pétreo e sombrio silêncio de seu estúdio abandonado, o Grão-faz-tudo Gelbin Mekkatorque finalmente chorou.

* * * * *

Depois que as lágrimas secaram, o tremor cessou e a quietude gélida retornou ao salão, Gelbin deu um suspiro sôfrego e se endireitou. Ele se sentia... vazio... de uma forma limpa, esvaziada.
Não era uma sensação exatamente agradável. Mas era do que ele precisava.

Era hora de voltar à superfície, ao seu povo. Ele já começava a se sentir egoísta, passando tanto tempo envolvido com seus próprios problemas. Apoiando-se no braço da cadeira, ele começou a se erguer.

E então parou.

Havia algo frio debaixo de sua mão. Gelbin abriu os olhos e olhou para baixo. Dobrados com cuidado sobre o braço da cadeira estavam seus óculos favoritos, as lentes simples com aro de mithril que ele ganhara de presente ao se formar na Faculdade Engrenória. Fortes, confiáveis e confortáveis. Estes óculos tinham emoldurado seus olhos por décadas – até a partida apressada dos gnomos, causada pela invasão dos troggs. Gelbin vinha se virando com um par novo, que ele forjara em Altaforja nas horas livres quando não estava indo do Beco da Gambiarra ao trono de Barbabronze e de volta. Seu pobre nariz muito sofrera desde então. Sorrindo, o grão-faz-tudo estendeu o braço para pegar o objeto há tanto esquecido.

– Agora posso voltar a ser eu mes –

Os óculos se soltaram da cadeira com um estalo, e Gelbin congelou no lugar. Uma memória fria assomou por trás de seus pensamentos: os óculos tinham sido presente de graduação de Sicco Termaplugue.

E Gelbin jamais teria deixado os óculos largados sobre a cadeira.

Tarde demais ele notou um arame enrolado no arco do nariz, que descia pelo lado da cadeira e sumia num buraco do chão, quase invisível. Veraprata, incrivelmente leve mas mais forte que o aço. Gelbin sentiu um puxão no fio – o tremor mecânico de uma mola se soltando – e olhou para o alto a tempo de ver uma porta pesada batendo e fechando a entrada. Um clangor metálico igual respondeu da saída atrás dele.

Uma nova construção no Setor 17? Aparentemente sim. Alguém havia deixado uma armadilha para o grão-faz-tudo, e Gelbin entrara nela direitinho. Quem mais sentaria em sua cadeira? Quem mais tocaria nos óculos do grão-faz-tudo? Engrenagens ocultas rangeram atrás de paredes ocas e Gelbin se perguntou se o Capitão Piscamola havia sido subornado, ou se a equipe não tinha mesmo notado a sabotagem.

Houve um som chiado de estática, e um alto-falantes foi ligado. Dele, saiu uma voz que assombrara os sonhos do grão-faz-tudo por anos.

– Sabe, meu caro Gelbin, eu me perguntava se essa isca não seria um tanto óbvia para você.

Quase não acreditei quando ouvi o alarme. Parece que sempre posso contar com essa sua charmosa ingenuidade para derrotar seu intelecto.

Gelbin se ergueu prontamente e enxugou os olhos. Por um momento ele teve o medo infantil de que Sicco o tivesse visto chorando, mas o grão-faz-tudo deixou o pensamento de lado. A sensação vazia de alguns instantes fora substituída por algo mais frio. Medo e vergonha ecoando sua confusão em harmonia dolorosa. Rilhando os dentes, Gelbin tateou o elo do cinto de onde a fiel Engrenálibur pendia. Nada. Na pressa de rever seu velho estúdio, ele viera completamente desarmado.

Isso era outra coisa que ele nunca fazia, nem mesmo andando por Altaforja. Estaria ele perdendo a lucidez? Confusão, esquecimentos, e agora isso.

De um jeito estranho, Termaplugue estava certo. O grão-faz-tudo suspeitara de uma armadilha nesta área, tão facilmente reconquistada. Mas... como Sicco podia desperdiçar tamanha quantidade de tempo e recursos apenas para matar um único gnomo, quando toda a Aliança batia à sua porta? Sim, muito confuso.

– Concentre-se, droga! – Gelbin sussurrou para si mesmo. Ele acabaria morto se não organizasse os pensamentos. O grão-faz-tudo jamais se sentira tão mal, mas ele não podia deixar seu antigo amigo desconfiar disso, se quisesse viver. Talvez uma disputa verbal pudesse distrair a mente de Sicco – famosa por sua pouca elasticidade – enquanto Gelbin procurava maneira de fugir. Ele limpou o pigarro.









– Acho que dei muito crédito a você como estrategista, Sicco. Não admira que minhas tropas estejam conseguindo tantos avanços contra seu exército entrincheirado, e que nos supera em número em três para um: você andou perdendo tempo com esses joguinhos bobos de vingança.

Varrendo a câmara com o olhar, Gelbin se esforçou para manter a concentração. Se Termaplugue decidisse ventilar o mesmo gás usado contra sua raça, não haveria escapatória.

Gelbin conhecia o salão bem o suficiente para entender isso. Apenas duas portas, ambas lacradas. Ele levantou a frente da túnica, protegendo o nariz, e procurou pelos sinais da névoa verde mortal. Talvez ele conseguisse prender a respiração por tempo suficiente para sair pelo duto preparado por seu inimigo para asfixiá-lo.

Sicco Termaplugue estava rindo.

– Joguinhos bobos de vingança? Gelbin, você faz alguma ideia do que a sua morte significará para os gnomos? Eles mantiveram você no comando apesar de tudo que eu fiz para desacreditar você. Os pequenos tolos amam o grão-faz-tudo. Sua morte irá destroçar os corações deles.

A resposta de Gelbin foi interrompida pelo clique de um interruptor sendo ligado. No silêncio mortal, pôde-se ouvir um ranger mecânico, o som de pesados cabos de ferro sendo estirados e engrenagens de mola girando. A parede à sua frente – a mesma que ele havia socado – começou a se erguer até o teto. Houve uma lufada de ar úmido e morno, e Gelbin compreendeu o modo pelo qual seria assassinado. Cheirava a mofo, sarna e macaco azedo.

O trogg emergiu das sombras com um rugido úmido. De compleição maciça, com braços musculosos que desciam até quase o chão, ele se movia com a ginga confiante de um predador que sabe que a presa está encurralada.

O grão-faz-tudo havia comandado destacamentos contra essas feras antes, mas jamais havia chegado tão perto de uma: sua equipe de segurança jamais permitiria isso (o mesmo time qu e ele, tolamente, ordenara que esperasse por ele longe daquele setor). O trogg tinha o dobro do tamanho de Gelbin, com um emaranhado de cicatrizes cortando seu peito empedrado. Saliências ósseas irregulares projetavam-se dos ombros e cotovelos da criatura, excrescências deformadas que atestavam sua origem rochosa. Gelbin ouvira rumores de que os troggs eram um ramo deformado da raça enânica. Embora ele jamais fosse dizer isso aos seus amáveis anfitriões, ele podia ver a similaridade na barba desgrenhada, na forma atarracada e nos feixes grossos de músculo que pareciam escavados em granito. Mas aí acabavam as semelhanças. O trogg tinha uma postura encurvada, simiesca, com o cenho pesado e os caninos protuberantes de um predador.

Gelbin se lembrou do seu treinamento de combate. Geralmente eram necessários quatro a cinco gnomos armados e com experiência em combate subterrâneo para derrubar um trogg.

Mekkatorque, um tático consumado, sabia que mesmo sem Engrenálibur e sua armadura a vapor ele ainda era duro na queda. O gnomo deu um passo para frente e esquadrinhou a sala. Se ele conseguisse chegar ao outro lado do estúdio rapidamente, talvez houvesse algum banquinho para usar como arma improvisada. Se ele conseguisse manter o trogg à distância, talvez ele pudesse escapar pela abertura de onde a criatura viera. Seria arriscado, mas era a melhor– Mais dois troggs cambalearam para a luz. O primeiro resmungou ordens ao demais, e todos foram em direção à presa, cercando-a com uma agilidade selvagem incongruente com seus corpanzis.

A parede fechou-se atrás deles com um clangor sinstro, e Gelbin vislumbrou a triste verdade: que morreria ali. Não havia saída da armadilha de Termaplugue. Sicco agora completava o serviço iniciado nos salões de Gnomeregan muitos anos atrás. A cidade pertenceria – finalmente, irrevogavelmente – ao monstro que fingira ser um gnomo. Gelbin se ajoelhou e fechou os olhos.

Acabou.

É o fim.

Ele estava cansado da piedade, dos lembretes diários de que ele só perdera seu reino por ser um gnomo. Ele estava cansado de toda a confusão. O som arrastado dos troggs estava mais perto, e Gelbin Mekkatorque sussurrou adeus para sua amada Gnomeregan. Para seu povo.

– Os pequenos tolos adoram o grão-faz-tudo.

– Depois de tudo o que houve, eles adoram o grão-faz-tudo.

Gelbin abriu os olhos e olhou para baixo. Ele viu que ainda segurava os óculos, viu o arame finíssimo de veraprata estendido pelo chão. Quase instintivamente, sua mente de engenheiro despertou, e plantas imaginárias riscaram o seu campo visual.

O arame conduzia até o que era obviamente um gatilho de mola ativado por peso, por sua vez unido a um eixo sobre o qual agiam os cabos de contrapeso que tinham erguido a parede sobre um par de algo que soava como dobradiças de ferro oxidado (Sicco sempre construíra porcamente). O resto não passava de engenharia simples, e Gelbin achou irônico que mesmo Sicco, o não-gnomo, confiasse em tecnologia gnômica para alcançar seus objetivos sinistros.

Uma tecnologia que Gelbin havia adaptado, inovado e dominado para proteção e salvação do seu povo.

Gelbin Mekkatorque era um gnomo em seus fracassos e em seus triunfos. Por isso o seu povo o amava. Por isso ele ainda era o grão-faz-tudo. E por isso ele ainda estava lutando pelos gnomos, mesmo depois de tanta vergonha, escuridão e confusão.

E de repente ele já não estava mais confuso.

Rolando para o lado, Gelbin desviou de um soco dado pelo primeiro trogg. O punho empedrado da criatura rachou o piso, arremessando estilhaços para o ar. No instante seguinte Gelbin já estava de pé, correndo para os fundos do estúdio. Um plano se formava em sua mente.

– Mas então, Sicco. Se minha morte é tão vantajosa assim, por que você esperou até agora?

Não teria sido mais fácil me matar antes, quando eu ainda confiava em você?

Era difícil falar e correr ao mesmo tempo, mas Gelbin sabia que tinha que manter Termaplugue distraído para que seu truque funcionasse.

Imaginando que sua presa estava correndo para algum local escondido, os dois troggs que o flanqueavam correram para a frente, para interceptá-lo. Gelbin havia antecipado isto, e ele aproveitou os poucos segundos de folga para enrolar o resto do arame de veraprata ao redor dos seus óculos.

O primeiro trogg estava quase em cima dele outra vez, e Gelbin se virou para correr diretamente na direção da fera ululante, que, surpreendida, arremessou-se na direção do vazio enquanto Gelbin se agachava, escorregava entre suas pernas e, após um ágil rolamento, já voltava a correr.

Rugindo, a fera se voltou e correu pesadamente atrás da presa. Os outros dois troggs, empolgados pela gritaria do irmão, começaram a uivar e passaram a se mover em círculo ao redor da cena. Gelbin sabia que eles não eram animais estúpidos. Queriam que o primeiro trogg o cansasse primeiro, e só então eles se aproximariam para obter uma refeição fácil. A voz de Sicco estalou no alto.

– O quê? Você ainda não morreu?

Gelbin sorriu. Seu oponente acabara de revelar que, embora pudesse ouvir o que se passava na câmara, ele não podia ver o que acontecia.

O trogg zangado era rápido – mais do que Gelbin imaginara – e o gnomo sentia seu bafo horrendo no cangote. Sua própria respiração estava ofegante, e Gelbin se concentrou na prancheta de projetos, alguns metros à frente.

Quase lá. Quase lá.



Com um ganido súbito, o trogg foi puxado violentamente para trás por alguma força invisível e desabou no assoalho. O arame de veraprata, atado aos fortes óculos de mithril, e que Gelbin enrolara ao redor da canela da fera chegara ao limite. Com a velocidade da corrida e o peso do trogg, o arame decepara o pé da criatura. Um rugido angustiado, parte gemido e parte grito, cortou o ar. O trogg levantou o toco sangrento de perna e gritou outra vez, batendo com o punho no chão. Mekkatorque deu uma piscadinha de desculpas e correu para a prancheta de projetos logo à sua frente. Um dos troggs se aproximou do irmão ferido, mais curioso que preocupado, e o outro continuou a cercar Gelbin.

Resmungos zangados saíram do alto-falante.

– Você tem razão, Gelbin. Eu devia ter matado você na época, mas eu precisava de um bode expiatório. Eu precisava de alguém contra quem lançar os gnomos quando eles me elegessem como novo grão-faz-tudo. Você sequer imagina o tempo que levei arquitetando um plano para sujar seu nome? Matar você teria sido fácil!

Gelbin alcançara a mesa, e agora abria as gavetas numa busca frenética. Ele encobriu suas ações com um tom de conversa calma.

– E essa história de juntar os gnomos contra mim e se tornar grão-faz-tudo...? Era pra acontecer antes ou depois do genocídio?

Sicco grunhiu e Gelbin ouviu o som claro de uma chave de fenda batendo numa parede. Gelbin estava conseguindo irritá-lo.

– Qualquer imbecil parece inteligente falando do que já passou! O gás foi mais... eficiente do que eu esperava. Meus cálculos mostravam 30 por cento de taxa de fatalidades, um número estatisticamente significativo de cadáveres – jogados aos seus pés. Isso, mais minha impressionante vitória sobre os troggs, teria possibilitado um golpe de estado imediato.

Gelbin viu uma abertura. – “Teria“ é de fato o tempo verbal apropriado...

Outro barulho metálico alto – um soco no microfone.

– Quem poderia ter calculado que os gnomos prefeririam seguir você mesmo depois de eu ter praticamente lavado suas mãos com o sangue deles? Que eles desprezariam a lógica e agiriam como um bando de elfos noturnos emotivos e chorões? Eu fico feliz do gás ter feito o que fez!

Os gnomos precisavam desse expurgo!

O próximo som foi parecido com o último, mas mais alto e seguido de um estampido de estática.

E então o silêncio. Aparentemente Sicco Termaplugue não fatorara o dano de combate nas estimativas de durabilidade do microfone. Gelbin olhou para o alto-falante e disse: – Mantenha a compostura, meu caro. Você acaba de perder a capacidade de se gabar à distância.

Ele se curvou e voltou a se concentrar na busca. Por sorte, Termaplugue tivera o cuidado de não mexer demais no estúdio, para não alertar os especialistas do grão-faz-tudo. De fato, Gelbin suspeitava que a maior parte da armadilha havia sido construída em outro lugar e instalada atrás das paredes e sob o assoalho. A única intrusão visível fora o maldito arame.

E o arame maldito havia reduzido seus problemas em 33.3% (com dízima periódica, é claro).

Gelbin encontrou o que procurava no fundo da última gaveta. Uma pequena bolsa de couro com algumas ferramentas que seus assistentes usaram para ajustar os relógios espalhados pelo estúdio. Pontualidade nunca fora um dos seus pontos fortes, mas ele gostava de saber exatamente quanto tempo estava se atrasando.

O gnomo se voltou para ver onde estavam seus agressores, e desviou de outro golpe. Um dos troggs tentou pegá-lo de surpresa, e seu punho atravessou a mesa atrás de Gelbin como se ela fosse feita de palitos de fósforo. Ele sempre suspeitara que estas criaturas tinham minerais pesados em sua fisiologia, e a destruição causada no assoalho e nos móveis nos últimos minutos comprovava a teoria.

A velocidade de Gelbin era sua vantagem, e ele se afastou da fera com a bolsa nas mãos.

O trogg rugiu enfurecido, e se voltou para grunhir ordens aos seus irmãos. Um dos monstros sangrava até a morte no assoalho, mas o outro assentiu com um rosnado e se moveu lentamente pelo salão. Eles iriam prender Gelbin pelos flancos e então o matariam. O grão-faz-tudo não poderia correr para sempre. Era apenas questão de tempo e eles sabiam disso.

O gnomo voltara ao centro da sala, onde sua cadeira ainda jazia, virada de lado. O trogg moribundo havia arrancado o fio com toda a força do seu pesado corpo correndo em alta velocidade, e desalojara o gabinete do gatilho, enterrado sob os azulejos sob a cadeira. Era uma caixa quadrada de metal do tamanho de um prato. E se Sicco Termaplugue tivesse usado a mesma engenharia goblínica descuidada que Gelbin já o vira empregar antes, o eixo principal e os contrapesos estariam logo abaixo da caixa.

Gelbin empurrou a cadeira e abriu a bolsa. Uma chave de fenda, um martelo de ferro, uma lixa e um frasco branco de óleo de bocanera para lubrificar molas – tudo em miniatura, do tamanho certo para usar em relógios. Ou para sabotar a sabotagem. Ele olhou para o alto, calculando o tempo até que os troggs o cercassem. Vinte segundo no máximo. E ele precisava de trinta.



Destampando o frasco, ele derramou seu conteúdo e o arremessou aos pés do trogg, deixando uma linha translúcida de óleo no assoalho. A criatura olhou para o pequeno frasco, bufou com despreocupação simiesca e olhou para Gelbin a tempo de vê-lo armar-se com a chave de fenda em uma mão e a lixa na outra. Com um só movimento rápido, Gelbin raspou a chave de fenda na lixa, produzindo faíscas que saltaram para o chão, inflamando a trilha de óleo, que se acendeu feito uma serpente de fogo indo em direção ao frasco. Aconteceu tão rápido que a criatura não teve tempo de se proteger da bola de fogo que se formou sob seus pés. O cabelo desgrenhado do seu queixo pegou fogo, e o trogg começou a se espancar e bater freneticamente – o que só abanou e insuflou as chamas.

Satisfeito, Gelbin voltou-se para o arame e o gabinete do gatilho aos seus pés. O outro trogg ainda se aproximava, vindo do outro lado da sala – mas agora com cuidado, depois de ter visto um gnomo desarmado ateando fogo em seu irmão.

– Trinta segundos agora – murmurou o grão-faz-tudo. – Talvez quarenta.

Ele usou a chave de fenda para abrir o gabinete do gatilho e localizou o mecanismo na base da bobina de veraprata. Sem dúvida Sicco fôra descuidado. Um bom sabotador se certificaria que o gatilho seria algo utilizável apenas uma vez, ou usaria materiais de fácil desgaste ou molas de baixa tensão. A mola da bobina ainda tinha tensão para ser usada novamente, e Gelbin prendeu o gatilho ao interruptor dos contrapesos, uma combinação elipsoide de engrenagens que permitia à parede falsa subir e descer por meio de cabos conectados a uma mola enorme enrolada em volta de um eixo diretamente sob seus pés. Com o gatilho conectado, ele afastou o interruptor para o lado e tateou o local onde o gabinete estivera. A chave de fenda se movia rapidamente enquanto Gelbin removia os parafusos que prendiam o eixo no lugar.

Eram quatro parafusos enferrujados no total, e Gelbin usou todo o tempo que tinha para soltar três deles. Metal rangeu enquanto o peso descomunal, antes sustentado por toda a estrutura, agora pendia preso a um único parafuso enferrujado.

Gelbin se levantou no instante em que o trogg o agarrou, erguendo-o no ar. A criatura trouxe Mekkatorque para perto do rosto e deu um sorriso retorcido. Sua paciência valera a pena.

O grão-faz-tudo estava a centímetros de distância dos dentes pontiagudos empedrados. Dentes sujos com os restos da última pobre criatura que chegara tão perto deles. Gelbin se encolheu fazendo uma careta.

– Piscamola estava certo: dá pra sentir até o gosto desse fedor.

O trogg rugiu, e o grão-faz-tudo foi salpicado com perdigotos.

Então Gelbin deu um soco na boca do trogg, esmigalhando seus dentes da frente e empurrando pedaços de osso até o fundo da sua garganta. O trogg o deixou cair e cambaleou para trás com um grito engrolado. Gelbin sacudiu o sangue da mão, que segurava o martelo de ferro.

– Um conselho, meu amigo. Nunca deixe um gnomo chegar perto dos seus dentes.

O trogg limpou o sangue da boca e se voltou enquanto o outro trogg se aproximava, chamuscado e coberto de bolhas. As duas criaturas estavam furiosas e Gelbin soube que estava a poucos segundos de ser estraçalhado. Ele deu um passo pra trás e apertou o gatilho construído às pressas.

Os pesos subterrâneos se moveram, cabos se esticaram, e o parafuso enferrujado arrebentou com a pressão. Os azulejos sob os pés dos troggs estouraram e o grande cabo subiu aos ares com toda a força, puxando o eixo atrás de si numa erupção de rocha e metal. As feras foram arremessadas para trás, aterrissando com força na prancheta semidestruída, e enquanto isso a parede falsa se ergueu atrás do grão-faz-tudo.

Seus inimigos foram derrotados e a saída estava livre. Era hora de partir. Gelbin pôs as ferramentas no cinto. Por um segundo ele parou e cogitou recuperar seus velhos óculos. Ele podia vê-los do outro lado da sala, ainda amarrados aos restos grotescos de um pé de trogg.

Dando uma risadinha, Gelbin se voltou para ir embora.

Mas ele esperara demais. Agora mais troggs começavam a vir pela saída. Dezenas deles. Eles cercaram Gelbin, uma multidão deles, grunhindo e lambendo os dentes eriçados. Gelbin já não tinha ideias, e duvidava que os troggs lhe fariam a gentileza de erguê-lo – e seu martelo de ferro ensanguentado – para perto de seus dentes.

Mas os troggs não estavam se aproximando. Eles estavam esperando.

– Creio que lhe devo desculpas, Gelbin. Eu subestimei sua ousadia. Deveria ter enviado quatro troggs.

Uma gargalhada aguda e desalentadora. Parecia que Sicco Termaplugue só havia ficado mais insano junto com aqueles monstros. Houve um clangor metálico, o assobio de um motor a vapor, e então Sicco apareceu.











O mecangenheiro criara uma nova armadura de batalha para si mesmo. Gelbin ouvira boatos sobre Sicco andando por Gnomeregan dirigindo uma enorme máquina em forma de caldeirão, mas isto era algo diferente. Era um mecanismo ágil, do tamanho de um homem, que se aproximou e passou pelos troggs com um assobio de vapor quente. Forjada com metais maleáveis, decorativos, parecia uma das chamativas armaduras humanas, feitas para desfilar e impressionar o povo, com a cabecinha enrugada de Sicco aparecendo no topo. O gnomo demente tinha envelhecido mal. Gelbin mal reconheceu seu antigo amigo. Bochechas chupadas, fios finos de cabelo branco feito teias de aranha e um tom de verde doentio que sinalizada radiação e loucura.

Sicco viu o olhar de pena de Gelbin e o confundiu com apreciação. Sorrindo, ele deu uma voltinha e então se curvou com um floreio.

– Engenharia impressionante, não acha? eu fiz vários testes com um protótipo mais prático para o campo de batalha, mas era desajeitado demais e... suscetível a explosões. Esta armadura é mais estável, muito mais apropriada para alguém com meu status.

– Seu “status”?

– É claro. É apenas adequado que o rei dos gnomos esteja em pé de igualdade... olhando no olho, por assim dizer, dos outros governantes dos reinos. Sei que este é um conceito difícil para um fracasso medíocre feito você compreender.

Gelbin franziu o cenho. – “Rei dos gnomos”, não é? Então suponho que você desistiu da ideia de vencer uma eleição. Acho que você faz bem. Os eleitores provavelmente não gostarão de votar em um não-gnomo.

Sicco pareceu espantado por um segundo, e ouviu-se um chiado. O grão-faz-tudo não soube se o som tinha vindo do motor a vapor na barriga da armadura de Sicco, ou se havia sido antes uma resposta reptiliana e sibilante do usurpador. Mas era um som adequado à careta estampada no rosto de termaplugue.

– Creio que implorar migalhas nas mesas enânicas foi demais para sua cabecinha, Gelbin. Não-gnomo? Eu sou dez vezes o gnomo que você jamais será! enquanto você aproveitava e colhia os louros do seu “gênio” falso e imprevisível, eu tive que trabalhar pelo reconhecimento. Quem passou semanas fazendo os cálculos de balística para suas máquinas de cerco? Eu transformei seu caminhãozinho de carregar beterrabas em um canhão móvel! Foi esse trabalho que cimentou nossa aliança com os anões. E eu não recebi nem sombra de agradecimento!



Gelbin suspirou. – Sicco, você era um dos gnomos mais brilhantes de Dun Morogh, e parece ter esquecido que eu sempre manifestei a minha gratidão pelo seu trabalho. Você tinha ideias criativas, mesmo brilhantes. Mas você era descuidado. Suas estimativas eram muito cruas, e você não se preocupava com os detalhes. Eu o destaquei para trabalhar em projetos de armamentos na esperança de que você se esforçasse em fazer jus à tarefa. Mas seus cálculos de balística teriam explodido minhas máquinas de cerco na hora de recarregá-las. Eu gastei muitas horas refazendo seus cálculos antes de enviar os canhões para Altaforja.

– O quê? Mentira! Se meu trabalho era tão ruim, então por que você deixou que eu levasse o crédito pelas armas?

– Porque – Gelbin disse – você era meu amigo.

Arregalando os olhos, Sicco Termaplugue deu um passo para trás. Por um instante, a expressão de seu rosto suavizou e ele pareceu ser o jovem e brilhante gnomo de quem Gelbin tinha ficado amigo há tantos anos. O gnomo que ele ajudara a se formar, que ele empregara em sua forja e que alcançara uma posição importante no Paço dos Faz-tudo com sua ajuda, apesar de um desempenho cada vez mais falho e preocupante. Sicco piscou várias vezes e esfregou a testa com uma grande mão metálica.

– Gelbin, eu... eu

E então ele notou a mão, os poderosos dedos dourados que ele criara sozinho. Ele ergueu a mão em punho, e o rosto de Sicco se contorceu em um sorriso de lunático. O velho amigo de Gelbin já não estava mais ali.

– Pois justamente, foi por causa dessa sua fraqueza repugnante que eu decidi tomar as rédeas.

Os gnomos deveriam estar dominando estas terras com nossas armas implacáveis, não fazendo comércio com aliados imbecis. É para isso que os gnomos existem!

O grão-faz-tudo balançou a cabeça.

– Você nunca foi capaz de entender, foi? É nossa lealdade aos amigos que nos dá nossa maior e mais verdadeira força. É isto que nos separa dos ogros e dos troggs – e até dos goblins. É por isso que os anões nos salvaram da extinção, e até nos entregaram parte dos seus nobres salões para servir como nosso lar. E é por isso que os anões, humanos, draeneis e elfos noturnos estão morrendo, lutando ao nosso lado nos túneis perto daqui, para ajudar a retomar uma cidade que nem é deles. Eles estão aqui porque são nossos amigos, Sicco. Meus amigos. Esse poder, não há número que consiga derrotar.

O mecangenheiro chiou (desta vez Gelbin teve certeza de que o barulho partira da boca pregueada do gnomo) e se aproximou. – Por que você não simplesmente fecha os olhos e me deixa acabar logo com este embaraço?

Parando bem em frente ao grão-faz-tudo, Sicco sacudiu a cabeça, ergueu a mão e acenou num gesto de adeus. A mão produziu um som mecânico, rotacionou e sumiu no punho de aço do braço da armadura. Termaplugue riu e estendeu o braço. Com outro sopro de vapor, uma lâmina horrenda se projetou do punho da armadura e começou a esquentar até ficar vermelha. Gelbin tropeçou para trás, para perto do eixo, sentindo a mola fortemente tensionada contra suas costas.

ele ainda tinha a chave de fenda no cinto, e ele a ergueu, aparando o golpe de Sicco com ela.

Isto causou outro risinho.

– Oh, céus. Você está tão engraçado aí embaixo. Foi assim que os anões ensinaram você a lutar?

– Não – disse Gelbin, girando a chave nos dedos. – É assim que um gnomo luta. Cuidado com a cabeça.

Ele se virou e bateu com a chave na lingueta que mantinha a mola no lugar – antes sustentada por toda a estrutura mais abaixo. A lingueta caiu por terra, liberando a mola do eixo, e toda a energia acumulada da mola se descarregou em segundos em um súbito borrão metálico afiado que assobiou, arrojando-se através do salão. Gelbin sentiu a força cinética passar raspando sobre sua cabeça e então... o silêncio.

Ele se voltou e olhou para trás. Os troggs ainda estava ali, babando. Sicco deu outra risadinha.

Três cabelos caíram do topo da cabeça de Gelbin e passaram lentamente diante dos seus olhos.

Seguidos pela cabeça de todos os troggs no aposento.

E finalmente, pelo torso secionado da armadura de batalha de Sicco Termaplugue. Com um jorro quente de vapor, a parte superior da armadura deslizou e caiu, arrebentando-se no chão à frente de Gelbin e rolando até parar diante das pernas da armadura. Termaplugue engoliu em seco e piscou várias vezes.

Sicco estava surpreso.

Sicco estava... confuso.

– M-minhas pernas estão naquela metade – Sicco disse, apontando para a outra parte da armadura, que ainda estava de pé.

O Grão-faz-tudo Gelbin Mekkatorque assentiu com a cabeça e se curvou para bater de leve no ombro mecânico do seu velho inimigo.

– De fato estão, meu amigo. E com um corte tão afiado e rápido, mais a cauterização a vapor fornecida por sua armadura, o sangramento será mínimo. Eu até esperaria para ver se os ratos encontrarão você antes dos seus lacaios, mas já vi troggs demais por hoje.

– Você... você vai me deixar aqui?

– Você não merece uma morte rápida, Sicco. É isto que você merece: Uma longa vida metido em um buraco escuro, cercado de monstros imundos.

Gelbin deu um passo para trás e sorriu com tristeza. Ele abriu os braços para abarcar o setor de Gnomeregan onde eles se encontravam. – De fato, você criou sua própria prisão aqui. Melhor do que qualquer coisa que eu pudesse ter inventado. Você de fato me superou desta vez.

Parabéns.

Sicco Termaplugue piscou. Ele gaguejou. Gelbin aproveitou a rara oportunidade de olhar seu inimigo de cima. Ele podia ouvir os troggs se aproximando pela abertura, e soube que era hora de partir.

– Além disso, se você sobreviver, não posso pensar em ninguém melhor para comandar estas feras do que alguém igual a eles. – Ele se inclinou para diante e sentiu o cheiro da cabeça de Sicco, franzindo o nariz de nojo.

– Aproveite o tempo que lhe resta nesta prisão, meu amigo. Sua sentença está quase no final.

E com isso, Gelbin deixou seu estúdio para voltar à Nova Vila da Gambiarra, deixando Sicco sozinho, indefeso e completamente bissecionado no escuro.

A infestação trogg ainda custaria tempo e esforço até ser completamente rechaçada. Um trabalho de limpeza completo e meticuloso havia recebido prioridade máxima, e o grão-faz-tudo já concebia planos para uma planta mais aberta e ventilada. Aquele “buraco escuro” precisava de uma remodelagem de um tipo que nem os titãs jamais haviam visto. Não só para voltar à glória antiga, mas para ultrapassá-la e qualidade e brilho. Algo muito mais adequado aos gnomos de Azeroth. Gelbin tirou os novos óculos e suspirou, passando os dedos pelo nariz levemente esfolado. Algumas melhorias, alguns aperfeiçoamentos – ele se acostumaria com eles, no final.



©2013 Blizzard Entertainment.
All rights reserved.

Nenhum comentário:

Postar um comentário